Procuram-se engraxates de rua!

 

Engraxate

 

O evento pedia sapato social, destes que se combina com o terno: preto para o cinza, caramelo para o azul marinho. Como admiro a peça, não costumam me faltar. Por isso, nem me preocupei em visitá-los no guarda-roupa com a devida antecedência, fato que me causou um susto e uma descoberta. No momento em que os tirei do sapateiro, percebi que permanência deles fechados no armário, durante todas as férias, e o descuido de quem os guardou lá – provavelmente, eu mesmo – deixaram algumas marcas esbranguiçadas no couro. Nada que uma boa engraxada não resolvesse. Embaixo da pia, onde costumava guardar graxa e flanela, não havia mais nada. A velha caixinha com os apetrechos para o sapato parece ter se desfeito no tempo ou ter sido jogada fora em uma das últimas arrumações que o ambiente enfrentou. Nada que atrapalhasse meus planos, pois bastava ir até um engraxate e tudo voltaria reluzente para casa. Foi quando percebi que há muitos anos não passo perto de um desses engraxates de rua que, ficavam sentados aos seus pés fazendo arte no pisante, enquanto nós, no alto de um trono de ferro, líamos o jornal e trocávamos alguns murmúrios concordando ou não com os comentários que o artista fazia. “E aí, como estão coisas?”, “viu a última do prefeito?”, “tá precisando de chuva, não!?”, “andam dizendo por aí que ….”. E a gente, humm, é, talvez, quem sabe, meu Deus do Céu! Nada muito longo, mas o suficiente para ele entender a personalidade do freguês. Havia, também, uns pivetes com idade para serem nossos filhos, ou melhor, sobrinhos, já que todos éramos chamados de tio. Esses não tinham lugar fixo, carregavam suas caixas de madeira nas costas em busca de trabalho, ficavam na porta dos restaurantes e lugares chiques de onde saíam homens de terno e sapato social desfilando uma suposta elegância.

 

Puxando na lembrança, a imagem que tenho é dos engraxates do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Voltando ainda mais no tempo, lembro dos que sentavam na Praça da Âlfandega, ao lado da sede do Banrisul, no centro de Porto Alegre. É bem provável que tenha passado por outros tantos lá no Sul ou aqui na cidade, mas a memória não ajuda muito. Há algums meses, uma ouvinte da rádio escreveu para o Conte Sua História de São Paulo sobre o fim da sapataria do bairro onde mora, fenômeno que deve ter se repetido em outros lugares, pois o ponto comercial ficou muito caro para serviço tão mal remunerado. Deve ter virado farmácia ou posto de gasolina. Com a falta de credibilidade da praça pública, os engraxates de rua foram sendo extintos. Nestes tempos de violência urbana, quem se atreveria ficar exposto a assaltantes? Como boa parte do comércio, a sapataria vai para dentro do shopping e se oferece como sendo do futuro, torna o serviço mais caro e impessoal. Somos recebidos por moças e nossos sapatos somem atrás de um balcão sem que o sapateiro sequer olhe para nossa cara. Atendem o sapato, não mais a freguesia. Talvez esteja querendo demais. Em um mundo no qual tudo é descartável, vai ver o sapato não merece mais retoques. Sola, meia-sola ou apenas um pano para deixá-lo nos trinques? Nada vale mais a pena. Ficou velho, perdeu o brilho, bota fora e compra outro.

 

Se você conhece lugares onde os engraxates ainda exercitam seu talento, não deixe de me avisar. Pois, por enquanto, o “vai uma graxa, aí, cidadão!?” está só na saudade.

 

(e os meus sapatos ainda estão a espera do brilho)

 

PS: Imagem da Galeria de Giordano Pedro no Flickr

Os buracos da República

 

Buracos da Republica

Por Devanir Amâncio
ONG Educa SP

Há seis meses os dois principais buracos da praça da República causam transtornos aos pedestres. O engraxate Francisco Manoel da Silva, 68, o Paraíba, protestou e encenou para mostrar como uma senhora de idade caiu, ao se enganchar no cone que fica dentro do buraco. “Em setembro, os funcionários da Prefeitura colocaram um cone aqui e um cavalete no outro buraco e nunca mais voltaram. E tem mais, se alguém vier me incomodar por causa da história desses buracos, vou direto à Delegacia do Idoso”, adverte o engraxate.

Paraíba trabalha há 40 anos na praça da República e diz nunca ter visto nenhum Prefeito andando na praça.

Conte Sua História: Pó, graxa e infância

Por Cesar Cruz
Ouvinte-internauta do CBN SP

Ouça o texto Pó, graxa e infância com sonorização de Cláudio Antonio

Fui provocado assim que pisei na calçada:

– Esse pisante aí ta dando medo, hein tio?

O menino, de uns oito anos, sotaquezinho e jeitão cariocas, surgiu sabe-se lá de onde. Era como se ele estivesse à minha espera atrás do tapume daquela obra e, agora, enquanto eu descia a rua em direção ao meu carro, ele seguia colado em mim, lado a lado, me olhando e esperando uma resposta àquela sua provocação.

“Mas o que foi mesmo que ele disse?” Só então atinei com as idéias: “Pisante, é claro!” Ele se referira ao meu sapato. Estanquei o passo e olhei para baixo. O garoto tinha razão, estavam mesmo de dar medo. Nojentos e asquerosos, para dizer a verdade. É que eu havia acabado de sair de uma visita do tipo mais imundo que conheço: visita a canteiro de obras; e aquela era mesmo uma obra sujíssima! Isso aconteceu ali na zona sul, no bairro da Saúde, travessinha calma da Av. Jabaquara.

– O que tem meu sapato? – indaguei para testar o menino.

– Pô, brother! Tá nojento!

Não dava mesmo pra negar…

– É… você tem razão, amiguinho – concordei -… é que saí da obra e…

– Vamos engraxar, então, tio? – interrompeu-me, prático e determinado.

A densa poeira parecia ter oxidado o meu cérebro, pois só então reparei que o menino carregava uma caixa de engraxates pendurada em um dos ombros. Estava tudo explicado. Era um engraxate mirim. Coisa raríssima de se ver, assim, solitário, numa rua qualquer, já que hoje eles trabalham em grupos, bolsões organizados, muitas vezes com o amparo de adultos. Mas esse era independente e autônomo! E muito perspicaz! Eu tinha que admitir que a jogada de marketing do guri era de fato muito boa, ele merecia crédito! Seria uma desonra da minha parte resistir a ele… Além do mais, meus
pisantes estavam mesmo de dar medo.

Eu topo. – disse. E quem é o artista da graxa, você? – desafiei-o, com um falso ar de desdém.
– Opa, tio! – admirou-se ele – Você vai ver só a minha sshcova nerrvosa
– Vamos ver então!

O problema é que eu não tinha onde me sentar. E eu não estava disposto a me
postar em pé, recostado no muro duma casa, em plena calçada, como ele tinha
me sugerido. Não, isso não.
.
A única possibilidade seria usarmos o meu carro. Então abri a porta do
passageiro e sentei-me virado para o meio-fio, com os pés apoiados, um no
chão, outro sobre a caixa de madeira do guri.

Nos minutos que se seguiram, fiquei ali, na incômoda posição de um rei com
um súdito prostrado aos seus pés.

O delgado e ágil Elton (era esse o seu nome) esmerou-se em velozes e lépidas estaladas de flanela e ritmados giros de escova. Obediente às eventuais batidas secas que soavam na caixa, fui alternando o pisante esquerdo e o direito sobre o apoio. Elton usava uma garrafinha plástica para borrifar sobre o couro, vez por outra, uma aguinha misteriosa, mas logo voltava a “flanelar” o calçado, extraindo dele um brilho quase metálico.

Enquanto o menino trabalhava, me contava sua vida. Contou-me que morava com a mãe e dois irmãos na periferia, todos mais velhos. Vieram do Rio, havia dois anos, tentar a sorte em São Paulo. Um dos irmãos era ladrão e estava preso. A mãe sentia um grande desgosto por isso.

Os outros dois irmãos, uma menina de onze anos e um rapaz de dezoito, moravam com eles. Também trabalhavam e entregavam religiosamente todo o dinheiro recebido à mãe. Fiquei curioso para saber em que uma menina de onze anos poderia trabalhar, mas achei melhor não perguntar, já que o próprio Elton, bem mais novo, vivia pelas ruas, curvado aos pés de adultos desconhecidos, como eu.

Ele me contou ainda que guardava parte do que ganhava para comprar uma moto quando fizesse dezesseis anos. Tentei lhe explicar que moto só se pode pilotar depois dos dezoito, mas ele me disse que no seu bairro, com quinze, dezesseis anos, todos já pilotam uma.

Terminado o serviço, fiquei surpreso ao saber que aquele belo trabalho me custaria apenas três reais. Dei-lhe dez, não por que sou muito generoso, não! Foi por puro merecimento! Sugeri ao Elton que guardasse o troco para a compra da moto, mas o fiz prometer que só o faria aos dezoito anos e que compraria também um bom capacete. Ele concordou com um sorriso maroto… Fiquei na dúvida se cumpriria mesmo a promessa…

Enquanto eu tirava o carro da vaga, fiquei olhando-o pelo retrovisor. Voltou para a frente da obra e se encostou no tapume. Dali a pouco, certamente outro incauto deixaria a obra e seria provocado pelo menino engraxate: “Esse pisante aí ta dando medo, hein tio?”.



Participe do Conte Sua História de São Paulo. Envie um texto ou arquivo de áudio para contesuahistoria@cbn.com.br. O programa vai ao ar aos sábados, às 10 e meia da manhã, no CBN SP