Tudo pode ser página

Por Simone Domingues

@simonedominguespsicologa

Foto de Miguel Á. Padriñán

“O senso comum diz que lemos apenas palavras. 

Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. 

Nós lemos emoções nos rostos, lemos sinais 

climáticos nas nuvens, lemos o chão, 

lemos o mundo, lemos a vida”

Mia Couto

Se eu não fosse psicóloga, acho que seria contadora. Não dessas que cuidam das finanças e patrimônios de pessoas e empresas, mas uma contadora de histórias.

Em vez de contos sobre fadas e princesas, as minhas histórias preferidas remetem a personagens reais: gosto de contar sobre pessoas, sobre o mundo e a vida.

Então, vamos lá!

Quando eu era criança, nossas provas escolares eram feitas pelos professores em mimeógrafo. Se você não viveu na década de 80 nem deve saber o que era isso.  O mimeógrafo era uma espécie de copiadora. Os professores escreviam as atividades numa folha estêncil que continha carbono, colocavam essa folha com os escritos voltados para cima e, ao girar a manivela, o texto era passado para outras folhas de papel sulfite, graças ao feltro umedecido com álcool que ficava nessa máquina.

Na escola que eu estudava, as folhas chegavam com aquele cheirinho fresco de álcool e a parte mais bacana, pelo menos para mim, era colorir a capa da prova que já vinha com um desenho “impresso”, geralmente com ilustrações temáticas, como páscoa, festa junina ou comemorações pela chegada da primavera.

Naquela época, as condições financeiras lá em casa não eram as melhores e comprar o material escolar era quase um luxo. Com muito esforço, meus pais conseguiam garantir o básico para que eu pudesse realizar as atividades escolares.E quando digo básico, era o básico mesmo.

Minha caixinha de lápis de cor, por muitos anos, era composta por lápis pequenos, com cerca de uns 8 a 10 centímetros — o que exigia que não se apontasse muito ou eles acabariam rapidamente — e com apenas 6 unidades, sendo que duas dessas cores eram o branco e o preto. Vamos combinar que o branco não poderia ser considerado um lápis de cor! Isso me garantia 5 cores para toda a minha arte.

Felizmente, minhas colegas de turma mais afortunadas tinham estojos com lápis coloridos maravilhosos, daqueles que eu me perdia em suas nuances de cores, mas sabia exatamente suas quantidades: 24, 36 e até mesmo 48 unidades.

Digo felizmente, porque nossa turma tinha por volta dos 8 anos de idade e isso garantia que minhas amigas me emprestassem algumas cores. 

Verde água! Essa era a minha cor favorita.

E foi assim, que num dia de prova, ao me deparar com uma capa repleta de elementos para serem coloridos, pedi o lápis de cor verde água emprestado para a colega que estava sentada atrás de mim. Feliz da vida, quase pegando o lápis, fui surpreendida pela voz alta e tom severo da minha professora que disse: “se você não tem lápis de cor, isso não é problema de outra pessoa. Não incomode sua colega”. 

O jeito foi pintar com aquelas 5 cores mesmo, com cuidado para que não fugisse aos contornos do desenho.

O tempo passou, e mesmo com muitas dificuldades, que não se limitaram ao ensino fundamental, pude concluir meus estudos com êxito. Pode parecer clichê, mas não tenho dúvida de que a educação formal mudou a minha vida. Me permitiu possibilidades que eu nunca imaginaria alcançar. 

Mas me permita voltar ao lápis de cor.

Não faz muito tempo, fui comprar um livro para dar de presente e me vi, em plena livraria, encantada com as diversas caixas de lápis de cor que estavam dispostas numa prateleira. Pensei que poderia comprar para mim, e agora eu poderia mesmo, uma caixa com o maior número possível de cores. Com todos os tons de verde água ou, se preferir mais atual, azul Tiffany

Não comprei, mas me lembrei dessa história de 40 anos atrás.

E quanta história cabe numa folha de papel… E quanta história cabe numa página de pôr do sol, numa página de xícara de café quentinho, de sorriso, de abraço, do barulho da onda que bate nas pedras, do rosto de quem amamos…

A vida não vem delineada com as margens que devemos seguir. O colorido? Isso será por nossa conta.

Penso na vida como um livro de histórias que vamos construindo: algumas com enredos felizes; outras marcadas por desafios, tropeços e dificuldades.

E não seria isso o significado de viver?

Se a gente busca uma vida que seja sempre feliz, a chance de experimentarmos a frustração é gigantesca. Vida sempre feliz, glamourosa, plena é apenas um recorte da realidade estampada nos posts que vemos por aí.

Aproveite os bons momentos. Eles passam

Busque soluções para os problemas. Eles passam.

Compreenda que coisas acontecem e estão fora do nosso controle. Elas também passam.

E o que fica?

Isso vira história. Isso se torna a sua história.

Como diz Mia Couto: “Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar”.

Simone Domingues é psicóloga especialista em neuropsicologia, tem pós-doutorado em neurociências pela Universidade de Lille/França, é uma das autoras do canal @dezporcentomais, no YouTube. Escreveu este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.