Por Simone Domingues

“Aquilo que está escrito no coração não necessita
de agendas porque a gente não esquece.
O que a memória ama fica eterno”
Rubem Alves
Aprendemos cedo a estabelecer a vida em marcos: datas, prazos, ciclos.
Nomeamos os anos, os separamos em fases, criamos retrospectivas, numa tentativa de fazer a vida caber num calendário ou, quem sabe, de fazer o tempo, sempre escasso, caber na vida.
Na ilusão de controle, agimos como se viver pudesse ser mensurado, ordenado e arquivado.
Mas esquecemos de um detalhe essencial: a vida não acontece em estruturas pré-definidas. Ela se espalha.
Permeia os dias comuns, os encontros inesperados, as perdas silenciosas e os recomeços que nem sempre anunciamos.
A vida nos atravessa. Nem sempre de maneira clara, nem sempre passível de nomeação.
Ela permanece no que aprendemos sem perceber, no que nos alcança e, aos poucos, transforma o modo como olhamos o mundo e a nós mesmos.
Fica no que não coube na agenda, nem no planejamento, nem na lista do que precisava ser feito.
Ainda assim, insistimos em organizar a experiência para que ela exista. Como se sentir dependesse de registro, passamos a armazenar a vida.
Guardamos fotos, vídeos, textos, conversas. Salvamos memórias em dispositivos cada vez mais potentes. Por vezes dizemos: aí está a minha vida inteira!
Está aí mesmo?
E do lado de fora?
Como se viver precisasse ser comprovado para existir.
Há algo de curioso nisso: quanto mais tentamos armazenar, menos permanece.
Porque aquilo que fica não se captura num clique.
O que fica é aquilo que foi vivido com inteireza. Aquilo que atravessou o corpo, provocou emoção, alegria e dor, dúvida, silêncio e mudança.
É sobre viver a vida com presença. É sobre encontrar um modo de ficar.
Não na nuvem, nem nos arquivos eletrônicos, mas naquilo que nos transforma por dentro, de maneira profunda e humana.
Talvez o encerramento de um ano, e o início de outro, seja menos sobre revisar o que foi feito e mais sobre reconhecer o que ficou em nós.
Mesmo sem nome.
Mesmo sem foto.
Mesmo sem legenda.
Porque aquilo que se vive com sentido não se perde no tempo.
Não depende de agenda.
Não depende de registro.
Fica.
Feliz Ano Novo!
Simone Domingues é psicóloga especialista em neuropsicologia, tem pós-doutorado em neurociências pela Universidade de Lille/França, é uma das fundadoras do canal @dezporcentomais, no YouTube. Escreveu este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.