Por Adamo Bazani

Existem pessoas que mal começam o emprego já querem sair. Não se adaptaram ao ramo, não gostaram do patrão, têm outros sonhos e objetivos. Há os que dedicam a vida inteira numa só atividade. Fato cada vez mais raro no cenário de alta rotatividade do mercado de trabalho.
Cícero Francisco da Silva, 58 anos, é uma dessas raridades.
Motorista de ônibus, ele tem longa experiência nos transportes e sentiu na pele as mudanças no setor, que, hoje, representa 9,8 % do PIB brasileiro. Nem a idade, nem as dificuldade, nem as distâncias separaram Cícero dos ônibus. Mudou de endereço, de região, de hábitos, o tempo passou, mas nunca deixou de trabalhar com ônibus.
O trabalho e a paixão pelo ramo começaram quando Cícero tinha apenas sete anos Era 1957, em Garanhuns, Pernambuco. Terra do presidente.
“Sabe como é. No Nordeste, infelizmente, se sofre muito. É seca, carência e todo mundo na família tinha de trabalhar, mesmo que novinho, então, tive a oportunidade de conhecer o dono de uma lotação (pequenos ônibus, estilo jardineira) que me pagava um dinheirinho para lavar o veículo para ele”
No depoimento de Cícero uma realidade histórica do setor dos transportes de passageiro, nos anos 50 e 60. Enquanto no Sul e Sudeste começavam a surgir empresas que se tornariam décadas depois grandes impérios, principalmente no transporte urbano, no Norte e Nordeste, naquela época, as linhas eram organizadas por donos de “jardineiras”. Eles entravam em acordo, faziam uma linha e cada um operava com seu próprio ônibus. A féria não era dividida entre os outros empresários. “Cada um tinha seu ônibus e fazia seu faturamento. Os empresários só combinavam o itinerário e os horários, mas tinha desentendimentos, também”
Em outros casos, os serviços de transportes eram feitos por um único ônibus. A linha era o ônibus. Se o veículo quebrava ou o motorista/dono ficava doente, e não aparecesse alguém para substituí-lo, os passageiros não tinham serviço.
A vida dentro do ônibus
Quando completou 10 anos de idade, Cícero virou cobrador de um dos ônibus”jardineiras. Foi aí que a paixão aumentou, justamente pelo fato de lidar com passageiros, e trabalhar “ao ar livre”.
“O ronco do motor do ônibus, o fato de você estar no comando de uma máquina muitas vezes maior que você, e tratá-la como se ela obedecesse suas ordens, fascina. Mas nada como o dia a dia com o passageiro. Ver gente, pessoas, criar amizades, tudo isso me fez ficar apaixonado pelo transporte”.
Quando completou 22 anos, Cícero realizou seu grande sonho, ser motorista. Paixão que não anulava as dificuldades. “Trabalhei em jardineiras Ford de 1952, já com mais de 10 anos de uso, e Chevrolet Gigante. Eram ônibus fortes na época, mas o motorista tinha de ser forte.”
Hoje, quem reclama que a marcha do carro não engata direito, e até xinga o veículo, é porque não dirigiu um daqueles veículos. “A marcha tinha de ser trocada no tempo certinho, senão arranhava e estourava a embreagem. A gente ouvia o barulho do motor esgoelando pedindo outra marcha, contava até três, e trocava.” A alavanca de câmbio era comprida e dura de manusear e o motor barulhento, difícil de pegar. Se muitos motoristas da época reclamavam do funcionamento desses veículos na cidade, o que dizer de dirigi-lo no sertão: “Aí o bicho pegava……A lotação por si só já era dura de dirigir, imagine nas estradinhas de terra”
Cícero trabalhava numa linha local que ligava vários bairros de Garanhuns ao Centro da cidade.
As dificuldades para dirigir estes ônibus eram compensadas pelo clima, e a tranquilidade. Ar puro, passageiros educados, e como às vezes era o único ônibus da linha as amizades eram inevitáveis, trânsito quase nulo e pouca pressão quanto aos horários. “De manhãzinha, vendo o sol nascendo, ao fundo da estradinha de terra, era uma delícia”
A chegada a São Paulo
A inflação dos 50 e 60, e anos depois o fracasso da economia na Ditadura Militar tornaram a situação bastante complicada no Nordeste. A seca era motivo de mais sofrimento, na área rural. Faltava dinheiro para plantar. O número de passageiros caiu. Deixaram o ônibus para andar quilômetros a pé. “Ou comiam ou andavam de ônibus”.
Cícero foi obrigado a viver na região Sudeste.
Em 1988, chega a capital paulista e consegue emprego na Auto Viação Vila Ema. O choque foi enorme para ele: “Ao chegar em São Paulo, me espantei com a grandiosidade da cidade, mas quando peguei o ônibus pela primeira vez aí que pensei: Meu Jesus, onde me meti, não vou agüentar isso”. O trânsito era bem diferente. Se em Garanhus a direção era tranquila e responsável, em São Paulo tinha de ser responsável e tensa. Tensa pelo número de carros que mais parecia um mar de latas, pelos horários mais apertados e exigentes, e pelo risco maior de acidentes.
Os ônibus, no fim dos anos 80, já eram melhores que os Ford 52 e Chevrolet Gigante de Garanhuns, mas as condições de serviço, bem mais duras. “Além do trânsito, o que me chamou atenção foi o jeito dos passageiros. Lá, se levava galinha nos ônibus, os homens tiravam os chapéus quando passavam, o povo era alegre, conversador. Aqui, o pessoal era apressado, nem olhava pra cara da gente quando entrava no ônibus. Eu ia cumprimentar, o passageiro já estava no corredor ou fora do ônibus.”
O tempo fez Cícero se acostumar e até criou algumas amizades tantas as vezes com que cruzou pelos mesmos passageiros.
“Claro que em Garanhuns existiam lugares mais abastados que outros, zonas urbanas e rurais, mas aqui em São Paulo, numa só viagem moravam várias paisagens”. Ruas, pequenos córregos, até mesmo muros e cercas separando ricos e pobres chamavam a atenção dele. As linhas da Vila Ema serviam alguns bairros carentes da zona leste, passavam pelas áreas nobres da região da Avenida Paulista e iam até o Centro, onde se via de tudo, pobreza e riqueza se “esbarrando” nas ruas.
Cícero foi trabalhar na empresa Auto Ônibus Circular Humaitá, em Santo André, na Grande São Paulo.
“Santo André, na época, era mais sossegada que São Paulo. Já tinha trânsito, diferenças grandes entre bairros numa mesma linha e correria, mas era um pouquinho mais tranquila. Agora, é tudo igual”.
A escola de lata
Cícero hoje trabalha em linhas municipais da Viação Guaianazes, incorporadora da Humaitá, que faz linhas intermunicipais. Ele se orgulha de ter dedicado a vida, exclusivamente, aos transportes. “Tem gente que vinha de outras regiões e virava motorista e cobrador por falta de opção, eu não, já trabalhava lá e procurei este ramo aqui porque gosto e porque é o que sei fazer bem”
O motorista diz não se arrepender de nada nesse ramo, prefere trabalhar na Grande São Paulo ao Nordeste. Mas seu plano é voltar à terra natal ao se aposentar. Quer descansar. “Aliás, já deveria estar aposentado pelo meu tempo de serviço, mas na época, no Nordeste, ninguém trabalhava registrado. Então, tenho muita estrada rodada, mas pouca quilometragem registrada”.
Educação com o passageiro, amizades, responsabilidade e, principalmente, o valor de um trabalhador foram as principais lições aprendidas nas escolas de lata – os ônibus, onde passa de tudo e de todos. Fatos tristes, curiosos, alegres, pessoas de bom caráter, pessoas com más intenções, mocinhos e bandidos.
“Minha faculdade foi sobre pneus”, conclui Cícero.
Adamo Alonso Bazani, jornalista, repórter da rádio CBN e busólogo. Toda terça-feira, nos convida a pegar este ônibus e ouvir uma boa história aqui no blog.
Muito legal a reportagem do Adamo! Está de Parabéns!
Todas as terças entro nesse site só para ler a história de vida dessas pessoas que viram o País crescer diante da janela de um ônibus , e esse espaço dá oportunidade de lermos um pouco sobre a ” história do ônibus ” , contada por pessoas que viveram ela .
Meus parabéns Milton Jung e Adamo bazzani , por oferecer as histórias , e atá terça que vem !!!
Mais uma das belas histórias guardadas no “cockpit” de um ônibus! O que mais chama a atenção é que esse pessoal realmente gosta do que faz. Claro que a necessidade de trabalho conta, mas ninguém aguenta uma carga dessas se não gostar da coisa.
Imaginem só o stress que é dirigir pelas ruas de São Paulo, somado a violência, o egoísmo das pessoas hoje em dia e até mesmo o preconceito que sofrem aqueles que exercem esse tipo de ocupação!
Afinal no Brasil, equivocadamente, ônibus é associado a “coisa de pobre”, a dificuldades financeiras etc. Sem falar da profissão em sí que é atribuída também erroneamente, a pessoas sem escolaridade.
Ufa! Enfrentar tudo isso, sem deixar a peteca cair, e estar lá todos os dias fielmente, prontos para carregar as mãos trabalhadoras do Brasil não é pra qualquer um!
Ser motorista é mais que uma profissão, é um DOM!