De comunidade e saudade

 


Por Maria Lucia Solla

Ouça “De comunidade e saudade” na voz e sonorizado pela autora

Olá

Estou sentada no chão, numa almofada que fiz no ano passado, com o couro de uma saia cor de capuccino com muito leite, presente da Neyd. Entre o sofá e a mesa de centro, entro num silêncio macio, acolhedor, suspirando, aqui e ali, depois de chegar em casa, interagir com a valentina, tomar uma ducha, ler e responder e-mails.

Por mais gostoso que seja o programa, a viagem, o dia; a hora do pouso é especial. Me preparo para ele, para o ninho, como me preparo para a festa, para a praia, o inverno, o templo. Me ponho como me sinto melhor pra ocasião, e o silêncio é uma forma de sintonizar a nova frequência.

E revejo o dia.

Hoje curti a prima Magaly. Papeamos até! Vi Amanda, filha dela, linda, que desabrocha como num filme que passa rápido. Nossas energias resultam numa receita gostosa, e curtimos cada minuto. Mas chegar lá foi uma aventura! Pela estrada afora, uma reforma aqui, um afunilamento ali, razão nenhuma aparente acolá, e você nunca sabe o que vai encontrar, ou nunca acha o que esperava achar. A rua que ia até ali foi bloqueada, e a gente não chega, nem perto, na hora que pretendia chegar.

No trajeto, passei pelo inferno, pelo purgatório, e só então cheguei ao céu, ao meu destino, que era a casa dela. Falamos sobre isso, sobre os pequenos vilarejos antigos onde moravam todas as gerações das famílias, onde os alunos da escola eram a turminha miúda das mesmas famílias, e o pároco conhecia todos e o pecado de cada um.

Eu, jogada feito folha ao vento, pelo desejo incontrolável de liberdade e de vida, e pela necessidade do estável e da proteção, voltei para casa me roendo de inveja daquela gente do passado imaginado e de um passado mais recente!

Então fiz uma viagem até lá, onde já existe uma mescla esfumaçada entre o que sei por ter vivido e o que sei por ter ouvido dos que viveram. Mas isso não vem ao caso. Minha bisavó portuguesa era muito forte e temperamental, e nunca ouvi menção ao seu marido, meu bisavô, mas seguramente existia ou tinha existido porque era pai da minha avó, que eles trouxeram de Portugal. Minha avó, por sua vez, se apaixonou e se casou com meu avô, que viera, trazido pelos seus pais, da Espanha. Dessa união nasceram meu pai, meu tio e minha tia, e eventualmente eu. Pois bem, morávamos todos na mesma casa: bisavó, avô e avó, pai, mãe, tio, tia e eu. Éramos oito. A casa era grande. Minha bisavó era uma exímia cozinheira e mantinha um restaurante caseiro – que naquele tempo se chamava pensão – e alimentava os graduados de um quartel que existia no bairro. Meu pai saía na rua comigo, e todo mundo cumprimentava. Meu avô me sequestrava e me levava ao bar, para me exibir para os seus amigos, e dizia: mi neta!

Apaixonado pela música sertaneja, dava baforadas divertidas no cigarro de palha que ele mesmo enrolava com o fumo que picava na palma da mão. Tinha sotaque forte, usava um lenço de seda no pescoço, preso por um anel de ouro e nunca saía sem chapéu. Era sertanejo de coração. Minha avó pouco atuava no grupo. Ela era doente e, talvez por isso, mal-humorada. Ou seria o contrário? Meu pai era o galã do pedaço e meu tio o galã número dois – hierarquia era respeitada. Minha mãe nem se fazia ouvir, naquele plantel, e minha tia e ela eram aliadas. Lindas, as duas.

Hoje, para me aproximar de um pedacinho da minha família, para eliminar a intervenção do celular, para saber dos seus viveres, chorares e rires, atravessei obstáculos, vivi aventuras, senti meu corpo cuspir adrenalina com maior dose e frequência do que deveria para o bem dele e para o meu, para poder estar perto da minha tribo.

E você, está perto da tua?

Pense nisso, ou não, e até a semana que vem.

Maria Lucia Solla é terapeuta, professora de língua estrangeira e realiza curso de comunicação e expressão. Aos domingos, escreve no Blog do Mílton Jung