Conte Sua História de São Paulo: o carteiro da minha rua, no Jaçanã

Por Luiz Alves 

Ouvinte da CBN

Photo by Raquel Tinoco on Pexels.com

O carteiro da minha rua chamava-se Valter Alito. Durante toda a minha infância, eu o vi diariamente subindo ou descendo a rua de terra em que morávamos, no bairro do Jaçanã. As rajadas de vento faziam levantar nuvens escuras de um pó fino e pegajoso, que travava a garganta; e quando chovia, a rua desaparecia em um imenso lamaçal.

Ele fazia parte da rua, pois com chuva ou sol, lá vinha ele assobiando, vestindo sua farda surrada, com passos decididos e uma pesada bolsa de lona nos ombros. Tinha a habilidade de transformar aquele trabalho aparentemente ruim em algo bom e divertido. Penso que o Valter nasceu para ser carteiro.

Eu olhava com admiração para aquele homem franzino, rosto minúsculo, nariz fino, olhos da cor da distância e olhar amigo, afinal ele usava quepe; que eu era louco para colocar na minha cabeça.

Não foram poucas as vezes que, para o delírio da molecada, ele se meteu em nossas peladas de futebol. Dois ou três dribles, um chute certeiro, e lá ia o Valter, agora com os sapatos sujos, para cumprir o resto de sua jornada.

O Valter era responsável por encurtar distâncias e construir pontes entre pessoas, trazendo notícias de parentes e amigos. Conhecia os moradores pelo nome, e não raras vezes parava para um dedo de prosa com o meu pai. Falavam de política, comentavam sobre a carestia ou algum acontecimento no bairro. Todos o respeitavam e o tratavam como autoridade. E o era, pois nem os cachorros da rua ladravam com ele.

Foi o Valter Alito que trouxe o telegrama avisando da morte da minha avó, em um sete de setembro cinzento. Também era ele que entregava as cartas de parentes, que às vezes deixava a minha mãe triste e preocupada. Eu não entendia bem por que, mas sabia que aquelas cartas sempre traziam más notícias. Mas o Valter também trazia agradecimentos, afetos, conselhos, pedidos, sentimentos e saudades, dentro de envelopes.

O tempo passou, o carteiro deixou de ter a mesma importância para as pessoas, e eu não sei onde foi parar o Valter, mas jamais esquecerei a forma como ele tratava as pessoas. Com certeza, ele já não entrega cartas e cartões de Natal. Pena porque me restou uma pergunta não feita: o que será que o Valter pensava de nós?

Luiz Alves e o carteiro Valter são personagens do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Seja você também mais um personagem de São Paulo. Envie seu texto para contesuahistoria@cbn.com.br. Para ouvir outros capítulos da nossa cidade, viste o meu blog miltonjung.com.br ou o podcast do Conte Sua História de São Paulo.

Conte Sua História de SP: nasci no apito do trem e fui morar no Jaçanã

 

Por Misael Soares Silva
Ouvinte da CBN

 

 

Nasci em 1944, no extremo sul da cidade de São Paulo, no bucólico distrito de Engenheiro Marcilac, quando fui saudado pelo apito estridente de uma Maria Fumaça.d

 

Por volta de meus quatro anos, fomos – eu e minha família – morar em Santo Amaro, bem ao lado do Condomínio da Chácara Flora que tinha 12 portões por onde se adentrava livremente em um mundo encantador, de onde resgato doces lembranças de minha infância.

 

Com um espírito movido por muita curiosidade, sempre quis saber como funcionavam meus brinquedos que, via de regra, acabavam quebrados; isso me fazia criar meus próprios brinquedos, como um trenzinho de latas de sardinha ou um jogo de botões feito com tampas de remédio.

 

Meus projetos se realizavam garimpando o que precisava nos lixos da própria “Chácra” (como a chamávamos) onde também encontrava brinquedos quebrados que muitas vezes eram recuperados.

 

Lá também funcionava o Instituto Metodista, que reunia as crianças da região para que as alunas aplicassem seus aprendizados em atividades lúdicas, como brincadeiras, teatros, corais entre outras.

 

O tempo se foi e, há poucos dias, passando por lá vi uma placa. Onde funcionou o Instituto estava escrito: VENDE-SE; que tristeza. Menos de um mês já havia outra: VENDIDO. A tristeza transformou-se em dor, pois senti que uma página da minha infância fora rasgada.

 

Hoje, moro no extremo norte da Pauliceia Desvairada, em Jaçanã, imortalizado por Adoniran Barbosa.

 

Lembro que em 1991, quando a Central Brasileira de Notícias nascia, comemorei minha bodas de prata; hoje, quando a CBN está se preparando para comemorar os seus 25 anos, também estou preparando-me para comemorar, coincidentemente no mesmo mês de outubro, meus 50 anos de casado.

 

De minha infância ainda me lembro de meu saudoso pai ensinando-me Meus Oito Anos, de Casimiro de Abreu, que agora canto baixinho:

 

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!

 

O Conte Sua História de São Paulo vai ao ar, aos sábados, logo após às 10h30, no programa CBN SP. A sonorização é do Cláudio Antonio. Você pode enviar seu texto para milton@cbn.com.br

Conte Sua História de São Paulo – 461 anos: da Serra Pelada ao Jardim Filhos da Terra

 

Por Clair Ramalho

 

 

Quando era pequena, ouvia dos velhos moradores algumas passagens históricas da conquista desse morro. No meu imaginário infantil, essas passagens eram tão fantásticas que me pareciam verdadeiras epopeias. Então, com o passar do tempo, eu quis recontar o que ouvi.

 

O pessoal daqui é gente simples! A riqueza está em nossa origem e em quem somos.

 

Construímos um patrimônio no alto do morro, carpindo o mato, limpando o terreno, martelando pregos em madeiras, colocando telhas de barro sobre a estrutura de paus, formando barracos.

 

Cada morador, ainda que não fosse muito escolarizado, escreveu a história desse lugar através da oralidade. Uma multiplicidade vozes sob uma arquitetura improvisada, no subir e descer das ladeiras, escadarias e becos.

 

Minha mãe também me contava, que o Jardim Filhos da Terra* (bairro localizado na região do Jaçanã, Zona Norte de São Paulo), a Serra Pelada, como ficou conhecido após a limpeza do mato, surgiu em um movimento de ocupação. Esse movimento foi iniciado pela igreja local na metade da década de 80, após a construção de um barraco à margem do córrego, abaixo da serra, para uma moça chamada Maria, vinda do nordeste com três filhos pequenos sem um lugar para moradia.

 

A notícia desse fato se espalhou rapidamente e trouxe inúmeras Marias e Josés, com histórias parecidas. Então, a igreja liderou a busca de terra e moradia.
Um terreno foi encontrado, estava desocupado e sem uso, no topo do morro íngreme e sinuoso. A estratégia de abrigar quase mil famílias foi desenha em cartolinas brancas que receberam grafites e riscos com a divisão do terreno para cada família. Tudo estava organizado.

 

Há 30 anos, no cair da noite, a ladeira foi tomada por um longo tapete de pessoas. Era quase cinco mil! Estavam com tochas, foices, martelos e enxadas as mãos. Mulheres grávidas e crianças à frente do grupo, formando um cordão, para repreender confronto policial, caso houvesse. O restante do grupo viera depois. Os policiais não usaram seus revólveres, e nem a multidão usou suas foices. A ocupação foi pacífica, com reza, com canto e com a lua testemunhando essa chegada.

 

A Pracinha, lugar que preserva o verde de nossa origem, foi o primeiro lugar a ser ocupado. Depois formaram ruas estreitas, ao lado, barracos de madeira ligeiramente construídos. Surgiu a periferia! A informalidade urbana na metrópole paulistana. Nasceram os “Filhos da Terra”.

 

O tempo trouxe a evolução de nossas casas. Agora tijolo, cimento e laje.

 

O bairro foi edificado e vive nas lembranças doces dos antigos moradores que viveram essa conquista. E, hoje, a história perpetua em suas vozes, nas vozes de seus filhos e nas de tantas outras crianças, que assim como eu cresceram e continuam contando, aqui, no alto do morro.

 

Clair Ramalho é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte você também a sua história da nossa cidade. Escreva para milton@cbn.com.br

Conte Sua História de SP: as árvores do vovô no Ibirapuera

 


Por Mônica Santos
Ouvinte-internauta da CBN

 

 

Gostaria muito poder compartilhar com todos os paulistanos sobre a riqueza de conhecimento do meu Nono, Henrique Margulhano, nascido em 1922 na cidade de Mogi Mirim – São Paulo. Após se casar, aos 20 anos, se instalou no Jaçanã onde vive até hoje, ainda é bem conhecido na comunidade, mas era muito mais quando minha Nona era viva e os dois presidiam o curso de Noivos na Paróquia São Benedito. Eles foram casados por longos e amorosos 63 anos e o testemunho de vida serviu de inspiração para muitos casais. O Nono tem uma trajetória brilhante, completamente lúcido, carismático, lembra de todas as fases do dinheiro (do “réis” até o cruzeiro atual), da Revolução de 1932, dos desafios de comprar um imóvel em São Paulo, de como era a saúde, o Viaduto do Chá quando era uma plantação de chá, a chegada do Metrô.

 

Lembro que, enquanto eu entrava na 1ª série do 1º Grau, meu Nono estava fazendo “Mobral”. Talvez poucos lembrem desse trabalho que trouxe educação aos brasileiros que não puderam frequentar uma escola e foram trabalhadores braçais por longos anos. Depois que saiu da “roça”, como ele mesmo diz, e veio para São Paulo, trabalhou em vários locais desde limpeza de terreno, ajudante geral, linha do trem e, como sempre, amou a natureza, a terra, as plantações. As árvores sempre foram seu encanto, então,  conseguiu trabalho no Parque do Ibirapuera e teve o prazer de conviver com Niemayer. Esse capítulo da vida do Nono é fascinante. Conta que ele e o irmão plantaram praticamente todas árvores no Ibirapuera e, semanalmente, eram agraciados com abraço do Oscar Niemayer que, com sua simplicidade, fazia o Sr. Henrique mostrar, uma a uma, quais árvores havia plantando naquela semana.  É de brilhar os olhos.

 

Depois desse trabalho, o Nono entrou na Prefeitura de São Paulo, especificamente no Gabinete do Prefeito. Ele saiu em várias fotos na época porque ficava de terno azul marinho, alinhadíssimo,  exatamente em frente a porta de entrada da sala do Prefeito. Como é de se imaginar, o Nono foi muito querido por todos que trabalharam com ele, pela sua humildade e grande sabedoria adquirida durante a vida. Hoje, aos quase 91 anos, sonha ainda em ganhar na Mega Sena e comprar uma chácara, além de ajudar os cinco filhos, netos e bisnetos.

 

O texto é de Mônica Santos, mas o personagem desta história é o avô dela, Seu Henrique. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte você também mais um capítulo da nossa cidade. Agende uma entrevista em áudio e vídeo no Museu da Pessoa, pelo e-mail contesuahistoria@museudapessoa.net. Ou me envie seu texto: milton@cbn.com.br