No Conte Sua História de São Paulo, Vera Helena Praxedes, moradora do Jardim Jabaquara, lembra neste texto de quando veio morar na capital paulista:
Ouça o texto de Vera Helena Praxedes sonorizado por Cláudio Antônio
>
Voltamos, deixando para trás a vida solta, o sol quente, a quiçaça, o pé no chão, as frutas do campo, as parlendas, enfim, parte da infância. Viemos morar bem longe, o interior de onde voltávamos parecia à capital e a capital parecia o interior. Lá o sol era claro e abrasador, aqui frio cinzento de garoa infinda. Ainda bem que chegamos no verão, mas em janeiro de chuvarada.
A casa grande de tijolos, pintada de amarelo, úmida, descobri o bolor, diferente da outra de madeira seca e aconchegante. Algo me causou espanto; o fogão, aqui de carvão, pequeno acanhado, levava horas para cozinhar feijão. Batia uma saudade do outro de lenha, grande, com fagulhas estralando feito fogos de artifício, água quente por todo o dia, pronta para fazer café.
A casa foi dividida para acomodar três famílias: a nossa, a dos meus avós e a de um tio. No total dezesseis pessoas. Lá no interior morávamos em casas próximas, mas aqui todos ficaram juntos. Mais tarde ao ler “O Cortiço” de Aluísio Azevedo me senti sua personagem.
A vila distante, com ruas sem calçamento e transporte. Fazendo todos caminharem por quilômetros para chegar ao trabalho. Quando chovia carregávamos outro par de sapatos para trocá-los antes do destino final.
Os donos da casa amarela eram um casal de negros. Morava no mesmo quintal, nos separando apenas um terreiro. A esposa com cinqüenta e poucos anos, o marido já bem idoso, um neto criança e uma filha viúva por uma tragédia, isso havia a alguns meses enlutada a família.
O genro dos velhos em um ato transloucado, havia se suicidado, envenenando-se, mas antes disso matou a filha de dois anos, deixando a mulher grávida ainda sem sabê-lo.
A mudança causou espanto e surpresa a mim e minhas três irmãs e, sem dúvida, também para as outras crianças da família.
Minha pobre avó não tirava o agasalho de lã um só dia, parecia não parar de chover nunca. O frio, por falta de costume, deixou-a jururu e adoentada por todo o ano.
Mas aqui, ao chegar, fiz uma grande descoberta, a mulher do nosso senhoril possuía um rádio e adorava ouvir novelas à noite. Logo após nossa chegada, engajei-me junto a ela, o marido mais o pequeno neto e, ouvíamos todos os dias às 21:00 horas uma rádio novela.
Dona Dita, esse o seu nome. Sentávamos em uma copa cimentada com móveis coloniais; um tajer, uma cristaleira sem cristais, sobre ela uma garrafa, representando um velho, inclinado sobre o peso do líquido azul por papel crepom.