Durante a minha infância, frequentava o Center 3 com minha mãe. Não havia outro shopping perto de casa. Eu adorava essas visitas. Não para fazer compras. Para brincar. Havia uma rampa de acesso aos andares do shopping em espiral. Muito alta e com um corrimão feito de triângulos de vidro. Eram todos enfileirados desde baixo até o alto. Que era tão alto que se perdia na escuridão do espiral.
O prédio do Center 3, onde havia duas torres ocupadas pela Cesp – a Companhia Energética de São Paulo, foi projetado pelo arquiteto Jorge Wilheim, em 1969. Imagino que tenha sido dele a ideia daquela rampa, que poderia ter sido apenas um local de passagem de um andar para o outro, mas que era instrumento para despertar tantos sentimentos.
O espiral era incrível! Eu podia correr para cima e para baixo, quando o shopping estava vazio. No percurso, por si só uma diversão; me hipnotizava, olhando a espiral e a sequência de triângulos. Aqueles triângulos que eram ao mesmo tempo fascinantes e ameaçadores.
— Cuidado com o vidro, repetia minha mãe, enquanto eu me divertia.
Muitos anos depois, já adulta, presenciei o incêndio daquele prédio, em 1987. Meu ponto de ônibus ficava bem em frente e assisti, melancólica e triste, ao fim daquele canto de São Paulo que acompanhou a minha infância.
A implosão precisa e competente de parte do prédio, após o incêndio, foi a despedida mais paulistana que aquela obra de arte poderia ter.
Nem sempre queremos algo novo, mas, frequentemente, nesta cidade, esse algo se impõe.
Faz parte dos aprendizados dos que moram aqui
Gladys Prado é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Aproveite e envie a sua história da cidade. Mande seu texto para contesuahistoria@cbn.com.br. Para ouvir outros capítulos da nossa cidade, visite o meu blog miltonjung.com.br ou ouça o podcast do Conte Sua História de São Paulo.
Um fratura nos minúsculos sesamóides, dois ossinhos tão ridículos quanto necessários do dedão, me proporcionou uma série de experiências baseadas em observações e agitou a semana que prometia ser de pasmaceira no noticiário e entediada no cotidiano. A começar pela prova de quanto o corpo humano pode ser frágil e o ser humano, dependente.
Com a necessária imobilização do local fraturado, perde-se o movimento de uma das mãos e se restringe uma série de atividades para as quais damos pouca importância mas que podem se transformar em desafios que exigem malabarismo e súplicas de solidariedade. Tente amarrar o cadarço do sapato com uma só mão ou abotoar o punho da manga da camisa sem a mão do lado oposto – sim, eu sei, a humanidade tem coisas mais importantes com que se preocupar.
Eu também, tenho. Trabalhar, por exemplo.
Por isso me espantaram dois dos profissionais de saúde que me atenderam nesses dias. O primeiro insistia que eu aceitasse o atestado médico me dispensando por uma semana. O outro, depois de saber que eu seguia dando expediente, concluiu: “então você é o dono”. Nem do meu nariz! Que, aliás, tentei coçar à noite e arranhei com a órtese de mão que estou “vestindo” em substituição ao gesso desproporcional que o hospital me obrigou a colocar por ser o procedimento mais barato.
Observei também a reação dos amigos e parentes diante do incidente. Foi reveladora de como temos dificuldades de encontrar a forma mais apropriada de solidariedade. Um, antes de eu terminar minha triste história – e eu só queria ter o direito de externalizar minha dor -, começou a falar dos acidentes que ele sofreu. Todos muito piores do que o meu. Sai da conversa arrasado: os casos dele eram insuperáveis.
Teve o que exercitou a empatia, sempre recomendável nas relações humanas. Ao explicar que havia quebrado o sesamóide, ele logo se uniu a mim para dizer que é a “pior coisa que podia acontecer”. Ao deixar a conversa passei a cogitar a morte no próximo tombo que levar.
Um terceiro lamentou meu azar de ter caído quando faltavam apenas três degraus para chegar ao chão. Teria sido melhor que eu caísse da parte mais alta, então?
Experiência pior foi o que os exames laboratoriais me proporcionaram. Nem tanto pelo exame em si, nem pelo atendimento recebido – todos os funcionários eram muito simpáticos. Enquanto esperava as imagens da tomografia computadorizada feita em equipamentos ultramodernos, me vi na posição de observador de um diálogo do período jurássico, protagonizado por dois clientes na sala de espera.
Após a TV anunciar que o governo reduziria o tempo para a terceira dose da vacina contra Covid, o senhor, que parecia mais velho do que eu, balbuciou algo para a moça, que parecia mais jovem do que eu. Foi a senha para o início de uma conversa que me faz saber que ambos tinham contraído a doença e tomado as duas doses da vacina. Daí pra frente foi uma sequência de absurdos. Ela reclamou que ninguém sabe o que está fazendo porque a orientação sobre número de doses e tempo de intervalo muda a todo momento: “eu vou esperar uns sete meses antes da terceira dose pra ver o que vai acontecer com quem tomou”. Ele contra-atacou: “conheço uma monte de gente que passou mal, eu não vou tomar o reforço. Até já peguei Covid!”.
No segundo episódio da conversa, os dois passaram a relatar sequelas deixadas pela doença. E o senhor, do alto de sua sabedoria, recomendou a ela um chá sei-lá-do-que que tem o mesmo “princípio ativo” de um remédio que está sendo desenvolvido na Alemanha para conter os males deixados pela Covid-19. A moça que havia revelado descrença na ciência que desenvolve vacinas, arregalou os olhos e, antes de se despedir, comentou: “se esse chá funciona mesmo, será uma revolução”. Pegou os exames, despediu-se e foi embora batendo firme os saltos no piso, levando a tiracolo a crença na sabedoria popular e o negacionismo à ciência.
Confesso meu desejo de ter intervindo na conversa ao menos para saber o nome do chá milagroso que resolve o que conhecemos por Covid longa. Preferi resguardar-me em minha própria ignorância. E resignei-me ao papel de observador, apesar de estar convencido de que se eu prestasse mais atenção na minha vida do que na dos outros, talvez tivesse percebido que havia um degrau no meio do caminho. E meus sesamóides estariam intactos.
Há alguns anos, um amigo meu nascido e crescido em São Paulo recebeu uma herança. Cansado das contravenções impunes e da pesada carga tributária sem retorno, tomou nas mãos o globo terrestre e passou a meditar sobre qual país seria ideal para morar. A Suíça foi o escolhido. Passou então a morar em um condomínio de luxo e comprou um belíssimo automóvel.
Após alguns dias no novo domicílio, ao entrar em seu apartamento, toca o interfone e uma voz pede que compareça a entrada do condomínio. Dá de cara com um policial, que com uma fita métrica nas mãos mostra que seu carro foi estacionado alguns centímetros além da guia, e, portanto ele, o policial, iria autuá-lo por desrespeito a lei.
Passado algum tempo, após multas e mais multas, chega ao condomínio bastante irritado e dá um tapa em uma planta. Ao entrar em seu apartamento o zelador lhe informa que acaba de multá-lo por agressão a vegetação. Foi a gota d´agua! Arruma as malas e retorna a São Paulo.
Outro dia desses, ao recordar esse episódio, passei a observar com mais atenção o comportamento de nós paulistanos.
No trânsito: motoristas falando ao telefone celular enquanto dirigem. Carros parados em fila dupla com pisca alerta ligado em vias de mão dupla, e, portanto, impedindo a passagem de veículos indo na mesma direção. Carros fazendo conversão sem acionar o pisca-pisca. Pedestres que atravessam fora da faixa. Carros que não respeitam pedestres. Motociclistas aos montes vindo em ambos os lados dos automóveis em alta velocidade, sem qualquer regulamentação, etc…
No Metrô: ninguém ou quase ninguém obedece aos avisos
Nas escadas rolantes: apesar dos avisos, nenhum deles é seguido pela maioría dos usuários
E assim por diante…
Julio Tannus é consultor em estudos e pesquisa aplicada e co-autor do livro “Teoria e Prática da Pesquisa Aplicada” (Editora Elsevier). Às terças-feiras, escreve no Blog do Mílton Jung