De a raça humana

 

Por Maria Lucia Solla

Ouça este texto na voz e sonorizado pela autora

Você tem medo de quê?

Não precisa pensar muito; basicamente, um tem medo do outro. Nos escondemos, disfarçamos, para não ficar cara a cara um com o outro. Escondemos nosso tesouro na bolsa, no cofre, na gaveta, no banco, no pote de café, no fundo do coração e não nos sentimos, nunca, a salvo.

Há homens e mulheres – assim como você, como eu – que vivem para matar, trapacear, trair, roubar, torturar, esfaquear, queimar com colheres aquecidas na chama do fogão, diante dos teus olhos e dos olhos dos teus filhos, tenham eles a idade que tiverem. As instituições que protegem crianças de filmes que trazem cenas violentas, cenas de sexo, recheadas de palavrão e pornografia, nada podem fazer. Lidam com a superfície, enquanto o outro, teu irmão de raça, atravessa tuas portas e tuas janelas e expõe sua selvageria sem pudor, exalando, ele também, um cheiro acre de medo e de suor.

Quais são os teus valores?

Temos muitos, os dizíveis e os indizíveis. Os nossos sempre válidos; os do outro quase sempre inválidos. Somos amordaçados por leis sociais para não dizermos o que pensamos. Por quê? Porque nem eu nem você somos os santos que apregoamos ser. Vivemos nos dominando, nos controlando, nos ajustando e acabamos formando um bando disforme de desnorteados e desajustados, de fazer dó. Os homens que invadem as casas, torturam e abusam sexualmente de adultos e crianças são teus irmãos, meu amigo, e não pensa que são sempre pobres coitados, não. Muitos e muitas deles e delas compram na Oscar Freire e fazem flutuar de suas carteiras notas polpudas, com dedos sujos de sangue, de vergonha e de dor, e seus narizes manchados de pó.

Onde você vai se esconder?

Numa fortaleza debaixo da terra? Num cano de esgoto carregando um revólver de ouro como fez Kadhafi, antes de ser abusado, machucado, quebrado, torturado e finalmente morto? Onde? Num carro blindado, guiado por você embebedado, injuriado, desanimado, apavorado de perder o que não tem? Debaixo da cama? Atrás do papai e da mamãe?

Debaixo da toga o juiz treme, sob a cartola o cartola se espreme, vestido de fraque o gabola esconde a fraqueza, a moleza, sua falta de educação e de gentileza, que parece ter saído de moda carregada pela pressa de chegar a lugar nenhum.

Você tem medo de quê?

Pense nisso, ou não, e até a semana que vem.

Maria Lucia Solla é professora de idiomas, terapeuta, e realiza oficinas de Desenvolvimento do Pensamento Criativo e de Arte e Criação. Aos domingos escreve no Blog do Mílton Jung