Simone Domingues

No conto “O espelho”, de Machado de Assis, durante uma reflexão filosófica sobre a existência, Jacobina — o protagonista — revela uma situação ocorrida na sua juventude para elucidar suas concepções sobre o tema abordado, alegando que os seres humanos teriam duas almas: uma interior, que olha de dentro para fora e outra exterior, que olha de fora para dentro.
Jacobina conta que fora nomeado alferes da Guarda Nacional, causando muito orgulho a seus familiares e amigos. Eis que é convidado a passar uns dias no sítio de sua tia, sendo solicitado que leve sua farda, recebendo inúmeras cortesias por conta do cargo ocupado.
No entanto, a tia precisa viajar às pressas e, em seguida, há uma fuga dos escravos. Na ausência das bajulações, Jacobina olha-se no espelho e não se reconhece na imagem refletida: danificada, com contornos imprecisos. Somente tem a sua imagem integralmente refletida quando se veste novamente com a farda.
A astúcia – ou provocação – de Machado de Assis nos aproxima de inquietações sobre nós mesmos: quem realmente somos?
Essa questão que poderia ser simples, a princípio, já que temos uma série de informações a nosso respeito, torna-se desafiadora quando compreendemos que a nossa identidade é construída diariamente, ou seja, apesar de sermos a mesma pessoa, estamos em constante transformação.
A construção da identidade envolve aspectos permanentes, como nome, parentescos, nacionalidade; além dos subjetivos, que permitem a compreensão de si mesmo e a consciência enquanto ser único, tais como os pensamentos, sentimentos e valores.
Entretanto, nossa identidade não está limitada apenas a esses aspectos subjetivos; compreende a relação constituída entre a subjetividade e as interações sociais.
É no processo de socialização, no encontro com o outro, com a sociedade, com a cultura, que a autoimagem vai se consolidando, permitindo a construção da nossa identidade social.
Somos as características biológicas herdadas, somadas e transformadas pelas experiências vividas, como as oportunidades sociais, a profissão, os relacionamentos afetivos… Numa combinação que promove mudanças constantes e que guardamos na memória para nossa autorreferência.
Poderíamos então dizer que somos as memórias que temos sobre nós? O professor e cientista Ivan Izquierdo costuma dizer:
“Somos o que lembramos e o que decidimos esquecer”
As memórias pessoais ou autobiográficas, de certo modo revelam nossas experiências de vida e permitem essa construção da nossa imagem; no entanto, pesquisas têm mostrado que não acessamos ou usamos todas as memórias disponíveis ao criarmos narrativas pessoais.
Selecionamos como memória pessoal aquilo que de certo modo se ajusta à ideia atual que temos de nós mesmos, numa fusão entre memórias de quem fomos no passado e quem somos no presente, envolvendo a autoimagem, necessidades e objetivos.
Somos aquilo que está dentro de nós e aquilo que o outro nos permite ser.
Não podemos apenas ser. Mas também não podemos vincular quem somos exclusivamente ao desempenho de papéis estabelecidos e de atividades desempenhadas, que por vezes nos sufocam, nos engessam em cargos, títulos e organizações. Como numa engrenagem, as duas partes constituem um mecanismo que permite um movimento coerente e contínuo. Se uma das partes falhar, não conseguiremos nos reconhecer. Nossa imagem estará distorcida em formas e contornos.
Machado de Assis estava certo!
“Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro (…). Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência”.
Resolvo encerrar o texto e ir para o espelho… Quem será que vejo?
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Simone Domingues é Psicóloga especialista em Neuropsicologia, tem Pós-Doutorado em Neurociências pela Universidade de Lille/França, é uma das autoras do perfil @dezporcentomais no Instagram. Escreveu este artigo a convite do Blog do Mílton Jung