Quem cuidará de nós?

Por Diego Felix Miguel

Foto de Georgy Druzhinin

Quantas vezes tivemos a oportunidade de refletir sobre como estamos envelhecendo? Ou ainda, sobre as condições que teremos na velhice? E aqui tomo a liberdade de problematizar um pouco mais, em não limitar essa reflexão a uma visão estritamente biológica.

Com quem chegaremos na velhice e será que essa ou essas pessoas estarão dispostas ou terão condições de cuidar de nós em caso de necessidade?

O aumento da expectativa de vida é uma conquista e talvez a maior evidência do quanto crescemos cientificamente e em estruturas socioculturais que foram fundamentais para a longevidade.

Relações e cuidados na velhice

Muitas mudanças aconteceram nos últimos anos e não necessariamente foram ruins, muito pelo contrário, comprovam que evoluímos e questionamos condicionamentos que reforçam a desigualdade nas relações de poder, o preconceito e a discriminação. 

As novas composições familiares que não atendem um padrão tradicional e heterossexual, o ingresso da mulher no mercado de trabalho, a migração dos filhos motivados por novas oportunidades de trabalho e estudo, são apenas alguns exemplos desse novo contexto social, que torna diferente o olhar e a vivência sobre o cuidado na velhice. 

Desigualdade social na velhice

Infelizmente, no Brasil, não conseguimos resolver um problema que nos submete a um cenário de insegurança e vulnerabilidade: a desigualdade social; aspecto que nos últimos anos têm preocupado a Organização Pan-americana de Saúde, por considerar que na velhice podem surgir demandas complexas que necessitem de cuidados de longa duração, seja em âmbito domiciliar, em serviços de saúde ou de assistência social.

Os cuidados de longa duração, de modo geral, são os cuidados que demandam uma atenção especializada ou de auxílio de outras pessoas – em caráter de cuidadores, atuando no controle de doenças crônicas, reabilitação, residência e demais assistências que garantam a independência, a autonomia e uma maior qualidade de vida na velhice.

Políticas públicas e família

Por outro lado, políticas públicas com foco nos cuidados de longa duração caminham lentamente, e muitas vezes, com discursos que reforçam uma ideia pejorativa sobre os serviços, atribuindo à família a responsabilidade do cuidado, desconsiderando sua composição, a intensidade das relações e os vínculos afetivos constituídos ao longo da vida entre seus membros. Como mencionado na Constituição Cidadã de 1988:

“Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores,

e os filhos maiores têm o dever de ajudar

e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de

amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação

na comunidade, defendendo sua dignidade e

bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

§ 1o Os programas de amparo aos idosos

serão executados preferencialmente em seus lares.”

Cuidados de longa duração

Um exemplo disso são as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) – que antes eram conhecidas por “asilos”, e que trazem em sua história um estigma associado ao abandono, pobreza, solidão e incapacidade.

Além dos aspectos culturais que nos distanciam desses serviços, ainda nos deparamos com fatores econômicos, pois são serviços caros por demandarem um cuidado especializado.

No Mapa das ILPI do Ministério Público de São Paulo, consta que existem cerca de 2257 instituições no estado de São Paulo que acolhem aproximadamente 42 mil pessoas idosas, porém somente 498 dessas instituições são filantrópicas – a maioria de caráter religioso e 48 instituições são públicas.

Desafios do cuidado domiciliar

Ao pensarmos no cuidado da pessoa idosa em casa, também enfrentamos outros desafios, e neste sentido, darei ênfase a dois deles: como estamos vivendo mais, já é uma realidade conhecermos pessoas idosas que cuidam de outras pessoas idosas. Sejam cônjuge ou filhos que cuidam de pais – e vice e versa. Sabemos que há poucas estruturas de apoio para essas pessoas, que muitas vezes sofrem por sobrecarga de atividades e estresse.

Por outro lado, aumentaram significativamente empresas e profissionais que se dedicam ao cuidado de pessoas idosas, porém além de envolver um custo que muitas famílias não possuem condições de arcar, ainda não há a regulamentação dessa profissão, assim como, uma estrutura formal mínima pedagógica que padronizem a formação profissional.

Nos últimos anos, as questões relacionadas ao cuidado a pessoas dependentes, principalmente de pessoas idosas, estão tomando uma maior notoriedade pública, muitas dessas, que emergiram em decorrência da pandemia de covid-19 onde revelou o Brasil como um país idadista, que não valoriza as pessoas mais velhas, em especial, as que demandam de cuidados de longa duração e que vivem em ILPI, que, ainda estão invisíveis paras as políticas públicas brasileiras, conforme aponta a Carta-manifesto “Quem vai cuidar de nós quando envelhecermos?”, lançada em maio de 2023, em menção ao Decreto nº 11.460 de 30 de março de 2023, que instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar a Política Nacional de Cuidados e o Plano Nacional de Cuidados, onde, de acordo com governo, serão consideradas as desigualdades sociais, com recortes relacionados a raça e classe social.

Engajamento e futuro da velhice

Pensar sobre quem cuidará de nós, caso tenhamos essa necessidade em algum momento da vida, é fundamental, assim como, nos engajarmos politicamente, enquanto sociedade civil, para garantir que num futuro próximo, possamos vivenciar a velhice de uma forma digna, com acesso garantido aos cuidados especializados.

Diego Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e membro da Diretoria da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo

E eles só querem viver vivos

Padre Simone está à frente do trabalho do Arsenal da Esperança

Dona Janete escancarou a fome para os brasileiros em uma entrevista na televisão. Uma fala dolorida que deu transparência ao que os números, mesmo que gigantes, às vezes escondem. Não que 33 milhões de famintos vivendo no país que é o quarto maior produtor de alimentos deixem de ser um escândalo, mas quando um desses milhões de rostos surge diante de nós, é chocante. 

“Domingo a gente não tinha nada para comer. Eu estou desempregada, está muito difícil. Eu estou catando latinha, mas não dá”

Foi o desabafo da Dona Janete, ao responder a pergunta feita pela repórter do RJTV, na TV Globo, enquanto esperava por uma refeição na fila do programa da prefeitura do Rio que distribui alimentos. Todos choramos com ela. Exagero. Nem todos são suficientemente sensíveis para perceber o que significa ter fome.

Hoje cedo, em mais uma entrevista com candidatos à presidente da República, André Janones, do Avante, respondeu de bate-pronto à pergunta que escolhemos para abrir essa série no Jornal da CBN. “A desigualdade social” é o que ele elegeu como prioridade a ser enfrentada a partir de primeiro de janeiro de 2023. Faz sentido. 

Na pesquisa realizada para me preparar para essa série iniciada na terça-feira encontrei dois dados que mostram a dimensão da desigualdade de renda e de patrimônio, no Brasil: os 10% mais ricos no Brasil ganham quase 59% da renda nacional total; o 1% mais rico possui quase a metade da fortuna patrimonial brasileira.

Números e percentuais que se transformaram em corpo e alma na tarde desta quinta-feira quanto tive oportunidade de visitar a antiga Hospedaria dos Imigrantes, no bairro da Mooca, zona leste de São Paulo. O local que no passado recebia famílias europeias refugiadas de sua terra natal, atualmente abriga cerca de 1.200 pessoas que vivem em situação de rua — brasileiros e estrangeiros. Obra do Arsenal da Esperança, liderada pelo padre italiano Simone Bernardi, que assumiu a missão de levar em frente o projeto do Semig — Servizio Missionario Giovani, iniciado em 1996, por ação de Ernesto Olivero e Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida.

Meu carro de rodas altas e câmbio automático, minha calça com caimento elegante e os sapatos de grife italiana eram extravagantes diante da simplicidade das pessoas que encontrei em uma enorme fila na calçada da rua Doutor Almeida Lima, 900, portão de entrada da Hospedaria. Todos homens e a espera para retornar ao espaço onde estão cadastrados e recebem alimentação, roupa lavada, uma cama para dormir, acesso a cursos, atendimento médico e respeito —- sim, essa é a maior demanda de cada um daqueles que estavam ali: o respeito que qualquer ser humano tem direito a receber em vida.

O local é espaçoso, tem árvores e canteiros bem cuidados. Tem infraestrutura antiga e bem preservada. Mantém a mesma arquitetura que recebia os europeus, desde o fim do século 19 — uma história lembrada por fotos em preto e branco que estão em todas as dependências. Os locais para dormir se apresentam com fileiras de beliches, o restaurante tem longas mesas, capazes de servir 600 refeições por vez. A cozinha industrial é ampla assim como a lavandeira, onde um sistema organizado e sistemático é capaz de receber, lavar e devolver em mãos as roupas das milhares de pessoas que circulam no local. Tem salas de aula e para cursos. Tem bar e bazar. Tem biblioteca, também.

Especialmente, o que se vê nos rostos sofridos e passos pesados dessa gente que circula com seu fardo nas dependências da Hospedaria é a tentativa de revelar a esperança de uma vida melhor. Fui recepcionado por sorrisos e cumprimentos respeitosos. Havia olhares desconfiados, é claro. Afinal, eu era a figura estranha naquele cenário, com minha vida privilegiada e desigual, muito desigual. Distante da vida que eles vivem. 

O passeio por pouco mais de uma hora foi na companhia do Padre Simone, que chegou ao Brasil, em 1996, e diz ter aprendido português ouvindo a rádio CBN. Fico feliz em saber que uma das nossas missões foi cumprida — a de educar pela comunicação —, ao mesmo tempo que fico constrangido ao perceber quão pequeno ainda é nosso trabalho diante da messe que pessoas como o padre e sua equipe de missionários e voluntários  assumem.

Mais do que os políticos e agentes públicos, mais do que os doutores e os senhores, mais do que qualquer um dos que vivem em nosso entorno, mais do que nós mesmos, são eles os verdadeiros construtores das pontes que podem diminuir a desigualdade que impera no Brasil. Que nos fazem acreditar que é possível tornar realidade um dos lemas que os inspira no Arsenal: voglio vivere vivo (quero viver vivo).

Conheça aqui um pouco mais sobre o trabalho do Arsenal da Esperança