O transporte no Brasil durante a 2a. Guerra Mundial

Por Ádamo Bazani

ônibus à gasogênio
Ônibus a gasogênio adaptado pela metalúrgica Irmãos Platzer. Acervo: Adamo Bazani

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945), trouxe transformações econômicas, políticas, sociais e humanas que causaram grandes feridas, muitas não curadas até hoje. Desde milhares de vida que foram consumidas na guerra, não somente pelas armas e bombas, mas pelo egoísmo e sede desenfreada pelo poder, até pequenos detalhes, como o fato de não se poder acender a luz após às oito da noite devido a escassez de energia e a inocência de brasileiros que temiam ver o Brasil ser bombardeado. O período revelou muita tristeza, dor, mudou costumes, mas mostrou como o ser humano busca na criatividade o caminho para se adaptar aos mais difíceis momentos.

Pelo relato de quem trabalhou no transporte coletivo durante aquela época é possível identificar como o conflito mundial influenciou comportamentos e levou a novos hábitos.

O ex-motorista de ônibus da Viação Curuçá, de Santo André, e ex-metalúrgico da Platzer S.A, Geraldo Atanas, de 75 anos, lembra-se como era difícil trabalhar em transportes naquela época. “Simplesmente, o diesel e a gasolina (até os anos 40, muitos ônibus ainda funcionavam a gasolina) tinham acabado. Sem exagero, pra encher o tanque de um ônibus, era quase um quarto do valor do veículo, dependendo do ano e do modelo”.

O consumo dos veículos era muito maior que os dos atuais. Além da tecnologia pouco desenvolvida, as subidas íngremes das cidades da Grande São Paulo, sem asfalto, eram montanhas a serem escaladas por aqueles carros de grande porte. “Quantas vezes tinha de colocar correntes em pneus para os ônibus conseguirem pegar subidas, como da rua Bom Pastor, no Sacomã, zona sul da Capital paulista, ou da avenida Itamaraty, no Parque Erasmo Assunção, em Santo André”

Em 1942, Geraldo Atanas, começou a trabalhar na metalúrgica dos Irmãos Platzer, de Santo André. A empresa fabricava balcões de refrigeração, mas, com a Segunda Guerra, teve de diversificar o negócio e partiu para a adaptação dos motores convencionais para a tração à gasogênio, um gás pobre obtido pela queima de carvão e lenha. Foi a saída para que os transportes de passageiros no Brasil não tivessem um colapso total. Além da crise de combustível, obviamente, havia a econômica. A gasolina e o diesel eram caros, e a renda ficou apertada para os trabalhadores de todo o mundo. Se o preço dass passagens aumentasse, ninguém andaria mais de ônibus.

Geraldo se lembra que na metalúrgica, mecânicos tinham de virar carvoeiros. Além do motor adaptado, eram colocadas nas traseiras das carrocerias dos ônibus ou em reboques enormes câmaras de combustão, que, internamente, eram revestidas com lama e barro úmido, e dentro o carvão e a lenha eram consumidos.

“O trabalho que já era pesado, ficou quase insuportável. Sofremos muito por causa da Segunda Guerra. Eu tinha de fazer as adaptações e ajudar na construção e preparo das câmaras. Era horrível. A sujeira do carvão, da fumaça – tínhamos de testar os motores- , impregnavam no corpo da gente por causa da graxa da mecânica convencional. Chegava em casa, tomava banho e a sujeira não saía.” Geraldo lembra também do ambiente abafado dentro das oficinas da metalúrgica que preparavam os ônibus. “Era um fumaceiro só. Por mais que tivessem janelas e saídas de ar, não se dava conta de tanta queima de carvão e sujeira. Muita gente ficou doente trabalhando nessa época”.

Ônibus à gasogênio
Ônibus à gasogênio, da Viação Garcia, restaurado pela empresa do sul do País

Se dentro das fábricas de adaptações a situação não era fácil, na operação dos ônibus também havia dificuldade.

Romeo Pio, de 73 anos, foi na época mecânico da EAOSA – Empresa Auto ônibus Santo André e explica as dificuldades. “Foi tudo muito de repente. O brasileiro mostrou a criatividade no improviso. Os motoristas não sabiam direito o funcionamento dos ônibus. A potência dos veículos, antes diesel ou gasolina, caía muito com o gasogênio. Então, eles forçavam muito os ônibus e as quebras eram constantes.”

Dura era a vida também dos passageiros e moradores das cidades onde os ônibus adaptados rodavam. Eram muito mais barulhentos e soltavam uma fumaça, incrivelmente, escura. “As donas de casa que moravam nos trajetos dos ônibus a gasogênio ficavam loucas de nervosas. Elas estendiam as roupas pela manhã, à tarde já estavam pretas, só de ficar no varal”. Sem contar o barulho do motor e da câmara de combustão. De longe já se sabia quando vinham os ônibus.

Romeo Pio explica que não foram apenas a falta de dinheiro no bolso do trabalhador e de combustível no tanque que prejudicaram empresas, funcionários e passageiros, durante a Segunda Guerra Mundial. Havia um esforço maior para dirigir os ônibus, desconforto para o cobrador, vários quebra-cabeças para mecânicos e, também, queda de qualidade nos serviços de manutenção.

Essa queda de qualidade, recorda Pio, se deu por dois motivos principais. Primeiro, tudo ficou muito caro, as empresas gastavam mais e ganhavam menos, então, o investimento em manutenção preventiva era quase zero, o que afetava diretamente o passageiro, que andava em ônibus mal conservados que quebravam a toda a hora. O segundo é que a maioria da mecânica desses ônibus era importada. As carrocerias, como Grassi, Carbrasa, Metropolitana (que hoje já nem existem mais) já eram nacionais, mas motores, eixos, sistemas de embreagem, freios, etc eram importadas.

“Simplesmente não havia peça de reposição”. Romeo conta que muitas vezes, tinha de arrancar a peça de um ônibus bom, criar um molde e forjar as peças nas próprias garagens. O trabalho era artesanal, portanto, caro, demorado, nem sempre tinha a mesma qualidade. Pequenas metalúrgicas surgiram na região do ABC Paulista e na Capital naquela época.

Terminada a Segunda Guerra Mundial, os reflexos ainda puderam ser sentidos durante bom tempo. O combustível se tornou acessível aos poucos, e aos poucos também as quentes , barulhentas e perigosas máquinas de gasogênio deixavam as ruas das cidades.

Romeo lembra com tristeza que muitos ônibus bons, mesmo depois da Segunda Guerra, viravam sucata ou eram completamente desmontados. A retomada da fabricação de peças para estes modelos foi lenta e isto fez com que alguns ficassem obsoletos, não havendo interesse ou condição para retomar a produção.

“Me saía lágrima dos olhos quando via alguns GM da EAOSA, empresa onde trabalhei até o início dos anos 60, serem desmontados como um brinquedo de criança, só porque faltava um componente do motor, que não se achava mais ou que era impossível fazer um similar nacional”- diz Romeo.

Geraldo Atanas que assistiu e foi protagonista da era do gasogênio, afinal trabalhou na metalurgia, dirigiu ônibus, atuou nas oficiais e ainda foi passageiro, não consegue deixar a comparação de lado: “Hoje, vemos ônibus eletrônicos que são manobrados com um dedo só, veículos com um padrão de conforto muito bom, e o usuário destrói, picha, rasga bancos, quebra luminárias. Na época da Segunda Guerra, os passageiros tinham de ajudar a empurrar os ônibus e sentiram na pele a falta que este serviço faz.”

Se o transporte coletivo por ônibus no Brasil percorreu o longo período da Grande Guerra foi porque Geraldos e Romeos se sujaram de graxa, óleo e carvão, se machucaram e colocaram a vida em risco. Foi, também, porque muitos empresários enfrentaram a crise, venderam suas casas, moraram nas garagens e conseguiram fazer com que cidade e o cidadão não parassem pela falta de ônibus.

Ádamo Bazano é repórter da rádio CBN e busólogo. Toda terça-feira, registra aqui no blog mais um capítulo da história do transporte de passageiros e de carga, no Brasil.

5 comentários sobre “O transporte no Brasil durante a 2a. Guerra Mundial

  1. Ádamo
    Fiquei maravilhado com a sua matéria, um mergulho no tempo, você transcreveu através do ônibus um pouco da história do país na época da guerra….coisas que sabemos muito pouco, fiquei maravilhado com a sua matéria parabéns
    Davi

  2. Nossa, essa foi a melhor matéria deste quadro! Sensacional! Conseguiu nos remeter a essa época difícil para todo o mundo, e mostrou que por aqui as coisas não foram diferentes.

    Sempre tive curiosidade de saber como funcionava esse tal de gasogênio, e pude hoje ver um pouco da “loucura” que foi essa engenhoca brasileira para superar a grave crise que transcorria naquele tempo.

    Fora o esforço dos trabalhadores da época, que não ficaram de braços cruzados, reclamando e esperando as coisas melhorarem, tão pouco tomaram medidas chamadas de “preventivas” mas que demonstram total covardia para enfrentar os problemas, como vemos hoje.

    Tomara que tenhamos essa mesma criatividade hoje, para superar a atual crise!

    Abraços, e Feliz Natal a todos!

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