Conte Sua História de São Paulo: o metrô era novidade na ida ao primeiro emprego

Luciana Fátima

Ouvinte da CBN

Na lotação do Metrô

Comecei a trabalhar em 1991, três anos após a inauguração do Metrô Itaquera. Até então, era preciso pegar ônibus direto para a estação Tatuapé. Meu expediente começava às oito da manhã e eu precisava acordar duas horas antes para não me atrasar. A linha 3-vermelha do metrô sempre foi lotada.

Para não sucumbir às agruras do transporte público aprendi logo que eu teria de desenvolver um instinto de sobrevivência. Carregar a bolsa na frente do corpo era mandatório. Não usar sapatos que saíssem fácil dos pés era imprescindível. Pensar rápido e buscar a porta com menos aglomeração, fundamental.

Foi assim que, em um dia de superlotação, encontrei uma brecha no primeiro vagão. Entrei e fui espremida ao longo das 13 estações. Alívio para respirar melhor só na Sé, quando muita gente descia para a baldeação. Chegando ao Anhangabaú, desci do trem, subi as escadas e deparei com um lugar totalmente diferente. Desesperada, olhava e não reconhecia nada.

Enquanto desviava das pessoas que quase me atropelavam, me esforçava para identificar algum prédio familiar. Nada! Será que desci na estação errada? Não! Foi quando lembrei da orientação de uma amiga que me ensinara o caminho no primeiro dia de trabalho: “entre sempre nos últimos vagões, caso contrário sairá do lado errado da estação e vai se perder ao sair para a Sete de Abril”.

Foi como na música dos Titãs: “eu me perdi… na selva de pedra … eu me perdi” 

Depois de voltas e mais voltas na região do Teatro Municipal, atravessei o Viaduto do Chá e encontrei a Líbero Badaró. Ali eu já reconhecia os prédios. Mais alguns metros e chegaria ao meu destino: a rua José Bonifácio, onde era a sede empresa em que trabalhava. Eu estava assustada, desalinhada, suada e atrasada – em pleno período de experiência… E só me dei conta disso ao bater o cartão.

Bater cartão? Antes de começar a trabalhar, essa expressão me era tão abstrata quanto possível. Era um equipamento grande de ferro com um relógio analógico, que controlava os horários da nossa vida – entrada, saída e o intervalo de almoço. Ao lado dele, em um quadro na parede, ficavam os cartões de todos os empregados. Nas primeiras vezes em que bati o meu cartão, não o encaixei no lugar certo e o carimbo da hora saiu errado. Precisei carimbar novamente, sobrepondo os números até acertar o quadradinho. Até hoje não sei como o Departamento Pessoal entendia meus horários.

Eu fazia o possível para não me atrasar. E, depois da lição aprendida, mesmo que só conseguisse entrar nos primeiros vagões do metrô, lá em Itaquera, eu cuidava para atravessar toda a plataforma da estação Anhangabaú e sair do lado certo.

Ouça o Conte Sua História de São Paulo

Luciana Fátima é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte você também a sua vivência na nossa cidade. Envie seu texto para contesuahistoria@cbn.com.br. Ouça outros capítulos no meu blog miltonjung.com.br ou no podcast do Conte Sua História de São Paulo.

Avalanche Tricolor: o revés do Octa que me batizou gremista

Inter 1×1 Grêmio 

Campeonato Gaúcho – Beira-Rio, Porto Alegre, RS

Gre-Nal em 1969 em foto de arquivo

Era uma quarta-feira à noite quando o Grêmio desperdiçou a possibilidade de conquistar, pela primeira vez, o octacampeonato gaúcho: 17 de dezembro de 1969. Empatou o Gre-Nal, sem gols, no recém-inaugurado estádio José Pinheiro Borba, apelidado Beira-Rio.

Eu era apenas um guri de calções curtos, que havia completado seis anos em agosto de 1969. Lembro pouco daquele período, mas imagino que minha infância fosse muito mais simples do que a dos guris de hoje, expostos a todo tipo de estímulos digitais e uma infinidade de informações.

A história pessoal mais marcante daquele 1969 não ficou gravada na minha memória — porém, descobri, muitos anos depois, que estava registrada no meu coração. Ela era sempre contada pelos mais velhos nas reuniões em família, acompanhada de risadas, o que me levou a acreditar que fosse apenas um desses mitos familiares transmitidos entre gerações.

Por incrível que pareça, foi somente na vida adulta, já morando em São Paulo, que os fatos relatados pelos parentes foram confirmados por um dos protagonistas: meu pai, que dispensa apresentação aos caros e raros leitores desta Avalanche.

Vamos aos fatos: a perda do octacampeonato gaúcho fez com que o lado colorado do Rio Grande do Sul entrasse em êxtase. A flauta corria solta pela cidade, e os gremistas, desacostumados com aquela situação, andavam de cabeça baixa, provocados constantemente.

Lá em casa, na Saldanha Marinho, nas vizinhanças do Olímpico, falar de futebol passou a ser um tema proibido pelo meu pai – ao menos por aqueles dias. Eis que um primo de segundo grau resolveu fazer uma brincadeira (sem graça) e, aproveitando-se da minha ingenuidade, vestiu-me com uma camisa vermelha e me fez entrar em casa, com uma bandeirola colorada nas mãos, cantarolando “Papai é o maior”, espécie de hino não oficial do coirmão. Meu pai, irritado, pegou a bandeira e me deu umas palmadas para que eu aprendesse a lição.

Foi durante uma troca de posts em um blog de gremistas, ao contar como inspirei meus dois filhos a torcerem pelo Imortal Tricolor, que meu pai me surpreendeu com um pedido público de desculpas. Ele escreveu que eu havia sido muito mais inteligente do que ele na maneira de criar dois gremistas em casa e demonstrou arrependimento pelo ocorrido.

Além de dar boas gargalhadas ao descobrir que a história familiar era verdadeira, disse ao meu pai que ele não deveria se desculpar, pois a forma desajeitada com que agiu, talvez típica da educação da época, foi justamente o que me moldou gremista. A reação dele foi meu verdadeiro batismo. Foi a lição que precisei para entender qual era o lado certo da força, e eu agradecia por ele ter me conduzido na vida de torcedor.

Aprendi com meu pai, desde aquele dezembro de 1969, que os gremistas foram feitos para o sofrimento, para a luta eterna contra o improvável, para superar adversidades; somos imortais não porque não morremos, mas porque jamais desistimos, sabendo que a derrota de hoje nos fortalecerá para as conquistas futuras.

Sim, porque foi aquele Grêmio derrotado em 1969, que amargou oito anos seguidos de frustrações regionais na sequência, que se tornou forte o bastante para ganhar o título estadual de 77 e conquistar o Brasil, a Libertadores e o Mundial nos anos 1980.

O revés do octa de 1969 foi meu batismo tricolor. Que em 2025 muitos outros gremistas nasçam desta mesma essência épica e sofrida—mas por métodos mais saudáveis. Apesar de que das palmadas que levei, felizmente só restou mesmo o amor pelo Grêmio.

O rádio de madeira no balcão de casa

Por Christian Jung

 Este texto foi escrito originalmente para o site Coletiva.Net

O rádio SEMP em que ouvia o pai. Foto: Arquivo Pessoal

Na casa onde nasci e ainda moro, no período que tinha família com mãe, pai e irmãos morando juntos, havia um rádio de madeira da marca SEMP. Ficava em lugar privilegiado sobre o balcão da sala de jantar. Era nesse aparelho que ouvíamos as notícias, ao longo dos dias. Além da programação musical e os jogos de futebol.

Não por acaso, o rádio sempre esteve muito presente em minha vida e dos meus irmãos: era dentro daquela caixinha de madeira que nós escutávamos a voz do pai. Ele era o locutor do principal noticiário do rádio gaúcho, o Correspondente Renner, e narrador esportivo. O forte apelo emocional que o futebol tinha sobre o público e o fato de o rádio ser o único veículo a levar ao ar as emoções da bola, naquela época, faziam dos narradores esportivos, personalidades.

O pai era famoso pela precisão e velocidade na locução; e o jargão mais conhecido dos torcedores era o grito de gol: “Gol, gol, gol!”. E assim, por muitas vezes, quando andava com ele pelas ruas de Porto Alegre, escutava as pessoas gritando do outro lado da calçada:  “Milton Jung, o Homem do Gol, Gol, Gol!”

Mas voltemos ao SEMP. 

A imagem do velho rádio, que revi dia desses, me remeteu à ingenuidade da minha infância. Escutava o pai mais de uma vez por dia lendo as notícias “chatas de adultos”, que nada resolviam os meus problemas de criança. E diante dos meus momentos de malcriação, a mãe me repreendia e lembrava que o pai, dentro daquela caixinha, estava me escutando. 

Mesmo não achando muito provável, ao menos em frente ao rádio, procurava manter o silêncio. Era uma época em que a figura paterna impunha muito respeito. E os pais costumavam cobrar de forma austera. A bem da verdade, o pai não era desses de dar grandes broncas.

Apesar de desconfiar que estava sendo ludibriado, um fato me deixava em dúvida: ao voltar para almoçar em casa, o pai já sabia de tudo que eu havia aprontado. E ainda me chamava com o seu vozeirão: “Christian, o que aconteceu hoje?”. A ideia de que o rádio teria me delatado persistia. Sem perceber que era a mãe quem me entregava assim que ele chegava em casa. Por um bom tempo respeitei a caixinha de madeira da sala de jantar.

Hoje, é meu irmão que ocupa o espaço – dentro da caixinha de madeira – aliás, dentro do rádio e em rede nacional, mas meus sobrinhos não sofrem do mesmo terror – bem mais espertos e comportados do que o tio, logicamente. 

Sem contar que o modelo “rádio de madeira” virou item de colecionador. Atualmente, são várias as plataformas que permitem a transmissão das notícias e levam a informação a locais muito mais distantes. Não se corre mais o botão do dial para sintonizar a emissora preferida. Basta apertar a tecla ou usar o comando de voz para se ouvir a rádio e o locutor desejados.

Se acessar as notícias ficou mais fácil, o mesmo não se pode dizer da tarefa de unir a família no almoço. Ainda mais quando, na maioria das vezes, as cabeças sequer olham as panelas sobre a mesa porque estão afundadas na tela do celular.

Para que não seja indevidamente difamado: lá em casa, não aprontei muito, e aprendi de mais sobre o poder da comunicação.

Este texto foi escrito, originalmente, para o site Coletiva.Net

Christian Jung é publicitário, locutor e mestre de cerimônias (macfuca@gmail.com)

Conte Sua História de São Paulo 470: um passeio nas lembranças da casa na Augusta

Miguel Chammas

Ouvinte da CBN

Hoje o dia está chuvoso e frio; perfeito para sentar em qualquer canto, calar a voz e permitir que o peito, através das lembranças, chore e ria o quanto e como quiser.

Não será preciso nenhum toque especial, nenhum gole de álcool ou qualquer outro motivador que seja. Basta, apenas, relaxar e esperar as memórias começarem a aparecer.

Bem pensado. Imediatamente colocado em prática. Surge uma dúvida: O que lembrar?

Bem, eu queria voltar no tempo, ir para as décadas de 40/50, e lá, naquele casarão da Rua Augusta, encontrar a minha infância, encontrar meu avô Gidi, minha avó Siti, minhas tias Neide e Zazá, meus primos Sonia e Roberto, minha mãe, meu pai, meu irmão.

Queria subir pelas escadas de mármore, ganhar o corredor, entrar no quarto da frente, encontrar meu avô, já doente, lhe fazer um cigarro de palha para, depois, ler uma boa parte do jornal até ele ressonar tranquilamente.

Depois, continuar percorrendo o longo corredor, ultrapassar o primeiro quarto onde dormiam eu, meu irmão, meu pai e minha mãezinha. Passar, logo em seguida, pelo segundo dormitório que era ocupado por minha tia Neide e meus primos Sonia e Roberto e, finalmente, chegar à sala de jantar onde as reuniões familiares aconteciam. Onde a árvore de Natal era montada todos os anos, e os presentes do ”Papai Noel” eram desembrulhados a cada dia 25 de Dezembro. Onde as macarronadas dos almoços domingueiros eram realizadas, onde os pacotes de doces do Bar Viaducto, comprados por meu pai, eram abertos e os doces devorados por todos, onde nós, crianças, a cada almoço, tínhamos, divididas com justiça, garrafas de deliciosas Tubainas.

Sala onde eu presenciei ainda garoto, os bailecos promovidos por minha tia, recheados de trilhas sonoras com Fernando Albuerne, Gregório Barrios, Lucho Gatica. Bing Crosby, Frank Sinatra, Tommy Dorsey, Glenn Miller e outros sons doces e melodiosos e, depois, passados alguns anos, mudado de assistente a promotor, passei a realizar bailinhos, não de garagem, mas de sala, abrilhantados por “Pick-up e sus Negritos”, amparados por “sandubas” de “Carne-Louca” e espetinhos de Salsicha e Picles enfeitando abacaxis ou outros que tais, regados a Ponche confeccionados com muita guaraná, Cinzano, frutas picadinhas e gelo.

Sala de mil lembranças, inclusive tristes, como os velórios de meu avô e depois de minha tia, quando era transformada em morgue, forrada de panos pretos, e iluminada por velas em castiçais prateados e flores de odor doce e nauseabundo, arejada por um pequeno aparelho emissor de ozônio de barulho irritante.

Queria continuar atravessando o corredor, passando pelo pequeno quartinho ocupado por minha tia, quando de sua solteirice, passando, depois, pela porta do único banheiro da casa que, no seu interior, guardava uma antiga cômoda de madeira usada para guardar materiais de higiene e toalhas de rosto e banho. Tinha, também, uma enorme banheira de ferro fundido, usada de quando em vez, para banhos alegres das crianças que, depois de se refestelarem na água represada, usavam o chuveiro elétrico que ao centro da banheira para o desensaboamento.

Chegaria, então, ao cômodo mais importante da casa, a cozinha, onde a vida inteligente da família se reunia nos dias não festivos para consumirem os alimentos (poucos no pós-guerra), mas elaborados com carinho e maestria por Tia Neide e minha mãe. A cozinha era simples, tinha um fogão de ferro onde eram acesos, com a ajuda de cascas de laranja secas que eram penduradas na barrinha em frente para transformarem os carvões inertes dentro das bocas do fogão, em brasas vivas, e emprestarem o seu calor para uma perfeita cocção dos alimentos.

Tinha também uma mesa antiga, de madeira já bastante gasta nas bordas arredondadas, um armário para guardar pratos e copos, uma pia que, nos seus baixos, tinham sido empilhadas umas tábuas para acondicionarem-se as panelas que, por sua vez, eram escondidas por uma cortininha de pano estampada com pequenas flores azuis.

A geladeira, que chegou um dia, para gáudio de todos, estava instalada ao lado da pia e, pasmem, era alimentada por barras de gelo que recebíamos diariamente através do “geleiro” e sua carroça básica.

Finalmente, descerrar a porta da cozinha e deparar com o cenário de minha pobre, mas alegre infância o quintal que, ainda hoje, povoa minhas lembranças.

No seguimento da porta da cozinha ficava uma escada que descia pela parede até o piso do quintal. Uma pequena parte do quintal, em que estava instalado o tanque onde um dia eu mergulhei como se fora um super-herói e quase matei de susto minha mãe, o corredor lateral e todo o porão da casa eram cimentados, O resto do enorme quintal era em terra bruta, onde além dos varais de roupa, suspensos por taquaras secas existiam, também, alguns mamoeiros, uma goiabeira de frutos vermelhos, onde eu saciava minha gula, uma velha parreira de uvas vermelhas e deliciosas e algumas ervam aromáticas, um enorme e pesado pilão de cimento dos tempos de minha avó e, a minha paixão, uma touceira de hortênsias azuis que eram o meu esconderijo preferido depois de alguma travessura.

Esta era minha casa, meu mundo, minha vida, minha querência querida.  Ah que bom seria poder voltar a ela e matar as saudades que hoje moram no meu coração.

Infelizmente, a realidade é cruel e sei, pesarosamente, ser impossível meu desejo, então tento amenizar estas saudades escrevendo e descrevendo o velho casarão.

Ouça o Conte Sua História de São Paulo

Miguel Chammas é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Juliano Fonseca. Seja você também personagem dos 470 anos da nossa cidade. O texto que você ouvirá a seguir foi adaptado para ser apresentado no rádio.

Escreva a sua história e envie para contesuahistoria@cbn.com.br. Para ouvir outros capítulos leia o meu blog miltonjung.com.br e ouça o podcast do Conte Sua História de São Paulo