Descubra SP: me sinto em casa, no Pateo do Colegio

 

 

Fui entrevistado pela Fabiana Novello para a série Descubra SP, um dos programas da CBN em homenagem aos 460 anos de São Paulo. A ideia era indicar um dos lugares que mais gostamos da Capital e não tive dúvida em escolher o Pateo do Colegio, local de fundação da cidade, onde todo segundo sábado do mês nos encontramos no Adote um Vereador. A história bem contada pela Fabiana tanto quanto bem sonorizada pelo Claudio Antonio você ouve aqui:

 

Conte Sua História de SP 460: minha paineira do Butantã

 

Por Robson Luquêsi
 

 

 

 

fim dos anos 1960. é coisa do milênio passado. saía de casa, lá no jaguaré, pertinho da divisa com osasco. levado pelo meu pai ou minha mãe, ou os dois, a caminho da cidade. sim! cidade era lugar de pra lá do rio, que mais tarde fiquei sabendo se chamava pinheiros.

 

mas só sabia que estava a caminho do centro de são paulo quando o ônibus passava ao lado, bem perto, quase colado àquela imensa árvore. espinhuda, maior do que os postes de luz de madeira que existiam em várias ruas do meu bairro, e que um dia foram árvore também

 

 
se era um domingo, ia para a praça da república assistir à apresentação de uma banda lá no coreto, que ainda existe, o coreto. a banda? não. quando passava pela paineira sabia que não ia demorar muito – felicidade

 

 
se era dia de semana e se estivesse tossindo, percebia que logo chegaria ao médico assim que passasse por ela. sempre linda, ali, solitária, cercada de gente por todos os lados. inalações, injeções, receitas de remédios. queria ficar curado logo, mas não queria virar peneira para agulhas – tristeza

 

 
se era perto do natal, pronto: presentes, modestos, mas lembranças de fim de ano. por mais que tivesse passado pela paineira, juro que vi papai noel sentado nela, parecia um nunca chegar nas lojas de brinquedos. um desses dias, perguntei pro papai noel porque tinha criança que não ganhava nada. ele nunca mais apareceu pra mim – meio feliz, meio triste

 

 
notícia ruim! disseram que um caminhão bateu na paineira e tinha de ser cortada. outros disseram que ela tinha de ser retirada pra fazer mais pistas pros carros. disseram um monte de coisas e fizeram a única coisa que não poderia: cortaram

 

 
consultaram francisco morato? e vital brasil, lineu de paula machado e eusébio matoso? que hoje são nomes de avenidas que passam bem onde havia a paineira do butantan. não perguntaram nada

 

 
não moro mais lá ‘praqueles’ lados. mas, mesmo que não passe no lugar tanto quanto antes, tem vezes que me vejo assim: cumprimentando aquela danada verde e grandona. me sinto alto e forte como ela

 

 
se estou curvado pelo peso dos tempos, me fortaleço com  aquela imagem de antes que marcou, e marca, a distância dos quilômetros, dos ponteiros do relógio e da imensidão da cidade que pouco, ou nada, é percebida pelos doutores que sabem tudo sobre o nada e que um dia tiraram ela do lugar

 

Robson Luquêsi é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte você mais um capítulo da nossa cidade, mande seu texto para milton@cbn.com.br ou agende entrevista em áudio e vídeo no Museu da Pessoa pelo e-mail contesuahistoria@museudapessoa.net. Mais histórias de São Paulo você encontra no meu blog, o Blog do Mílton Jung

Conte Sua História de SP 460: a sapataria do seu Otacílio

 

Por Marina Zarvos Ramos de Oliveira

 

 

Caro Sr. Otacílio

 

Dias destes fui surpreendida com o anúncio de “aluga-se” afixado na porta da sapataria, na avenida dos Jamaris, 442, em Moema. Confesso que fiquei atônita, sem chão. Como assim, aluga-se? E o “seu Tacílio” – maneira carinhosa como todos o tratavam? Suspendi a respiração e um pensamento funesto atravessou-me como um raio. Tentava entender aquele vazio quando passa por mim uma amiga:

 

– Você sabe o que aconteceu com seu Tacílio? pergunto um tanto temerosa.
– Ele parou de trabalhar, responde sem titubear.

 

Trocamos algumas poucas palavras, pois o tempo na cidade grande não nos permite aprofundar e estreitar os laços, infelizmente. Prossegui meu caminho num misto de sentimentos, enquanto segurava a sacolinha com meus sapatos avariados. E agora?Quem cuidará deles? Murmurava e andava a esmo. Tentava me convencer de que Moema tem comércio farto, que não seria difícil reparar meus sapatos. Mas não era apenas o profissional que conserta sapatos que perdíamos. Perdíamos, perdemos, o nosso querido Tacílio… Pessoa ímpar, artesão no ofício de consertar calçados. Pessoa doce, meiga, serena, de sorriso fácil com os lábios e com os olhos.

 

Estabeleceu-se há 50 anos em Moema e desde sempre cuidou com extrema competência de sua clientela – traduzida nas orientações de como cuidar dos sapatos, no cumprimento da data de entrega, na habilidade em coser, engraxar, lustrar, colar, reformar e reparar tudo que fosse necessário para que saíssemos com os velhos “novos sapatos” reluzentes.
Cuidou também de seu espaço, pintava a pequena sapataria com esmero e organizava as prateleiras que o acompanhavam há cinco décadas, no mínimo. Cuidou como poucos da natureza, plantou as duas frondosas árvores que mais pareciam colunas de um templo, que adornavam a entrada de seu singelo negócio.

 

Diariamente, exceto às segundas, lá estava ele detrás do balcão, sentado em seu banquinho, a martelar e polir. Por volta de 11 horas era possível sentir o aroma de tempero caseiro. Ele abria a marmita e fazia a refeição ali mesmo, altar em que celebrava a vida com seu ofício.

 

Às cinco da tarde, outro aroma. Perfume agradável misturado às graxas e tintas. Era “seu Tácilio” a se preparar para ir embora. Perfumava-se, aprumava-se e baixava a pesada porta. Foi assim desde que aqui cheguei, menina ainda. Lá se vão 46 anos.
Esse ilustre vizinho acompanhou de seu banquinho toda a transformação do bairro. Lugar pacato e rico em brejos, que atraía cavalos em busca de saciar a sede; lugar da algazarra e do pouso de pássaros, nos primórdios. Anos depois, lugar dos grandes “pássaros de aço” com sua algazarra ensurdecedora noite adentro, em pousos, vez ou outra, catastróficos. Acompanhou a pavimentação das ruas, a chegada do Shopping, o ”boom’ imobiliário, o ”point” das chopperias e, recentemente, do metrô, nos subterrâneos da mesma avenida Ibirapuera, em que outrora correra o bonde. Sempre de seu banquinho.

 

Nos últimos tempos “seu Tacílio“ sofreu alguns duros golpes, eu imagino. Ao menos um ele confidenciou. Por ocasião das grandes chuvas do início do ano, uma das árvores plantadas por ele, desabou. Quem testemunhava seu zelo e amor por elas solidarizou-se. Ele, num misto de tristeza profunda e de impotência, frente às forças da natureza e do descaso público, disse: “elas estavam com cupim, mas a prefeitura nada fez .. Se ela tivesse caído para o lado de cá e não o de lá, teria me matado na hora. Meu telhadinho não teria agüentado.

 

Sim, sim. Agora compreendo o senhor ter baixado a porta e devolvido o espaço ao senhoril. Foi descansar, saborear as refeições ao lado das pessoas queridas, perfumar-se para elas, sorrir para elas e ser cuidado por elas. Teria sido muito triste se a “árvore–coluna” tivesse caído para o lado de cá. Muito triste. Cuidemos, então, para que a outra não desabe sobre nós todos, que sequer a olhamos muitas das vezes, na correria e no sem-tempo do cotidiano. Que permaneça como um símbolo. Símbolo da passagem de alguém como o Seu Tacílio para nos inspirar e nos lembrar de que a beleza e a simplicidade caminham juntas (com sapatos lustrados), quando desejamos encontrar a felicidade.

 

O senhor fechou a velha porta e abriu novos caminhos, fique com a certeza de ter feito o seu melhor sempre. Sábia decisão. Parabéns! O senhor saiu de nosso convívio, sem aviso, mansa e delicadamente. Saiu tão silenciosamente como quando chegou. Só quem passava por ali, viu o caminhão retirando seus pertences e o último baixar da porta. Privilegiados, que puderam abraçá-lo e despedir-se.

 

Desejo que, continue a ser muito feliz e que a vida nos promova um reencontro. Sua ausência o tornará mais presente em nosso bairro, em nossa memória e em nosso coração.

 

Um abraço carinhoso, senhor Otacílio

 

Marina Zarvos Ramos de Oliveira é personagem do Conte Sua História de São Paulo. Seu Otacílio, também. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte mais um capítulo da nossa cidade. Envie seu texto para milton@cbn.com.br ou agende entrevista no Museu da Pessoa pelo e-mail contesuahistoria@museudapessoa.net. Outras histórias de São Paulo você encontra no meu blog, o Blog do Mílton Jung

Conte Sua História de SP_460: com os olhares do pombo e do urubu

 

Por Suely Schraner
Ouvinte-internauta da CBN

 

 

Consta que Deus, cansado de ouvir reclamações sobre a Terra, mandou que o urubu sobrevoasse tudo e retornasse dizendo o que viu. Ele voltou contando das guerras, carniças (delícias), poluição, violência, catástrofes e vícios, um inferno enfim. 

Desolado, Deus quis ouvir uma segunda opinião. Pediu então que a pomba fizesse o mesmo. Aí ela retornou dizendo do sol clareando a terra e o orvalho das plantas. Dos passarinhos arrulhando nas árvores após um dia de chuva. Das flores com seus diversos matizes sob o céu de azul diáfano. Das cachoeiras que inundavam a atmosfera com sua música maviosa. De crianças a brincar e a sonhar. De velhos nas praças a ver a vida passar com graça a dar milho aos pombos. 

Deus então deu um logo suspiro e declarou: é preciso olhar o mundo com os olhos da pomba.

 


Esse é o desafio do paulistano: olhar esta cidade com os olhos da pomba. Ver a beleza que existe na diversidade, na concentração de talentos, nas oportunidades de desenvolvimento e mudança. Beleza no seu centro cultural, nas atividades criativas. Na poesia concreta das suas esquinas, como na canção.

 



Cai, levanta, cai levanta. Vocês sabem do que estou falando. Como na teoria do evolucionismo, os mais aptos sobreviverão. Uns chegam de longe para se tratar e vão ficando. Outros chegam munidos de muita vontade de trabalhar, transformar o pouco em muito. Tenacidade de aço e nervos de concreto faz do cidadão paulistano um ser singular. Caçadores de beleza na cidade dos migrantes e imigrantes. Diz-se que quem vive aqui, está apto a viver em qualquer lugar. Uma metrópole que contempla tanto o olhar do urubu como o olhar da pomba. A escolha é sua.

 

SP é um pólo de atração. Atrai os que ousam sair da zona de conforto e mudar, transformar, garimpar ouro em merda. Cidade em constante mutação a provocar mudanças em seus atores. Quantos desses 11 milhões de habitantes, sem contar os 10 milhões no entorno, aqui chegaram apenas com a roupa do corpo, coração acelerado e, um sonho na cabeça povoada de ilusões.  Educaram seus filhos, trabalharam e conquistaram seu espaço. Quem não se envolve não desenvolve.



 

Amar sua cidade. Apropriar-se dos seus espaços. Nossos parques, nossas praças. Sonhar juntos. Saber que num dia, policiais estão brandindo seus cassetetes e spray de pimenta. E que, no outro, acontece um desfile de moda de uma grife famosa, em plena região da Luz, mais conhecida como “cracolândia”. Que hoje, fazemos muito mais que antigamente.  Que para levantar é preciso antes, cair. Que egoístas os temos mas, também, solidariedade. A tragédia e o espetáculo. Choro e riso. Corruptos. Honestos, a maioria.  Ainda bem. 



 

Cair do pedestal da ilha do egocentrismo. Sair da inércia e elevar-se em sabedoria.

 

Suely Schraner personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte você também mais um capítulo da nossa cidade, mande seu texto para milton@cbn.com.br ou agende entrevista no Museu da Pessoa pelo e-mail contesuahistoria@museudapessoa.net. Outras histórias de São Paulo você encontra no meu blog, o Blog do Mílton Jung

Conte Sua História de SP: Maradona e Zico estavam na Portuguesa

 

Por Daniel Lescano
Ouvinte-internauta da rádio CBN

 

 

Sempre fui apaixonado por futebol. Ainda criança, em Porto Murtinho, no Mato Grosso do Sul,  adorava ir ao  cinema para assistir ao Canal 100 e acompanhar a atuação dos craques na telona, com a linda canção na Cadência do Samba, que tocava enquanto rolavam os melhores momentos da partida. Era a maior alegria ver craques como Zico, Pelé, Dinamite, Leão, Falcão, Clodoaldo entre tantos outros atletas. E, principalmente, assistir às jogadas do time de coração: Santos Futebol Clube.

 

Entre assistir ao Canal 100 no cinema e a minha vida para São Paulo muita coisa rolou. Mas um fato que nunca vou esquecer ocorreu em 1979, no Ginásio da Portuguesa de Desportos, no bairro do Canindé, quando tinha apenas 13 anos.  Nunca vou esquecer por dois motivos: primeiro, foi a felicidade por meu irmão ter conseguido ingressos para que pudéssemos entrar no Ginásio da Portuguesa e participar da entrega do Troféu Gândula, criado pelo jornalista, cantor e compositor Wilson Brasil. Eram premiados jogadores do Brasil e do Mundo. Havia também troféus para profissionais do rádio e TV que trabalhavam com esporte. A ansiedade era grande. Logo na entrada do ginásio para minha surpresa já comecei a ver vários atletas tirando fotos com os fãs. De repente olho para o lado … e Zico, bem ali do meu lado. Não acreditei. Parecia um sonho. Aí não parou mais de chegar atletas de todo canto. Só pelo fato de conhecer Zico pessoalmente a noite já valeria.

 

O segundo motivo pelo qual nunca vou esquecer esse momento é que lá havia um atleta argentino com cara de garoto, muito tímido, bem discreto. Um ou outro repórter o entrevistava. Cheguei perto e fiquei olhando aquele jogador baixinho. Meu irmão perguntou: vai tirar uma foto com o cara? Como na máquina só tinha um filme de 24 poses não quis gastar, afinal, muitos atletas de nomes consagrados ainda estavam por vir para receber o prêmio. Saí dali certo de que havia sido uma noite perfeita … não fosse meu vacilo, só descoberto na Copa de 1986.

 

O argentino baixinho, com que não quis desperdiçar meu rolo de filme Kodak, desde aquele encontro no Ginásio da Portuguesa, ganhou fama, se destacou na Copa de 1982 mas arrebentou mesmo na Copa de 86. E foi nesta que lembrei dele, quando a Argentina ganhou da Inglaterra por 2 a 1, em jogo marcado por um gol que ganhou nome e sobrenome: “La Mano de Dios”.

 

Ah, se eu pudesse voltar naquele 1979, não teria dúvida de registrar o momento em que Zico e Diego Armando Maradona, juntos, estiveram no Ginásio da Portuguesa

 

Daniel Lescano é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte mais um capítulo da nossa cidade. Envie seu texto para milton@cbn.com.br ou agende entrevista no Museu da Pessoa pelo e-mail contesuahistoria@museudapessoa.net. Outras histórias de São Paulo você encontra no meu blog, o Blog do Mílton Jung

Conte Sua História de SP/460: Itaquerão, no olho d’água da Pontinha Preta

 


Por Marcos Falcon
Ouvinte-internauta da rádio CBN

 


 

 

Ao passar por áreas reurbanizadas da nossa São Paulo, por edifícios importantes e marcantes de nossa cidade, sempre me pergunto: como deveriam ser esses lugares antes? Quem morava nessa região? Como era a topografia, a vegetação…? Enfim, o que existia por aqui?
 

 

Tendo o privilégio de nascer em Itaquera, na zona Leste, e ter vivenciado toda a transformação do local onde hoje está sendo construído o Itaquerão, julguei por bem deixar registradas aqui respostas às perguntas acima, para que um dia algum curioso ou pesquisador possa usá-las.
 

 

Vamos lá… Na década de 50, havia uma grande área que se estendia da Vila Corberi, em Itaquera, até as proximidades da estação da Central do Brasil, em Artur Alvim. Do lado direito, fazia fronteira com a linha do trem, e do esquerdo, com o bairro Cidade Líder. Uma área de aproximadamente 25 mil metros quadrados, que pertencia ao IAPTEC (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Estivadores e Transporte de Carga). Toda a sua extensão era plantada com eucaliptos, e por isto ficou popularmente conhecida como “Calipal”.
 

 

Calipal… quanta saudade guardo desse espaço… Para nós, crianças, parecia tão imenso que seria impossível atravessá-lo de um lado a outro sem se perder, ou sem correr o risco de ser vitimado por uma onça, um leão, que os pais garantiam existir ali, só para que não nos aventurássemos em suas profundezas.
 

 

O Calipal sempre foi o campo de batalhas das turmas de garotos de diferentes vilas, pois nenhum moleque ousava entrar lá sozinho – de modo que as peregrinações eram feitas em bando. Quando as turmas se encontravam, a maior tratava logo de fazer correr a menor, e ali eram ocorriam grandes disputas de estilingue entre os garotos do Falcão do Morro, do Serrana e da AE Carvalho.
 

 

Dois córregos cortavam nossa floresta: o Areião e o Pequeno. Areião tinha esse nome porque sua formação era muito diferente dos demais córregos. Ele tinha pouca profundidade, algo em torno de 15 centímetros, mas uma largura de mais de 5 metros. Seu fundo era formado por uma espessa camada de areia amarela. Alguns moradores retiravam, diariamente, dezenas de caminhões de areia apenas na base da pá. Entre eles, destacava-se o Dodô. Negro forte, corpo de halterofilista, corintiano roxo e o melhor tocador de contra-surdo da Escola de Samba do Falcão do Morro.

 

Embora menor, o Córrego Pequeno é mais importante para esta narrativa, principalmente sua nascente: a Pontinha Preta, um local mágico, que marcaria a vida de todos os garotos de Itaquera e região. Tratava-se de um pequeno lago de águas cristalinas, e foi nosso clube privado, onde todos nós aprendemos a mergulhar e a nadar, exatamente nesta ordem. O nome Pontinha Preta foi dado em função do fundo do lago ser formado por argila negra – ao primeiro mergulho, suas águas cristalinas tornavam-se turvas, da cor do carvão. Era uma delícia nadar por ali e, após alguns mergulhos, deitar no gramado que a margeava, curtir o sol batendo papo, contando vantagem entre os garotos.
 

 

Em certa oportunidade, fomos até ali numa turma de uns cinco garotos. Lembro que lá estavam o Giba, o Clóvis, o Alemão, eu e mais alguém, de quem agora não me recordo. Era fim de semana, provavelmente domingo. Todos nós tomávamos banho pelados, pois não poderíamos chegar em casa com roupa molhada ou suja, para não denunciar nossa façanha. Meu pai sorrateiramente nos descobriu lá e tratou de apanhar todas as nossas roupas, levando-as embora. Os garotos imploraram para o seu Antônio devolver, não teve jeito. Já que havíamos sido descobertos e estávamos sem roupa, só nos restava continuar nadando até o fim do dia.

 

Mas chegou a hora de ir para casa. Como passar pelado por toda a Vila Corberi? Logo iria escurecer, e não tínhamos coragem de atravessar o Calipal no escuro, pois os leões e onças atacavam durante à noite. A salvação foram as bananeiras do brejo e suas belas e grandes folhas espalmadas. Cada moleque arrancou duas ou três folhas de banana e com elas tapando a frente e a traseira, fomos embora sendo alvo de gozação por onde passávamos.
 

 

Ali pesquei o meu primeiro lambari, com uma vara de galho de eucalipto, linha de costura e anzol feito de alfinete de cabeça. Muitas cobras habitavam a região para se alimentarem das rãs que lá viviam. Num fim de tarde, muitos anos depois, fui lá com meu sobrinho Rafael, caçar borboletas para a coleção que ele estava preparando, para a feira de ciências do Liceu Camilo Castelo Branco. Distraídos e olhando apenas para o alto à procura das borboletas, fomos surpreendidos pelo guizo de uma enorme cascavel, que estava de espreita no trilho, no meio do sapezal. Foi um baita susto, quase pisamos na cobra. Quando ela ergueu a cabeça para dar o bote no Rafael, sem pestanejar enfiei o cabo do coador de borboleta no meio da víbora. Rafael não levou borboleta para a feira de ciências, e sim a cobra exposta em um grande vidro com formol. Foi o maior sucesso daquela exposição.
 

 

No início da década de 70, teve início a construção da primeira Cohab em Itaquera, e nossa floresta encantada foi derrubada para a construção dos apartamentos populares entre Artur Alvim e Itaquera. Toda a área foi alvo de terraplanagem, sem a preservação dos pequenos córregos e da Pontinha Preta.
 

 

Para atender ao crescimento da população de Itaquera com transporte de qualidade, surgiu a Radial Leste, e foi construída a Estação Corinthians do Metrô. Em seguida, Itaquera ganharia seu grande shopping, que também foi edificado ali. A pedreira de Itaquera, que deu nome ao bairro (pedra dura em tupi-guarani) e que forneceu as pedras para a construção da Catedral da Sé, foi desativada e soterrada na mesma época.
 

 

Nos dias atuais, tenho passado pelo local rodando sobre as pistas da Radial Leste. Fica claro para mim que a área não era tão grande assim. Que seus limites não eram tão distantes e inalcançáveis. Pude perceber como é florida a imaginação das crianças. Como foi bom ser criança ali e desfrutar daquele lugar.
 

 

Na semana passada, parei bem em frente à obra do Itaquerão e me permiti meditar sobre como era o lugar antes. Olhei o entorno, a linha do trem, o Morro do Falcão, consultei o meu “Google Maps” imaginário e tive certeza absoluta: o centro do gramado do Itaquerão é exatamente no olho d’água da Pontinha Preta.
 

 

Agora por ali irão desfilar muitas cobras, peixes, gaviões, vindos de todas as partes do mundo, para brincar com o que mais gostamos: jogar futebol nos gramados da Pontinha Preta… quero dizer, do Itaquerão.
 

 

Marcos Falcon é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. O texto completo você lê no meu blog, o Blog do Mílton Jung. Conte mais um capítulo da nossa cidade: mande seu texto para milton@cbn.com.br. Ou marque uma entrevista em áudio e vídeo pelo e-mail contesuahistoria@museudapessoa.net.
 

Conte Sua História de SP/460: lembre-se de onde você nasceu

 

Por João Victor Correa de Almeida Salles

 

 

São Paulo, como eu desejei e desejo te ver transformada.
Eu te conheço São Paulo.
Já peguei metrô às seis, conheço seu vai e vem.
Já fiquei te observando, conheço seus meandros.
Conheço seu coração São Paulo, tenho visto seu agir, sua transformação não virá da mão de homens que só buscam te iludir.

 

São Paulo olhe pra si mesma, busque refletir, por mais que esteja errada, não deixe de assumir.
São Paulo, eu te conheço, eu vejo catadores de lata,
Ó relógio egoísta, essa cultura é que te mata.

 

São Paulo, São Paulo,
tem cultura da garoa,
do “primeiro eu”,
Terra onde as motos cantam como passarinhos, onde as motos não tem freios,
Terra onde existem “vagas reservadas para os mais espertos”,
Onde é melhor trocar de faixa sem dar seta,
Terra onde admitimos o “rouba mas faz”,
Até ouvi, “pior que tá não fica”,
E eu sei, essa é a cultura da terra, cultura de um povo cansado, cultura deste reino.

 

Por isso sou Paulistano Peregrino.

 

Lembre-se São Paulo de onde você nasceu,
Lá no Pátio do Colégio sobre o Reino aprendeu,
Lembra, lá no Reino não é assim, na cidade Celestial a cultura é outra,
Lá praticamos o amor ao próximo como a si mesmo,
Lá praticamos o confiar que o Senhor fará justiça,
Lá o homem que deseja ser o primeiro, este sirva a todos,
Lá o respeito é sincero e genuíno, não acontece apenas por convenção social,
Lá o que tem menos honra, a este damos honra, pois entendemos que somos um só.

 

São Paulo, São Paulo, pare um pouco, pense no que diz, que mudança você quer, a real ou só verniz?
Se São Paulo é você, vou perguntar de novo, que cultura você quer, a do Reino ou a do Povo?

 

João Victor Correa de Almeida Salles é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte mais um capítulo da nossa cidade. Envie seu texto para milton@cbn.com.br ou agende entrevista no Museu da Pessoa pelo e-mail contesuahistoria@museudapessoa.net. Outras histórias de São Paulo você encontra no meu blog, o Blog do Mílton Jung

Conte Sua História de SP/460 anos: construímos nossa vida na Zona Leste

Por Cláudia Elisabete da Silva
Ouvinte-internauta da rádio CBN

 


             

 

                                                                         
Às sete horas anunciei que estava para chegar, mas minha mãe não entendeu que meu dia havia chegado. Às sete horas os trabalhadores já estavam na luta, de trem, de ônibus, sonhando nos “enlatados” com o metrô em construção que, um dia, iria encurtar as distâncias para todos – ou para alguns privilegiados lá da zona sul. Só o tempo diria, já que até hoje o metrô não atende a toda a cidade. Meu pai e nosso tio já haviam saído para seus respectivos empregos. Minha mãe, no entanto, não quis incomodar ninguém, e ficou ali, sofrendo sozinha, achando que eu poderia esperar mais um pouco. A coisa foi ficando apertada e em pouco tempo não foi mais possível segurar. Ela chamou minha tia, que morava no mesmo terreno, na casa da frente. A tia, recém-chegada na Paulicéia, não sabia nem por onde começar.

 

“Um táxi, tia, chame um táxi lá na Itinguçu”, minha mãe pedia. Morando na Vila Ré, cujas ruas ainda estavam sendo asfaltadas, essa era a única forma de tentar chegar a um hospital em tempo suficiente para que eu não viesse ao mundo no meio da rua, em meio a essa gente apressada, correndo para o que der e vier, como diria a canção de tom entusiástico e em ritmo acelerado – “vambora, vambora, olha a hora”…

 

São Paulo não podia parar: este era o mote lá no início da década de 1970, quando vi a luz, só por volta das cinco da tarde – na hora do “rush”, da volta para a casa, tinha que ser! O hospital ficava na Avenida Celso Garcia, a alguns metros do Parque São Jorge – o destino já estava traçado: mais uma corintiana na face da Terra!

 

Aprendi a ler antes de frequentar a escola, decifrando os outdoors do corredor Radial Leste-23 de Maio-Rubem Berta, que percorríamos semanalmente, eu, minha mãe e meu pai, para visitarmos os parentes no Jabaquara. Tentamos morar nesse bairro em 1979, mas não aguentamos mais do que nove meses, por causa do barulho dos aviões que decolavam e aterrissavam em Congonhas. Voltamos para a zona leste, onde construímos nossas vidas ali, na região da Penha, um dos bairros mais antigos da capital, antigo lugar de peregrinação à igreja do século XVII que abrigava a santa padroeira da cidade. A Penha era o centro comercial para toda aquela gente que, quando era preciso “ir à cidade” (o Centro Velho), dependia exclusivamente dos ônibus que seguiam, demoradamente, pelas avenidas Amador Bueno da Veiga, Celso Garcia e Rangel Pestana.

 

Nos anos 1980 veio o metrô, que facilitou a vida dos trabalhadores e estudantes da região. Fui fazer o 2º grau no Tatuapé, e foi então que a cidade começou a se descortinar diante dos meus olhos.  Centro velho, República, Anhangabau, 24 de Maio e Barão de Itapetininga, com suas livrarias e lojas de discos, as galerias Barão e “do Rock”, os cinemas, as lojas de pedras brasileiras, os prédios da virada do século XIX para o XX.

 

Entrei na USP para estudar História e venho testemunhando da janela do ônibus as transformações da rua Augusta ao longo dos últimos 20 anos; trabalhei no Museu Paulista (vulgo Museu do Ipiranga), onde pisei pela primeira vez ainda criança, levada pelo meu pai; fiz alguns freelancers na região da Santa Cecília, Higienópolis, Perdizes e Lapa. Pesquisei nas bibliotecas da São Francisco, na Mário de Andrade, nos arquivos Municipal e do Estado, e tornei-me uma professora absolutamente apaixonada por São Paulo e sua história. Hoje, e já há alguns anos, tenho a sensação de que São Paulo precisa parar de crescer, para que a verdadeira cidadania seja conquistada por todos. Apesar de tudo, posso dizer que não saberia viver noutro lugar.

 


Cláudia Elisabete da Silva é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte você mais um capítulo da nossa cidade. Mande seu texto para milton@cbn.com.br ou agende entrevista no Museu da Pessoa, pelo e-mail contesuahistoria@museudapessoa.net. Conheça outras histórias de São Paulo no meu blog, o blog do Mílton Jung

Conte Sua História de SP/460 anos: o casarão mal-assombrado

 

Por Clarindo Oliveira
Ouvinte-internauta da rádio CBN

 

 

Cada um ao seu estilo, meus pais eram excelentes contadores de histórias. Meu pai, senhor José Américo de Oliveira, falava da sua infância na roça em Minas Gerais e da batalha diária pela sobrevivência na cidade grande na década de 1950. Ele, inclusive, já teve um episódio imortalizado no “Conte Sua história de São Paulo”, da CBN.

 

Minha mãe tinha nome de cantora: Dalva de Oliveira. E também uma linda voz! Vivia cantando as músicas da xará, da Cláudia Barroso e da Angela Maria. Era fã número 1 do Agnaldo Rayol. Quando acabava a energia em casa, ela acendia o lampião a querosene, reunia os filhos na sala e contava fábulas infantis. Eu adorava aquela da Dona Baratinha que não parava de chorar porque o Dom Ratão caiu na panela de feijão.

 

Eu já não tenho esse dom. Trabalho na área de informática, onde a lógica predomina. Ingressei na área na década de 1980, no CPD de um tradicional banco paulista, o Mercantil de São Paulo, na Freguesia do Ó. Foram tempos corridos para mim. Cruzava a cidade todos os dias. Saía da Vila Joaniza, na zona Sul, para trabalhar na zona Norte e à noite estudava na PUC em Perdizes, na zona Oeste.

 

Foi nessa época que conheci o Vasquinho, um sujeito que tinha dois empregos. À noite ele trabalhava num prédio na avenida Rio Branco. Ficava praticamente sozinho nesse local, operando os computadores. Dizia que atrás do prédio existia um casarão com fama de mal assombrado. As pessoas comentavam que o fantasma de uma freira aparecia de vez em quando e que se ouviam barulhos estranhos por lá. Lembro-me de ter comentado que nunca trabalharia num lugar desses!

 

Alguns anos depois, fui trabalhar na Porto Seguro, nos Campos Elíseos. Era um casarão antigo da rua Guaianases, tombado pelo Condephaat e belissimamente restaurado pela empresa.  Havia um jardim enorme, que hoje deu lugar a um prédio muito moderno. Era o tal casarão da história do meu amigo do banco. Estive lá muitas madrugadas, corrigindo erros dos programas, nunca presenciei o fantasma. Calejado pela exatidão dos bits e bytes, acho que os barulhos estranhos seriam de ratos que viviam em tantas construções antigas da região. Já a visão da freira talvez fosse apenas a estátua de um cisne que havia no jardim, envolto pela névoa que baixava. 

 

Mas vai saber…

 

Clarindo Oliveira é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Você também pode contar mais um capítulo da nossa cidade. Mande seu texto para milton@cbn.com.br ou marque entrevista em áudio e vídeo no Museu da Pessoa pelo e-mail contesuahistória@museudapessoa.net. Para ouvir outras histórias de São Paulo, visite o meu blog, o Blog do Mílton Jung