Quero te fazer um convite para iniciarmos essa conversa.
Feche os olhos por alguns instantes e reflita:
Quem você gostaria de levar com você na sua velhice?
Confesso que, no meu caso, a resposta não seria singular, e sim plural.
Lembrei de Spinoza, filósofo holandês que nos ensina sobre os afetos, essas transformações que ocorrem em nós, boas ou ruins, quando estamos em contato com outras pessoas e com o mundo. Afeto é justamente isso: o ato de afetar e ser afetado, registras em nós as marcas deixadas pelas experiências.
Ao pensar nisso, vários nomes vieram à mente. Memórias que relaxaram meu rosto e abriram um riso fácil, despretensioso. São vocês que nortearam meus pensamentos e que, em minha imaginação, gostaria de ter comigo daqui a 20 ou 30 anos.
Mas será que é assim que a vida funciona?
A vida nos ensina constantemente com os imprevistos e incertezas. Até lá, será que essas pessoas permanecerão ao meu lado? Continuarão sendo capazes de me fazer sorrir apenas por existirem nas minhas lembranças?
Não sei. Talvez seja pouco provável. Afinal, a vida não é linear. tudo se transforma, novas relações surgem, vivências inéditas nos atravessam.
Somos afetados o tempo todo. Descobrimos afinidades inesperadas, criamos laços que antes nem imaginávamos. Nesse curso imprevisível da longevidade, somos também ressignificados.
Com certeza essas pessoas estarão comigo de alguma maneira, seja presencialmente na minha vida ou nos afetos que se eternizaram no curso da vida, sejam eles positivos ou negativos.
Às vezes penso que os afetos são eternos, mas isso não significa que mantenham a mesma intensidade. O importante é não nos fecharmos ao novo, às experiências que, no passado, talvez não estivéssemos prontos para viver, mas que podem se tornar significativas o suficiente para permanecerem vivas até nossos últimos dias.
Os amores e os afetos que vivenciamos são diferentes, possuem intensidades distintas. Podem coexistir ao longo das décadas. Amar uma pessoa não anula a possibilidade de amar outra. Que garantia temos de permanecer com as mesmas pessoas até a velhice?
Pois é. Muitas perguntas, poucas respostas.
Como princípio básico, vale, então, considerar: mantenha sua rede afetiva nutrida de bons encontros e memórias, e esteja aberto a ressignificar as possibilidades de afeto conforme cada experiência. Não desperdice os vínculos que são verdadeiramente significativos para sua vida, eles podem, sim, ser eternos.
E você? Quem levaria para a sua velhice?
Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Departamento de Gerontologia da SBGG-SP. Mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung
“Não é o outro falar de nós, é nós falarmos sobre a nossa existência”
Diego Félix Miguel
Uma geração de lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans, travestis e transgêneros chegou à velhice carregando marcas de rompimentos familiares, da epidemia de HIV/Aids e de um sistema de saúde que muitas vezes as afasta, em vez de acolher. Nesse cruzamento entre idade, gênero, orientação sexual e desigualdade, estão as velhices LGBT+, tema tratado por Diego Félix Miguel, doutorando em saúde pública e presidente do departamento de gerontologia da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, em entrevista à jornalista e psicóloga Abigail Costa, no programa Dez Por Cento Mais.
Velhices plurais, vulnerabilidades acumuladas
Diego propõe que o ponto de partida seja enxergar o envelhecimento como conquista coletiva. “Eu acredito que nós precisamos pensar na longevidade como uma grande conquista”, afirma. O aumento da expectativa de vida está ligado a avanços científicos, tecnológicos e ao acesso à informação. Essa conquista, porém, não é distribuída da mesma forma para todas as pessoas.
Ele lembra que desigualdades atravessam a vida inteira: raça, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, classe social. “Quando falamos de velhices, nós estamos falando de pluralidade”, resume. A ideia de “velhices”, no plural, tenta corrigir a imagem homogênea da pessoa idosa e expõe grupos que chegam à longevidade sob maior risco de violência, violação de direitos e isolamento.
Ao tratar especificamente das velhices LGBT+, Diego volta no tempo. Ele lembra que o movimento ganhou mais visibilidade a partir dos anos 1960, quando parte da população LGBT começou a se colocar publicamente. Esse gesto teve custo alto: “Muitas pessoas romperam vínculos familiares, porque, ao invés de receberem conforto e segurança, encontravam violência”, explica.
Longe de suas famílias de origem, essas pessoas formaram redes afetivas também conhecidas por famílias de escolha. O alicerce dessa rede, porém, foi abalado nas décadas de 1980 e 1990, com a epidemia de HIV/Aids. “As pessoas sobreviventes desse episódio são as que chegaram na velhice hoje”, diz Diego. Muitas perderam amigos, companheiras e companheiros, e envelhecem com redes de apoio fragilizadas.
Idadismo, saúde e medo de buscar cuidado
Além da história marcada por perdas e exclusões, essas pessoas enfrentam um obstáculo que atinge toda a população idosa, mas com impacto específico sobre quem é LGBT+: o idadismo, o preconceito baseado na idade. “Um dos aspectos que o idadismo traz é a invisibilidade da sexualidade e do gênero na velhice”, aponta.
Na prática, isso significa ver a pessoa idosa como alguém sem desejo, sem vida sexual, sem identidade de gênero que mereça atenção. Se esse apagamento já pesa sobre idosos em geral, o efeito se agrava quando se trata de uma mulher lésbica, de um homem gay, de uma pessoa trans ou travesti.
Diego cita pesquisas que mostram um padrão preocupante: “Muitas pessoas LGBT deixam de frequentar os serviços de saúde, de fazer exames preventivos ou acompanhamento médico, justamente por medo de sofrerem violência”. Esse medo nasce de experiências anteriores, em que não foram tratadas pelo nome social, tiveram sua identidade de gênero desconsiderada ou ouviram comentários discriminatórios.
Quando finalmente procuram ajuda, costumam esperar até o limite da dor ou da doença. E ainda correm o risco de enfrentar um atendimento violento, explícito ou sutil. Diego descreve situações em instituições de longa permanência para idosos em que o acolhimento é condicionado à ideia de que a pessoa LGBT precisa “se encaixar” em uma norma que nega quem ela é. Em alguns casos, pessoas trans são pressionadas a destransicionar para serem aceitas pela instituição. “Isso é perverso, é violento, é sutil, é silencioso e dói tanto quanto uma violência física”, resume.
Segurança, trabalho e renda: o impacto da exclusão
A discussão sobre saúde se mistura com outra camada de vulnerabilidade: a segurança financeira. Muitos idosos LGBT viveram na informalidade. Diego lembra que a escola, para uma parte das pessoas trans, era um ambiente hostil; o mercado formal de trabalho, pouco acessível; a discriminação, recorrente.
O resultado aparece agora, na velhice, em trajetórias marcadas por baixa renda, aposentadorias insuficientes ou inexistentes e dependência de redes de apoio que nem sempre existem. “São pessoas que sobreviveram a múltiplos processos de violência e demandam um cuidado maior em saúde mental”, explica. Depressão, pensamentos suicidas e isolamento social surgem como sinais de alerta.
Diego reforça que o isolamento é um fator central para a perda de autonomia e independência na velhice, o oposto do que se busca quando se fala em envelhecimento ativo: viver com dignidade, com possibilidade de decisão e com apoio adequado depois da aposentadoria.
Ambientes seguros e o papel dos profissionais
Uma parte importante da conversa passa pela formação de profissionais e pelo modo como eles se apresentam aos pacientes. Do preenchimento de um formulário à maneira de fazer perguntas, detalhes revelam se aquele espaço é acolhedor ou excludente.
Diego destaca um ponto simples, mas decisivo: abandonar perguntas que presumem heterossexualidade, como “qual é o nome do seu marido?” ao atender uma mulher. Para ele, o cuidado começa ao abrir espaço para que a própria pessoa nomeie sua realidade. Quando o serviço se mostra preparado para isso, a percepção muda. “Quando pessoas idosas LGBT chegam em um ambiente e percebem que há profissionais assumidamente LGBT, elas se sentem mais confortáveis e confiantes”, observa.
Em alguns países, profissionais aliados exibem símbolos, como a bandeira do arco-íris, para indicar que aquele consultório é um espaço sem discriminação. O objetivo não é criar um rótulo, mas sinalizar que a conversa sobre gênero e sexualidade pode acontecer sem medo.
Isso, porém, não elimina o risco de reforçar estereótipos. Diego alerta que, na tentativa de “fazer o certo”, serviços podem criar soluções que, na prática, segregam — como reservar um “quartinho” específico para uma idosa trans dentro de uma instituição, em vez de garantir o direito de ela viver no espaço das mulheres, em condições de igualdade.
Representatividade e a recusa da neutralidade
A presença de pesquisadores e profissionais LGBT na produção de conhecimento sobre velhices LGBT é outro eixo que Diego considera decisivo. “Não é o outro falar de nós, é nós falarmos sobre a nossa existência”, afirma.
Ele menciona o movimento de pessoas trans que reivindicam o direito de estudar e pesquisar suas próprias experiências de envelhecimento. A defesa é direta: políticas públicas, práticas de cuidado e pesquisas ganham outra profundidade quando formuladas por quem vive na pele as consequências do preconceito.
Nesse contexto, Diego rejeita a ideia de neutralidade como valor. A referência a Paulo Freire ajuda a organizar o raciocínio. “A neutralidade nada mais é do que a covardia de não se ter um posicionamento”, diz. Silenciar diante da discriminação não elimina o conflito; apenas cede espaço para que a estrutura de poder vigente siga intacta.
Ele lembra que já existem projetos de lei no Congresso voltados à criação de uma política nacional para pessoas idosas LGBT+, com foco na integração entre SUS (Sistema Único de Saúde) e SUAS (Sistema Único de Sistemas Sociais) e na qualificação dos serviços que já atendem a população idosa. A ampliação do acesso à educação, inclusive por meio de cotas, também é citada como caminho para que pessoas LGBT ocupem universidades, campos de pesquisa e espaços de decisão.
A dica Dez Por Cento Mais
Na parte final da entrevista, Diego volta a um ponto que atravessa toda a conversa: a importância de transformar gênero e sexualidade em temas que possam ser tratados em família, sem segredo nem tabu. “Vale muito a pena perguntar sobre a vivência dessas pessoas, escutar mais e supor menos”, recomenda.
Ele relata casos de alunos que, após suas aulas, perceberam que nunca tinham perguntado a um irmão gay como ele se sente nos lugares que frequenta, quais medos carrega, de que mudanças precisa para se sentir seguro. A sugestão de Diego é simples e direta: trazer esse assunto para a mesa, inclusive em um almoço de domingo.
Para as famílias que têm filhos, filhas, netos ou netas LGBT+, o recado é claro: a escuta pode ser ponto de partida para uma velhice com mais dignidade, menos isolamento e menos medo. E, para profissionais de saúde e para a sociedade em geral, a entrevista funciona como um convite à responsabilidade: reconhecer as velhices LGBT+ como parte legítima da população idosa e ajustar práticas, protocolos e políticas a essa realidade.
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Viver mais e viver melhor depende de escolhas que começam cedo e seguem por toda a vida: cuidar do corpo, da cabeça, das relações e do bolso. Essa é a defesa de Mariza Tavares, jornalista e escritora, autora de A Vida Depois dos 60 – Prepare-se para criar a sua melhor versão (Best Seller), que propõe olhar para a longevidade como projeto contínuo, sem romantização e sem fatalismo. Em conversa com Abigail Costa, jornalista e psicóloga, no programa Dez Por Cento Mais, no YouTube, Mariza lembra que “a longevidade é uma construção da vida inteira.”
A autora propõe que a longevidade seja encarada como a soma de diferentes “reservas” acumuladas ao longo da vida. A financeira, alimentada por pequenos aportes feitos desde cedo, quando “o tempo conspira a nosso favor”. A física, cultivada por meio do movimento contínuo e da manutenção da força muscular. A mental e a social, fortalecidas pelas conexões que sustentam o ânimo e estimulam o autocuidado. Mariza destaca que estudos de décadas apontam a qualidade das relações como fator decisivo para envelhecer melhor e sintetiza a ideia com uma imagem pessoal: “Dentro de mim eu tenho todas as idades.”
O alerta é direto: adiar decisões tem seu custo, mas começar tarde não impede ganhos. “Mesmo pessoas com um estado fragilizado se recuperam em força muscular com o devido treino.” O verdadeiro risco, segundo Mariza, está em se render aos estigmas: “O mais triste é a gente introjetar aquela coisa de que ‘eu tô muito velho para isso’.”
Trabalho, aposentadoria e combate ao etarismo
A transição do trabalho pago para outras formas de atuação pede preparo, não improviso. Mariza critica a pouca atenção das empresas ao tema e defende políticas que retenham e adaptem funções para profissionais mais velhos. “Nós temos que ser militantes da velhice”, diz, ao apontar microagressões e estereótipos que afastam pessoas 60+ de oportunidades — especialmente mulheres, alvo precoce do idadismo.
A aposentadoria sem projeto pessoal tende a abrir espaço para vazio e isolamento. A saída, segundo ela, está em redes de convivência, mentoria intergeracional e flexibilidade: “Eu posso usar o meu repertório para ensinar.”
Afeto, sexualidade e novas combinações de vida
Mariza propõe tratar sexualidade na maturidade sem tabu, inclusive nas consultas médicas. O foco é ampliar repertório e comunicação entre parceiros, não reduzir a vida íntima a desempenho. “Sexualidade nos acompanha até o final da existência.” Também reconhece arranjos de vida em que muitas mulheres 60+ escolhem autonomia, amizade e viagens em grupo, sem abrir mão de bem-estar para “ter alguém” a qualquer custo.
No fechamento, ela oferece um pequeno ajuste de rota: “10% a mais de confiança em si mesmo.” Pode virar bússola prática: “Vou me divertir 10% mais, vou namorar 10% mais, vou celebrar a vida 10% mais.”
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“Se tudo der certo, você vai envelhecer. Então, cuide bem dos idosos próximos a você.”
Francisco Carlos Gomes
A população brasileira com mais de 60 anos cresce em ritmo acelerado e, a partir de 2030, será numericamente maior que a de jovens. Com isso, aumenta também a urgência de refletir sobre o envelhecimento como parte da existência — e não como sinônimo de fim. O que ainda faz brilhar os olhos depois dos 60? Onde encontrar sentido quando os vínculos sociais enfraquecem e a finitude se torna mais presente? Esse foi um dos temas da entrevista com o psicólogo clínico e logoterapeuta Francisco Carlos Gomes ao programa Dez Por Cento Mais, apresentado por Abigail Costa.
Francisco é especialista na abordagem desenvolvida por Viktor Frankl, psiquiatra austríaco sobrevivente de campos de concentração nazistas, e explica que a logoterapia se volta à pergunta: qual o sentido da minha existência? “O nosso objetivo é sempre ajudar as pessoas no processo de entender que há sentido, que talvez naquele momento esteja obscuro, que a pessoa ainda não está enxergando.” Ele detalha os três caminhos propostos por Frankl para essa busca: os valores criativos — aquilo que nós doamos ao mundo; os valores vivenciais — os relacionamentos, a conexão com o belo, com a vida; e os valores atitudinais — as nossas atitudes diante das questões que não conseguimos mudar.
O que a vida quer de mim?
Quando a dor se impõe — seja por perdas, doenças, envelhecimento ou frustrações — o sofrimento existencial aparece. “A sensação de falta de sentido pode nos trazer sofrimento”, afirma Francisco. “Mas o vazio existencial não é uma doença. Ele é um espaço em que nos desconectamos desse compromisso de viver com dignidade.”
Encontrar sentido, diz o psicólogo, exige envolvimento ativo: “Depois que eu descubro, eu preciso fazer algo significativo.” E esse processo é profundamente individual. “Nós, psicólogos, psiquiatras, não podemos dar sentido para a vida de ninguém. Podemos ajudar as pessoas a encontrar um sentido para a existência dela.”
A busca por esse sentido, ele reforça, muda ao longo da vida: “O sentido não é fixo. Ele vai mudando de acordo com as fases de desenvolvimento que nós estamos passando.” Na velhice, essa pergunta pode estar ligada ao legado: “É aquilo que você também está deixando para a sociedade, através da construção da sua obra — que seja a família, que sejam filhos, que sejam livros, que sejam ações colocadas no mundo.”
A liberdade interior diante das opressões
Francisco destaca que, mesmo em contextos extremos de violência e opressão, como os vividos por Viktor Frankl ou por Nelson Mandela, é possível manter uma liberdade essencial. “A liberdade do pensamento, a liberdade interior, é um caminho de fortalecimento.” Mas ele alerta: “A maioria das pessoas não sabe que tem essa liberdade interior, porque muitas vezes foram dominadas por outra pessoa.”
A liberdade, segundo ele, deve andar com responsabilidade. “Existe um binômio que eu trabalho muito: liberdade com responsabilidade. Não somos livres para tudo, mas somos livres para atuar na nossa vida, na nossa existência.”
Esse compromisso com a própria existência inclui, para ele, reconhecer o peso do racismo estrutural na construção de sentido entre a população negra. Francisco compartilha sua experiência pessoal ao visitar o porto de onde partiram os primeiros navios negreiros para o Brasil e ressalta: “Houve quase 400 anos de escravidão no Brasil. Não é pouca coisa.” E ainda hoje, diz ele, os efeitos estão presentes: “De gerente para cima, para diretores, você não encontra [pessoas negras], ou encontra muito pouco.”
Uma vida que ainda vale a pena
Criador do canal Longidade, Francisco participa de iniciativas voltadas ao envelhecimento com propósito. Ele lembra que a solidão, o isolamento e o sentimento de inutilidade são experiências comuns após a aposentadoria. “Nós vivemos várias etapas. Se nós não fizermos algo significativo nessa etapa, temos uma tendência a deprimir.” Ele defende que a velhice não seja reduzida a uma caricatura: “Infantilizam o idoso, usando palavras no diminutivo, ‘velhinho’, ‘fofinho’. Vai se descaracterizando.”
Na sociedade do espetáculo, envelhecer é visto como fracasso, mas Francisco propõe uma inversão: “Envelhecer é uma coisa maravilhosa nesse sentido — eu consegui chegar nesse lugar.” O sentido da vida, reforça, está também em poder olhar para trás e dizer: “A minha vida valeu a pena de ser vivida.”
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“O trabalho é uma das maneiras de mantermos nossa utilidade na vida, mas não a única.”
Fábio Betti, Age-Free.World
O mercado de trabalho não quer mais saber de fidelidade cega, nem valoriza currículos marcados por longas permanências em um mesmo lugar. Enquanto os mais jovens pulam de emprego em emprego em busca de sentido e equilíbrio, líderes experientes questionam se ainda cabe a eles atuar em um modelo que exige energia de super-herói e uma dedicação que sacrifica a vida pessoal. Esse movimento de transformação — que atinge todas as gerações — foi tema da entrevista com Fábio Betti, que está à frente da age-free.world, no programa Dez Por Cento Mais, apresentado por Abigail Costa.
Entre gerações: rupturas e aprendizados
Para Betti, que também atua na Corall Consultoria, “envelhecer no mercado não deveria ser sinônimo de se tornar descartável”. Ele alerta que muitas empresas continuam presas a parâmetros que exigem velocidade e entrega constante, ignorando a experiência acumulada ao longo dos anos. “Muitos líderes chegam aos 55, 60 anos e dizem: ‘Eu não aguento mais’. Não porque falte energia, mas porque não faz mais sentido atuar em um ambiente desumanizador”, afirma.
A busca por um trabalho com propósito também não é exclusividade da nova geração. Para os mais velhos, surge a necessidade de se reinventar. Segundo Betti, mais de 40% das novas empresas no Brasil em 2019 foram abertas por pessoas com mais de 45 anos, mostrando que empreender também é uma alternativa para quem deseja continuar contribuindo, mas em outro formato. “A sensação de inutilidade adoece. Encontrar novas formas de se sentir útil é fundamental para a saúde mental”, destaca.
As novas gerações, por sua vez, querem clareza. “O jovem quer uma relação mais pragmática: ele quer saber como crescer, quanto vai ganhar e o que precisa fazer para chegar lá. E muitos líderes não sabem conversar sobre isso porque construíram suas carreiras em um modelo que pedia sacrifício absoluto”, pontua Betti.
Essa convivência entre cinco gerações no mesmo ambiente — boomers, X, Y, Z e alfa — intensifica os choques e, ao mesmo tempo, abre espaço para conversas importantes. “Precisamos integrar o velho e o novo, porque ambos têm valor. A evolução não é destruir o modelo anterior, mas entender o que manter e o que transformar”, explica.
O humano versus a máquina
Betti também observa que o avanço da inteligência artificial escancara a crise do trabalho automatizado. “Se o trabalho que fazemos pode ser substituído por uma máquina, o que resta de humano?”, questiona. Ele defende que a reflexão sobre o sentido do trabalho é urgente, já que o modelo atual, centrado em controle e metas incessantes, está “sobrevivendo por aparelhos”.
Para ele, o papel dos líderes deveria incluir cuidar das pessoas de forma integrada, não apenas fora do ambiente corporativo. “Vejo líderes que correm maratonas e falam sobre autocuidado, mas dentro das organizações continuam reproduzindo discursos de cobrança e desconfiança. Como integrar essas duas vidas?”, provoca.
No fim, a mudança depende de disponibilidade para ouvir e de coragem para criar um ambiente em que todos — jovens ou veteranos — possam pertencer e contribuir de maneira autêntica. “O grande desafio é lembrar que ninguém quer estar em um lugar onde a desconfiança é a base”, conclui.
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Às vezes, tudo o que nos resta é silenciar e elaborar melhor a dor provocada pela violência, pela indiferença e, até mesmo, pela banalização do sofrimento — seja de uma pessoa ou de uma comunidade inteira. No silêncio, reunimos forças para seguir lutando por uma sobrevivência minimamente digna. Não falo aqui de um silêncio mudo. Muito pelo contrário: falo de um silêncio que arranca vozes jamais escutadas, mas que, infelizmente, não ressoam como relevantes para muitos ouvidos.
É no silêncio gritante que me veio a profundidade da frase de Conceição Evaristo que dá título a este texto, em denúncia ao racismo estrutural, e ela tem ressoado nos meus pensamentos nos últimos dias, desde que soube do assassinato de Fernando Vilaça, rapaz de 17 anos que vivia em Manaus e morreu após se defender de ataques LGBTfóbicos.
Já comentei, em outros textos, sobre o “não-lugar” que a sociedade impõe às nossas vivências e identidades dissidentes. São marcas profundas que carregamos ao longo da vida, a cada experiência, e nos esforçamos além dos limites para nos encaixarmos ou, então, passarmos como invisíveis, só para garantir uma suposta paz e segurança.
É um preço alto que pagamos por isso.
Obviamente, não existe em nenhuma dessas alternativas a possibilidade de se viver com dignidade. Desde cedo, nos cobramos para que aspectos “aceitáveis” aos olhos da sociedade se tornem mais visíveis, na tentativa de validação e pertencimento.
Não tem como esquecer do Pedro Henrique, aluno bolsista de um colégio tradicional de São Paulo, que, em 2024, aos 14 anos, foi suicidado pela violência que sofria por parte de outros alunos da instituição. “Faziam chacota de mim por eu ser gay”, escreveu em uma das mensagens enviadas por WhatsApp. A cada pessoa que morre vítima da violência, uma parte de nós também se vai. Somos cúmplices por não conseguir acolher as pessoas em suas diferenças e insuficientes enquanto sociedade, que segue a vida como se nada estivesse acontecendo.
O Brasil é o país que mais mata pessoas LGBT, e ainda assim não temos políticas públicas que garantam nossa segurança, conforto e representatividade em todos os espaços.
A nós, que envelhecemos e seguimos resistindo, tentando nos manter fortes para honrar o legado daqueles que, infelizmente, tiveram suas vidas sacrificadas, cabem, também, as marcas e a incerteza de um futuro digno e acolhedor.
Sabemos que os estereótipos relacionados à identidade de gênero, orientação sexual e geração operam de maneira perniciosa, obscurecendo tanto a visão da sociedade quanto a ação do Estado, que insiste em manter discursos de igualdade enquanto ignora por completo as vivências dos grupos minorizados. Brecht, dramaturgo alemão, nos alertou sobre isso quando escreveu: “a cadela do fascismo está sempre no cio”, e sabemos muito bem quem ela busca para anular suas existências.
Não quero finalizar esse texto num clima pesado, mas também entendo que a inquietação e o estranhamento fazem parte do processo de transformação.
Talvez, mais do que palavras, reste-me provocar empatia: e se fosse comigo? E se fosse com meu filho? E aqui, sobrevivente de inúmeras violências institucionais e interpessoais do passado, um Diego que, muito cedo, quando ainda nem entendia o que o tornava diferente, conheceu a perversidade do não-lugar, o que eu desejo, de verdade, é que, mesmo após quase quarenta anos, a gente consiga mudar essa realidade.
Que mais vidas tenham o direito e a garantia de envelhecer e vivenciar suas velhices de forma digna.
Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Depto. de Gerontologia da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.
“Desejo não envelhece.” A afirmação do Dr. Fabrício Oliveira poderia ser apenas uma provocação retórica se não viesse sustentada por mais de uma década de trabalho clínico com pessoas idosas e pela escuta atenta a histórias muitas vezes silenciadas dentro de casa. No programa Dez Por Cento Mais, apresentado por Abigail Costa, no YouTube, o psicólogo e gerontologista defendeu com firmeza que envelhecer não significa perder vontade, nem identidade.
A entrevista trata de um tema ainda cercado por preconceitos: a sexualidade na maturidade. “As pessoas confundem sexualidade com ato sexual. Sexualidade é afeto, é toque, é desejo, é companheirismo. E isso não tem prazo de validade”, disse Fabrício, que, desde 2010, atua no universo do envelhecimento com foco no bem-estar emocional, psicológico e relacional dos idosos.
“Eu só atendo idosos”
A decisão de se especializar no público idoso nasceu de um encontro entre a sensibilidade clínica e a demanda reprimida. Tudo começou com um trabalho de conclusão de curso que virou referência acadêmica. Depois, veio uma reportagem de televisão que repercutiu de forma inesperada. “Os idosos começaram a me procurar porque se sentiram representados. Eles diziam: ‘doutor, eu tenho vontade de reencontrar o primeiro amor, mas os meus filhos acham isso uma bobagem’”.
Fabrício entendeu que não bastava escutar. Era preciso acolher, orientar e também educar as famílias. Por isso, passou a oferecer atendimento domiciliar. “O idoso vai muito ao médico. Psicólogo? Só se for alguém que vá até ele. No consultório ele não aparece”, explicou. A visita à casa do paciente, segundo ele, abre espaço não só para a escuta terapêutica, mas também para a reorganização do ambiente doméstico — desde a retirada de tapetes até conversas com os filhos que, sem perceber, reforçam o etarismo.
Miss Longevidade e o protagonismo invisível
Se os consultórios ainda são pouco acessados, as passarelas podem ser caminhos de transformação. Foi assim que surgiu o projeto Miss e Mister Longevidade, idealizado por Fabrício em João Pessoa e já realizado em várias cidades da Paraíba. “A mulher passa o ano pensando no vestido. A neta vai à escola e diz: ‘minha avó é Miss’. Isso muda tudo.”
Mais do que promover autoestima, o concurso combate um estigma estrutural: a exclusão social da velhice. “A maior violência contra o idoso no Brasil não é a financeira. É a psicológica”, alertou. E parte dela começa na infância, quando se ouve frases como “cuidado com o velho do saco” ou se vê bruxas velhas como vilãs em contos infantis. Para ele, mudar isso exige uma presença ativa: “O idoso precisa ser protagonista. Quando ele afirma sua identidade, a família pensa duas vezes antes de zombar da idade ou fazer comentários discriminatórios”.
A velhice como escolha de vida
Perguntado sobre o que espera da própria velhice, Fabrício respondeu sem rodeios: “Eu não quero ser um velho cheio de manias. Mania afasta. Eu quero ser o velho legal, que abre a casa para os amigos, que está de boa”. Ele aposta na leveza como estratégia de convivência e qualidade de vida. E reforça: “Envelhecer é natural. O que não é natural é se isolar, deixar de viver, parar de amar”.
Ao fim da conversa, deixa uma sugestão simples, mas poderosa: “Acorde, olhe no espelho e diga: hoje eu envelheci mais um dia. E que bom que estou vivo”. Para ele, aceitar o processo com naturalidade e presença é a chave para viver bem — e melhor — os anos que virão.
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A entrevista completa está no canal Dez Por Cento Mais, que você assiste no YouTube. Inscreva-se no canal e receba as atualizações sempre que um episódio inédito for ao ar. Você também pode ouvir o programa em podcast, no Spotify.
O Brasil envelhece rapidamente, enquanto uma parte fundamental da população continua invisível para as políticas públicas: as pessoas idosas LGBT+. Essa constatação me atravessa desde 2016, quando iniciei meus estudos sobre as velhices LGBT+, ainda atuando na gestão de um ambulatório de referência para pessoas idosas no Sistema Único de Saúde (SUS), em São Paulo. Tratava-se de um modelo de atendimento que inspirou políticas públicas em outros municípios, estados e até mesmo países.
Mesmo trabalhando por quase dez anos nesse serviço do SUS, por onde passavam mais de mil pessoas idosas por dia, não conheci sequer uma pessoa idosa LGBT+ que pudesse ser uma referência sobre o envelhecimento dentro da própria comunidade. Ao longo dos anos de estudos em Gerontologia, tampouco me recordo de uma única citação que abordasse o envelhecimento dessas pessoas. Essa ausência sempre me inquietou profundamente, pois o tema dizia respeito ao meu próprio futuro — como homem gay jovem que já temia o que viria depois dos 40 anos.
Veja que curioso: minha preocupação não estava atrelada ao marco institucional que define uma pessoa idosa no Brasil — a partir dos 60 anos —, mas sim a uma lógica específica da comunidade LGBT+, onde, após os 40, passamos a ocupar um lugar sociocultural diferente. Como se não bastassem os estigmas impostos pela normatividade heterossexual e cisgênera, também somos atravessados pelo idadismo — o preconceito contra a idade — mesmo antes de sermos oficialmente considerados velhos ou velhas pelo Estado.
E então me perguntei: o que acontece com as pessoas LGBT+ depois dos 60 anos? Onde elas estão? Por que não estavam inseridas no serviço de saúde em que eu atuava?
Na busca por dados oficiais, percebi que a população LGBT+ sequer é quantificada. Acredito que essa omissão seja uma estratégia perversa de um Estado estruturalmente LGBTfóbico: se não conhecemos, não reconhecemos demandas — e, sem demandas, não há políticas públicas voltadas para essas pessoas.
Historicamente, sabemos que nossos direitos só foram conquistados por meio de resistência, ocupação de espaços e luta ativa. Nada nos foi dado. Por isso, desde então, além de estudar pesquisadores nacionais e internacionais que abordam o tema, aprendo diariamente com a própria comunidade LGBT+, tanto com as pessoas mais velhas quanto com as mais jovens.
Mas há um abismo entre gerações. As pessoas idosas LGBT+ de hoje são sobreviventes: resistiram à ditadura, à epidemia de HIV/AIDS e a contextos sociais hostis. Foram protagonistas das conquistas que hoje celebramos. Ainda assim, muitas vezes são desvalorizadas dentro da própria comunidade.
Por outro lado, as gerações mais novas têm nos ensinado novas formas de viver e expressar identidades de gênero, orientações sexuais e afetivas. Expandem as possibilidades para além do binarismo, da monogamia e de modelos herdados da heterocisnormatividade — algo iniciado com a luta das gerações anteriores, mas que hoje se expressa com mais liberdade e diversidade.
A ausência de representatividade torna as pessoas idosas LGBT+ duplamente invisibilizadas: não são vistas nem pela sociedade, nem pelo próprio ativismo LGBT+, tampouco são reconhecidas pelas políticas públicas. O resultado disso? Um desamparo concreto nos serviços de saúde, assistência social e direitos humanos.
O reconhecimento da interseccionalidade — ou seja, da intersecção de aspectos como gênero, raça, classe, geração, entre outros — é essencial para compreendermos as experiências únicas dessas pessoas. Afinal, mesmo dentro de um grupo já diverso, há uma diversidade ainda mais profunda que não pode ser ignorada.
Como dar visibilidade às pessoas idosas LGBT+ sem sua participação ativa? Como compreender a pluralidade dentro da própria diversidade, se não buscamos ir além do perfil de quem, com dificuldade, consegue chegar até nós? A quem cabe a representatividade daquelas e daqueles que ficaram do outro lado dessa linha abissal?
Nesse sentido, a iniciativa da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo — a maior do mundo — ao trazer o tema “Envelhecer LGBT+: Memória, resistência e futuro” para o centro do debate é, além de importante, urgente. A realização do evento no dia 22 de junho marca uma oportunidade simbólica e concreta de promover um verdadeiro encontro de gerações, um espaço de troca, celebração e reconhecimento. Que possamos agradecer a quem veio antes, abrindo caminhos para que hoje possamos existir e resistir com mais liberdade.
E que esse evento inspire o Estado a ouvir com atenção qualificada as demandas das velhices LGBT+, promovendo políticas públicas que não apenas reconheçam a diversidade sexual e de gênero, mas garantam segurança, cuidado e dignidade às pessoas idosas LGBT+.
Porque envelhecer com dignidade é um direito. E, para as pessoas LGBT+, esse direito não pode continuar sendo negado pela invisibilidade.
Com respeito, esperança e urgência,
Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Depto. de Gerontologia da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.
“(…) então toma, quero ver amor se aguenta pentada com a quarentona.”*
Há dias em que silencio. Talvez para conter um desconforto que me acompanha desde cedo – o mesmo que muitas pessoas sentem ao serem caladas por estereótipos, preconceitos e discriminação, apenas por existirem.
Lembro de quando, aos cinco anos, beijei um coleguinha na escola. O olhar reprovador da professora me fez sentir diferente, deslocado, como se houvesse algo errado comigo. Não havia maldade no gesto, mas ali aprendi que meu afeto era um problema. Esse sentimento se intensificou na adolescência, quando qualquer deslize poderia resultar em violência, dentro e fora de casa. Para muitas pessoas LGBTQIA+, o lar, que deveria ser um espaço seguro, é também um lugar de medo.
A sexualidade sempre ocupou esse espaço de desconforto, especialmente para quem desafia normas sociais. Com o tempo, percebi que esse silenciamento retorna de forma ainda mais perversa na velhice, por meio do idadismo. Como se pessoas idosas perdessem o direito ao desejo e ao prazer, e a sociedade insistisse em vê-las como pessoas assexuais.
A relação entre idade e sexualidade ganha nuances ainda mais instigantes quando analisada sob a perspectiva de gênero. Enquanto os homens idosos, apesar dos tabus, ainda desfrutam de certos privilégios, as mulheres idosas seguem invisibilizadas e silenciadas, sendo socialmente pressionadas a reprimir sua vivência afetiva e sexual. Um exemplo marcante desse cenário ocorreu em 2006, quando uma mulher idosa revelou, no encerramento de um episódio da novela Páginas da Vida, que vivenciou seu primeiro orgasmo aos 68 anos, sozinha, ouvindo músicas de Roberto Carlos. Foi só ao compartilhar sua descoberta com amigas que percebeu: pela primeira vez, havia experimentado o prazer feminino – um testemunho poderoso de que a sexualidade pode ser vivenciada em qualquer fase da vida.
Estudar a sexualidade na velhice, para além da biologia, é compreender como o desejo de muitas pessoas é marginalizado. Passei a refletir mais sobre isso ouvindo funk e rap — especialmente artistas mulheres cisgêneras e pessoas transexuais e travestis. Quando deixei de lado os estereótipos e uma visão conservadora sobre o tema, enxerguei performances como as de Valesca Popozuda, Anitta, Tati Quebra Barraco, Linn da Quebrada e Jup do Bairro como atos de liberdade.
Muitas dessas letras subvertem papéis de poder, colocando o desejo feminino e dissidente no centro. Expandem o prazer para além da genitália, rompem com o falocentrismo e desafiam a estrutura machista das relações.
A sociedade molda a sexualidade por meio do poder, restringindo papéis e controlando corpos e prazeres.
Não por acaso, dezenas de mulheres idosas que conheci nesses 20 anos atuando na Gerontologia, me disseram que só descobriram o prazer sexual após a viuvez – e que, na velhice, são julgadas por vivê-lo livremente, seja com um parceiro ou parceira sexual, ou sozinhas, por meio da masturbação.
Talvez isso não faça sentido para quem lê agora. Talvez gere estranhamento. E tudo bem. O ponto é provocar a pergunta: serei uma pessoa idosa livre para amar? E se, além de ser julgado por desejar, eu for punido por isso? Já vimos isso acontecer.
São inúmeros relatos de familiares e profissionais que julgam os desejos e as práticas sexuais das pessoas idosas como doença, promiscuidade – este último, mais um termo baseado em uma visão higienista e moral da sexualidade.
No fim da década de 2000, fomos alarmados pelo aumento considerável de infecções sexualmente transmissíveis entre pessoas idosas. Em vez de promover acolhimento e informação, muitos discursos as culpabilizaram, como se a responsabilidade fosse apenas delas.
E nós? Qual é o nosso papel nesse contexto — como sociedade, familiares e profissionais? A questão não se resume ao uso de preservativo, mas a forma como lidamos com a sexualidade da outra pessoa – especialmente das mais velhas. Estamos dispostos a ouvir, acolher e criar espaços seguros para que possam expressar suas dúvidas, desejos e vontades?
Só assim, a vergonha e o tabu darão lugar à liberdade – a liberdade de desejar e sentir prazer, em qualquer idade. Porque desejo não tem prazo de validade, e o prazer não pode ser um privilégio da juventude.
Meus sinceros agradecimentos a essas mulheres do funk e do rap, que, por meio do confronto, da resistência e da luta, nos oferecem reflexões preciosas sobre autonomia e independência – aspectos essenciais para um envelhecimento ativo e saudável.
*Trecho da música “Pentada++” de Lia Clark (part. Tati Quebra Barraco e Valesca Popozuda), letra de Renato Messas
Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Depto. de Gerontologia da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.
O HIV foi um fantasma que pairou por grande parte da minha vida. Por muito tempo, pareceu um destino predestinado pela minha orientação sexual e, talvez, um tipo de castigo por não me identificar com preceitos religiosos conservadores que limitam a expressão e a vivência sexual.
Esse sentimento não surgiu por acaso. Ele foi produzido por uma sociedade marcada pelo medo e pela discriminação nas décadas de 1980 e 1990, durante a epidemia de AIDS, que tirou tantas vidas, especialmente de pessoas que ousaram desafiar a estrutura machista e patriarcal. Naquele período, ser homossexual, bissexual ou trans era sinônimo de marginalidade, reforçando estigmas que, infelizmente, ainda persistem em nossa cultura.
Meu Amigo Luís Baron
Comecei a lidar melhor com esse medo quando mergulhei nos estudos sobre sexualidade e gênero na velhice. Nessa trajetória, tive a sorte de trocar experiências com pessoas idosas que enfrentaram estigmas ainda mais intensos, como o meu amigo Luís Baron.
Conheci Luís em 2018, pelo Instagram, através do seu canal @topassado_, onde ele já discutia questões sobre as velhices LGBT antes que o tema se tornasse tendência. Pouco tempo depois, nos encontramos nas reuniões da Eternamente Sou, a primeira organização social do Brasil voltada às pessoas idosas LGBT, onde Luís se tornou presidente.
Ao longo desses anos, construímos uma amizade profunda. Para mim, Luís é uma referência de futuro: um homem sexagenário gay que combina sensibilidade e força para iluminar temas invisibilizados pelo conservadorismo. Sua história de vida é um farol, especialmente para quem busca resistir às pressões de um mundo que insiste em invalidar identidades dissidentes.
Superando o Medo
Foi com Luís que compreendi como muitos dos medos e inseguranças que me atravessam foram socialmente construídos. Desde antes do meu nascimento, expectativas de gênero e sexualidade já moldavam o papel que eu deveria desempenhar na sociedade. Para quem foge dessa norma, a sexualidade é vista como algo sujo, impuro, promíscuo.
Esse estigma reforça o medo das infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), como o HIV, associando-as à culpa e à irresponsabilidade – não pela ausência de prevenção, mas por desafiar padrões considerados aceitáveis. É uma estratégia de invalidação que vulnerabiliza ainda mais quem já está à margem.
O Avanço da Ciência e o Desafio da Sorofobia
Com Luís, aprendi também que o preconceito contra pessoas que vivem com HIV – a sorofobia – é mortal. Ele não apenas dificulta o acesso à prevenção e ao tratamento, mas também alimenta o isolamento social e o estigma, perpetuando ciclos de sofrimento.
Hoje sabemos que qualquer pessoa sexualmente ativa, independentemente da orientação sexual ou do número de parceiros, está suscetível às ISTs. Porém, avanços significativos mudaram radicalmente esse cenário. Métodos de prevenção como a PrEP (profilaxia pré-exposição) e a PEP (profilaxia pós-exposição) estão disponíveis, e o tratamento do HIV permite que pessoas que vivem com o vírus alcancem uma expectativa de vida igual à de quem não o tem.
Mais importante, uma pessoa em tratamento, quando indetectável, não transmite o vírus. Isso mostra que é mais seguro se relacionar sexualmente com alguém indetectável do que viver sob o peso dos preconceitos que a sorofobia perpetua.
Uma Luta Coletiva
O HIV não é apenas uma questão médica; é uma questão social. Para enfrentar esse desafio, precisamos ir além do discurso simplista do “use camisinha” e adotar uma abordagem mais ampla e acolhedora. Isso inclui promover a educação sobre os novos meios de prevenção, incentivar a testagem regular e, sobretudo, combater o preconceito e a discriminação que afastam tantas pessoas do cuidado que merecem.
Conhecer Luís me mostrou que viver com HIV não é o fim, mas uma oportunidade de reconstruir narrativas. Ele me ensinou que, muitas vezes, os estereótipos e as estruturas de poder são mais fatais do que o próprio vírus.
A luta contra a sorofobia, portanto, é também uma luta por dignidade e pelo direito de existir plenamente, independentemente de quem somos ou de como vivemos nossa sexualidade.
Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Depto. de Gerontologia da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.