O voo silencioso do pensamento 

Dr Renan Domingues

@o_cerebro_musical

@renandominguesneurologia

Foto de Google DeepMind

   Como a abelha trabalha na escuridão, 

o pensamento trabalha no silêncio

Mark Twain. 

Quando eu tinha por volta de oito anos e começava a tocar violão, aprendi a música “Felicidade”, de Caetano Veloso, e uma frase grudou na minha cabeça: “o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar.” Desde então, passei a pensar… sobre o próprio pensamento. Talvez isso tenha me levado à neurologia, afinal, o cérebro é o órgão que voa sem sair do lugar.

O que me fascinava? Primeiro, a capacidade de reconstruir o mundo. Dentro da cabeça, eu podia tirar qualquer acorde, inventar amigos imaginários e torcer por um time vitorioso, mesmo depois de 23 anos sem títulos. Segundo, o mistério de não enxergar o que os outros pensavam. Seria possível acessar o pensamento alheio? 

A neurociência revelou que tudo começa com minúsculos pulsos elétricos atravessando neurônios, as células mais importantes do cérebro. Cada ideia corresponde a um padrão de ativação em circuitos integrados. Por exemplo, ao imaginarmos uma cachoeira, ativam-se rotas que combinam informações sonoras, visuais e táteis, permitindo “sentir”, “ver” e “ouvir” a água caindo. Sabemos disso graças a tecnologias que mostram quais áreas cerebrais “acendem” durante certas tarefas mentais.

No início dos anos 2000, um grupo coordenado pelo neurologista Marcus Raichle descreveu a rede em modo padrão — um conjunto de circuitos que são ativados quando não estamos focados no mundo externo. É o momento em que divagamos acordados, revisitamos memórias, imaginamos o futuro e tentamos adivinhar pensamentos e emoções dos outros. Embora se “apague” quando partimos para a ação, essa rede é essencial: ajuda a consolidar lembranças de longo prazo, ajustar emoções e planejar o amanhã. Pensamento, portanto, está longe de ser “coisa à toa”.

Mas isso explica o que é o pensamento? Ainda não. Sabemos que ideias dependem de eletricidade, mas não são como faíscas que viram lembranças, cheiros ou saudades. Quando a atividade elétrica cessa, na morte cerebral, a mente se apaga, o que mostra que pensamento precisa de energia. Porém, durante o sono profundo, o cérebro mantém uma elevada atividade elétrica, mesmo sem a consciência desperta. Como brinca a neurocientista e escritora Susan Greenfield, transformar corrente elétrica em pensamentos e sentimentos continua sendo “quase um milagre”.

No romance 1984, George Orwell inventou a Polícia do Pensamento, capaz de punir quem ousasse imaginar algo contrário ao regime. Se essa entidade é fruto da ficção, ela mostra que minha fascinação infantil com o pensamento não era um sentimento exclusivo, mas sim, uma ansiedade coletiva. 

Ainda que as imagens de ressonância funcional detectem padrões cerebrais em diferentes categorias de tarefas mentais, estão a anos-luz de decifrar um pensamento específico. No máximo, revelam correlações genéricas, nada próximo da leitura de mentes. Felizmente, a polícia do pensamento segue sendo ficção: só acessamos o que alguém escolhe comunicar.

O pensamento é uma conquista evolutiva espetacular, pois permitiu ao ser humano traçar estratégias, criar arte, antecipar perigos e, no fim das contas, dominar o planeta. Esse poder, porém, tem um preço. Quando despejamos nossas ideias nas redes sociais, oferecemos pistas valiosas a algoritmos que aprendem, cruzam dados e detectam nossos desejos. É quase uma polícia do pensamento, só que movido a cliques, não a ameaças. 

Se a polícia do pensamento é invenção literária, os algoritmos são muito reais. Talvez valha lembrar que nossa última fronteira de liberdade continua sendo o voo silencioso do pensamento: preserve-o, cultive-o e compartilhe apenas o que fizer sentido — afinal, a melhor parte de voar é escolher o destino.

Renan Domingues é neurologista e Doutor pela Universidade de São Paulo (USP), com doutorado pela Universidade do Alabama em Birmingham, EUA e pós-doutorado pela Universidade de Lille, França. É músico e estudioso da neurociência da música. Escreve a convite do blog do Mílton Jung.

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