Da Segunda Guerra Mundial ao primeiro ônibus nacional

Por Adamo Bazani

Qual a relação de um fato histórico lamentável, a Segunda Guerra Mundial, com a fabricação do primeiro ônibus totalmente nacional ?  Duas coisas tão distintas se encontram na história de Carlos Alfredo Nitsche, que ajudou a fabricar o Super B, que tinha como nome técnico, Monobloco O 321, na Mercedes Benz do Brasil, em 1958.

“Quando vejo um ônibus passar pela minha frente, meu coração se agita – ajudei a começar com tudo isso no Brasil – mas quando ouço na TV sobre ataques entre países e até nossa violência urbana, sinto algo esquisito, é como se a ferida que a Segunda Guerra me deixou ainda não fosse cicatrizada”, diz emocionado logo no início da entrevista, Nitsche, natural de Curitiba (17.05.21)

Trabalhando na lavoura, a vida era difícil, mal dava para a família se sustentar aqui no Brasil. Decidiu então seguir para Alemanha onde parte da família ainda vivia. Em 13 de maio de 1939, Nitsche embarcou no velho Navio Caparcona, de bandeira alemã, cheio de frutas tropicais (que na Alemanha tinha valor de “ouro”) e sonhos. Foram três meses de viagem cansativa, marcada pela esperança.

O sonho, logo descobriu, não iria se realizar. Ancorou em Hamburgo, em 30 de agosto de 1939, e se hospedou na casa da tia, Maria Kripler. O cenário era de uma Alemanha diferente da que imaginava. “Autoritarismo no Governo e instabilidade política. As informações nos chegavam de forma bem mais lenta e camuflada. Se soubesse como estava a Alemanha, não embarcaria no Caparcona”. Dois dias após chegar ao Velho Continente, estoura a Segunda Guerra Mundial.

O início do real sofrimento

Em 1941, Alfredo Nitsche foi convocado para lutar pelas tropas de Hitler. A condição de filho de alemães, permitia com que o governo o chamasse.

“Foi uma dor no coração, mas se não fosse, seria preso”.

O cotiaido da Guerra mostrou uma realidade que, segundo Nitsche, por melhores que sejam as produções de filme e documentários,  jamais poderia ser expressada pela arte. “Na Guerra, não existe arte, não existe lado lúdico. A morte se faz presente em tudo, sentimos o cheiro dela, o gosto dela. Não tínhamos esperança, não sabíamos se o futuro viria ou não. Tudo o que víamos eram pedaços de corpos no chão. É como se o ser humano fosse uma boneco marionete nas mãos dos poderosos, que cansavam de brincar com eles e os espedaçavam”.

“Na Guerra, a gente cria uma amizade, a força do grupo era impressionante. A União, não da tropa, mas de seres humanos que lutam pra viver, nos dá algo sobrenatural. Isso fazia com que a gente não morresse de depressão, que houvesse um sorriso, mesmo que para disfarçar. A amizade na Guerra é algo que a gente sabe que vai acabar, mas é como se fosse um anestésico que não cura a doença, mas que diminuiu a dor”.

À noite, os soldados cantavam, contavam piadas da própria desgraça, tocavam gaitas, mas no dia seguinte tinham de pegar em armas para matar ou morrer. Uma das coisas que mais marcaram Alfredo foi ver amigos que abraçava na noite e, no dia seguinte, morriam estraçalhados. No campo onde Alfredo Nitsche atuou, uma das marcas eram as granadas.

Sofrimento para quem estava na Guerra, e para familiares que ficaram do lado de fora. Os parentes de Nitsche, como outras milhares de pessoas que tinham entes queridos nos campos de batalha, viviam a expectativa e o descaso da falta de informações. Tudo o que chegava era pela imprensa e incompleto. Tudo muito mascarado e o governo alemão só expedia, vez ou outra, comunicados dizendo que o parente não estava entre os mortos.

“Na Guerra, éramos isolados do resto do mundo”

Uma explosão, a dor e um alívio

Em 1942, a explosão de três granadas vitimou Alfredo Nitsche. As marcas dos ferimentos podem ser vistas até hoje. A dor era grande, mas no hospital militar Alfredo queria tudo, menos curar dos ferimentos, principalmente depois de saber que tropas brasileiras desembarcariam para lutar contra a Alemanha.

“Eu jamais lutaria contra meus patriotas brasileiros. Sou filho de alemães, mas minha terra é o Brasil”

Alfredo Nitshe conta que jogava sal nas pernas para as feridas não cicatrizarem. Além de não permitir que lutasse contra os brasileiros, os ferimentos das granadas proporcionaram a Alfredo que ele casasse e tivesse filhos ainda na Alemanha.

Em 1943, uma família da cidade de Benshuasen, serviu no hospital militar um almoço de confraternização para soldados feridos. Foi aí que conheceu a jovem e bonita Helena Ernestine, com quem, ainda na condição de soldado, mas sem condições de batalha, casou-se na Igreja Luterana de Benshuasen.

Helena já estava grávida quando casou e, em 3 de outubro de 1943, nasceu o primeiro filho, Herbert Walter Gerd Nitsche, e dois anos depois, a menina Doris Anni.

Como não curava da perna, Alfredo foi dispensado da Guerra e ganhou duas medalhas, logo escondidas e queimadas pelo pai de Helena. “Se pessoas contra o Eixo descobrissem este material conosco, poderiam até nos matar”.

Itália, Alemanha e Japão se renderam em setembro de 1945. Terminou a gerra e se iniciaram novos problemas. “A miséria na Alemanha era de assustar e de doer o coração. Não havia indústrias, pois quase todo o parque industrial foi usado para fabricar instrumentos bélicos, os campos estavam destruídos, a morte ainda vagava, mesmo com o fim dos tiros, bombas e granadas”.

Helena conta que tinha de caminhar pro três horas para conseguir leite para os filhos. A situação não foi pior por causa da herança brasileira trazida por Alfredo: o saber plantar. “Tínhamos uma pequena horta em casa”

Em 1946, Alfredo foi trabalhar num albergue da ONU. Foi aí que, segundo ele, descobriu que numa guerra, como esta, ninguém ganha. As pessoas dividiam comida com ratos e muitas famílias alemãs se passavam por judias para conseguir o alimento de graça. Sem condições nenhuma na Alemanha, a família de Nitshe e a família voltam ao Brasil em 1947.

(Na semana que vem você vai conhecer a segunda parte da história de Alfredo Nitsche, e saber como ele se envolveu na fabricação do primeiro ônibus nacional).

Adamo Bazani, repórter, busólogo, que gosta de ônibus, mas acima de tudo que ama histórias de gente.

Na foto acima, Carlos Alfredo Nitsche aparece abaixo do retrovisor em frente ao ônibus monobloco O 321 com parte da equipe de operários e diretores da Mercedes Benz, do Brasil, em São Bernardo do Campo.

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