Por Diego Felix Miguel
No dia em que recebi o convite para escrever para este blog, a primeira pessoa que me veio à cabeça foi a Dora, uma das mulheres idosas que me inspirou a refletir sobre a velhice muito além das perspectivas convencionais.
Dora é lésbica, uma das primeiras idosas lésbicas assumidas que conheci. Faz questão de mencionar sua condição em toda oportunidade que tem, porque segundo ela, pouco pensamos ou falamos sobre a sexualidade e a orientação sexual de pessoas idosas, principalmente das LGBTQIA+. Isso prejudica a visibilidade para questões sociais e de saúde estão presentes nessa realidade.
O afeto sem medo de discriminação
Conheci Dora em 2017, no “Café e Memórias LGBT50+”, um encontro destinado à socialização e à convivência de pessoas idosas LGBTQIA+. É um evento organizado mensalmente pela Associação EternamenteSou, uma organização social sem fins lucrativos que atua em prol das velhices LGBT.
Desde então, sempre que a encontro, lembro da sensação que tive quando a conheci. Sempre disposta a abraçar e expressar palavras de afeto, Dora exala carinho e acolhimento, que muito se igualam a um amor maternal. É sempre muito gostoso estar com ela e experimentar esse sentimento, visto que, sendo LGBTQIA+, nem sempre vivenciamos esse bom afeto sem o medo de discriminação.
Passados quase seis anos do dia em que a conheci, cá estava eu, aguardando Dora numa lanchonete escolhida por ela no centro antigo de São Paulo. Queria saber mais sobre sua história de pioneirismo e coragem. A tarde estava chuvosa e fria.
Cheguei cedo, bem antes da hora marcada. A lanchonete estava praticamente vazia, apenas o vai e vem de pessoas que paravam rapidamente para comer alguma coisa. Enquanto esperava e observava a chuva, busquei na memória algumas histórias que já havia compartilhado com Dora para me preparar para o encontro.
O desafio do LGBTQIA+ ao serviço de saúde
Entre as lembranças mais marcantes estava a Dora ativista, que não perdia oportunidades para relatar, de forma incisiva, as dificuldades para ser bem atendida nos serviços de saúde, alertando para o preconceito e discriminação que mulheres lésbicas sofrem durante o atendimento. Foi dela que ouvi pela primeira vez que era quase impossível alguém como ela conseguir fazer exames ginecológicos: primeiro, porque alguns profissionais médicos consideram desnecessário o exame para pessoas que não praticam sexo penetrativo; e segundo, porque esses mesmos profissionais presumem que a pessoa idosa não é ativa sexualmente, com base simplesmente em sua idade. Não bastassem esses empecilhos, Dora contava também que, quando insistia em solicitar o exame, a título de prevenção e autocuidado, enfrentava o despreparo dos profissionais que não sabiam lidar com seu corpo, muitas vezes a machucando.
A denúncia de Dora confirma dados de pesquisas internacionais que apontam essa desigualdade de acesso aos serviços de saúde por parte das pessoas idosas LGBTQIA+. No Brasil, o geriatra e professor Milton Crenitte, coordenador do ambulatório de sexualidade do Hospital das Clínicas de São Paulo, foi pioneiro em apresentar dados que demonstram a iniquidade sofrida por mulheres idosas lésbicas em exames preventivos. Essa iniquidade é atribuída principalmente ao desconhecimento de profissionais em relação às questões inerentes a sexualidade e gênero, portanto colocando essas mulheres numa condição de maior vulnerabilidade e exposição a doenças como o câncer de colo do útero.
Compenetrado em meus pensamentos, quase não percebi Dora me procurando na lanchonete. Fiz um sinal com as mãos, e enquanto ela se aproximava, observei uma certa alegria em seus olhos, que a deixava ainda mais linda. A senhora de pele escura, cabelos raspados à maquina e tingidos, tão vermelhos quanto seus lábios sorridentes, vestia uma blusa preta de veludo macio e com bordados brilhantes na gola. Em sua gargantilha dourada, um pingente em formato de coração trazia as cores do arco-íris, que estampava seu orgulho por ser a mulher que se tornou.
Depois de um demorado abraço de reencontro, tentei iniciar a conversa a partir do que estava refletindo ali, mas fui delicadamente interrompido.
Dora queria contar a sua própria história.
Ajuda para ser quem se é
Aos trinta e poucos anos, Dora rompeu seu casamento heterossexual e se permitiu viver uma nova relação, dessa vez com uma mulher. Disse que esse processo, que aconteceu na década de 1990, só foi possível com o suporte social de uma instituição que frequentava e com a ajuda de uma terapeuta. O serviço comunitário tinha como missão o empoderamento feminino, com atividades fundamentadas em estudiosas do feminismo e que contribuíam para um olhar crítico em relação às desigualdades da relação de poder e violência contra a mulher.
Dora mencionou em vários momentos como o acesso a um serviço como esse, com um importante suporte emocional, a ajudou a ser quem realmente era e permitiu que conquistasse a sua autonomia. Sua vivência reforça o que diz a Organização Mundial da Saúde a respeito de oportunidades assim, por meio do conceito de Envelhecimento Ativo: os aspectos relacionados a autonomia (de escolha) e a independência (de ação) ao longo da vida são fundamentais para se experimentar uma velhice ativa e saudável.
Mas por meio de sua trajetória, Dora mostrou que estamos muito além dos estereótipos que nos desqualificam como pessoas. Mais que isso: ela provou que a vida de pessoas LGBTQIA+ não é nem precisa ser baseada na heteronormatividade – convenções sociais baseadas numa perspectiva heterossexual.
Ela fala com carinho sobre o acolhimento de sua família quando passou a se relacionar com mulheres, da vida que construiu em conjunto com sua esposa e das amizades que conquistou ao longo de sua história, tão preciosas e importantes para seu suporte social.
Porém, nem tudo “foram flores” em sua história, mesmo depois de “se assumir” lésbica. Dora sentiu na pele, por exemplo, o que é viver um relacionamento abusivo, inclusive com episódios de violência – viu, então, que o machismo é violento e perverso e, infelizmente, também pode ser reforçado por mulheres. Mais uma vez encontrou apoio para entender e superar essa situação no serviço comunitário que frequentava.
Dora também falou sobre o papel da religião em sua jornada – um ponto comum com a minha própria história. Num processo de autoconhecimento, conseguiu transpassar o ideário conservador de um Deus punitivo para um que ama a diversidade, num contexto em que o amor é um dos mais sublimes sentimentos, em todas as suas possibilidades. Para ela, era a sensação de validação da própria existência, não para os outros, mas para si mesma, onde pode se permitir ser feliz, sem medo ou culpa.
Uma vida em três horas
Aprendi com Dora que nossas histórias precisam ser compartilhadas. Muitas pessoas vivem em condições parecidas e, a partir das nossas vivências, podem encontrar o conforto e a motivação para romper com as estruturas sociais que ferem sua autonomia e independência. Esse reconhecimento pode evitar sofrimentos e situações de vulnerabilidade.
Hoje, Dora é vice-presidente da Associação EternamenteSou e exerce um papel essencial no fortalecimento da representatividade de mulheres idosas lésbicas na sociedade. Ela ocupa um lugar importante de participação social e resiste a uma cultura que muitas vezes, por conta do machismo, idadismo e tantos outros preconceitos, coloca mulheres idosas lésbicas em condições de discriminação, onde são submetidas a invisibilidade e silenciamento, sem a oportunidade de fala para apontar suas necessidades.
Dora, apesar de todas as dificuldades, se manteve fiel à sua essência e dia após dia abre caminhos para que outros consigam fazer o mesmo.
Conversamos por três horas. Nem vimos o tempo passar. Quando nos despedimos, a chuva finalmente havia dado uma trégua.
Diego Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e membro da Diretoria da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo.