O susto e a raiva

Dra. Nina Ferreira

@psiquiatrialeve

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Existe algo que tem um poder enorme sobre nós, seres humanos: o erro. Vindo de nós mesmos, nos assusta: “Como pude fazer isso?” e nos gera raiva: “Que ódio de mim!” Quando o erro vem dos outros, a intensidade pode modificar – pra cima ou pra baixo – mas eles brotam e incomodam.

Por que o erro nos bagunça tanto?

Um ponto a considerar: o erro nos deixa vulneráveis. Ele mostra que a vida é imprevisível, que qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento. Verdade dura, realista, mas que insistimos em fingir que não está ali – tanto que temos a ilusão do controle: “Se eu fizer tudo certo, ficará tudo bem”.

Outro ponto: o erro, quando é nosso, nos envergonha, mostra nossos defeitos. Errar é evidência clara e inquestionável da nossa imperfeição. E querer ser perfeito é um desejo que nunca acaba, em nenhum de nós – porque o perfeito é prazeroso, agradável, admirado e amado – quem não quer isso pra si? Então, lutamos pra não errar porque lutamos pra atingir esse lugar ideal – pensa só: um esforço enorme, uma vergonha profunda… pra chegar em um lugar que nem existe. Será que vale a pena?

E quando o erro é do outro? “Provocação, só pode. Como a pessoa ousa fazer isso?” Ah… a autorreferência. Esse nosso hábito de achar que é tudo sobre nós, para nos atingir ou incomodar… Então, parece uma afronta quando alguém erra e nos prejudica. Às vezes, pode até ser. E, muitas vezes, é só a pessoa existindo mesmo. Vamos pensar: já que todo mundo, mais cedo ou mais tarde, vai errar, será que não é mais libertador abandonar essa ideia de que é “contra a gente”? Porque essa tal autorreferência faz as consequências do erro serem ainda maiores – porque transbordam em mágoa.

Fantasia pensar que o susto e a raiva nos deixarão em paz sempre que erros ocorrerem. Em algum nível, eles estarão ali. O convite é: perceber e soltar. Fazer o erro ficar mais leve, para a gente mesmo e para os outros… isso sim está ao nosso alcance.

O susto e a raiva podem se transformar em aprendizado e recomeço. Bem mais agradável, não é?! Escolhamos o caminho da leveza!

A Dra. Nina Ferreira (@psiquiatrialeve) é médica psiquiatra, especialista em terapia do esquema, neurociências e neuropsicologia.

Sinta raiva!

Dra. Nina Ferreira

@psiquiatrialeve

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“Sentir raiva é pecado”, “Raiva é um veneno”, “Raiva mata”.

Então… já pequei, já fui envenenada, já morri. 

E, vez ou outra, faço tudo de novo.

Você já sentiu raiva?

Se sim, me conta: você teve escolha?

Te pergunto porque do lado de cá, na minha mente e no meu corpo, a resposta é… não.

A raiva nunca me perguntou se poderia chegar, entrar, ficar. Ela sempre me atropelou tipo um trator desgovernado. É assim até hoje.

Revolta, incômodo, angústia… explosão. 

Raiva é emoção pura, visceral, animal. Não existe escolha.

Fome, sono, respiração… Natureza mostrando quem manda. A raiva está nesse grupo aí – é espontânea e independente da nossa vontade.

A raiva é seu corpo e seu cérebro te dizendo:

“Presta atenção, estão te invadindo, estamos sob ameaça, olha o ataque!” 

No fim, ela quer te proteger. Pra você sobreviver, ela te enche de noradrenalina e de cortisol e te faz uma máquina potente, pra lutar ou pra fugir, mas morrer – jamais.

Então… Sinta a raiva! 

Quando ela aparecer: perceba que ela chegou; dê nome pra ela; ouça de qual ameaça ela está te alertando.

Depois: dê um tempo, enquanto convoca seu córtex frontal, a “Sra. Razão”; construa um diálogo entre os dois.

Uma hora a Raiva fala, em seguida a Razão argumenta… a Raiva se revolta, a Razão pondera…

Pronto. A partir daí, a decisão está tomada – enumere as atitudes, uma a uma, que vão te levar ao resultado que você precisa: se distanciar, conversar num outro momento, tentar outro caminho (porque soltar é mais eficaz que insistir)…

Seja o que for, a Raiva chegou, fez o papel dela – te alertou do perigo – e se foi.

Não precisa temer. A Raiva não é inimiga, nem pecado, nem veneno e, muito menos, morte.

A Raiva é a Vida querendo sobreviver.

Sinta a Raiva. Depois, chame a Razão. E, depois, crie seu plano e caminhe pelo mundo, orgulhoso do seu autoconhecimento e do seu autodomínio.

Os fortes, os sábios, os bons… sentem Raiva, mas fazem dela um motor de Vida.

E então, me diz… Você faz o quê com sua Raiva? Foge… ou sente e vive?

Dra. Nina Ferreira (@psiquiatrialeve) é médica psiquiatra, especialista em terapia do esquema, neurociências e neuropsicologia. Escreve este artigo a convite do jornalista Mílton Jung

De bom e mau

 

Por Maria Lucia Solla

 


Ouça “De bom e mau” sonorizado e na voz da autora

 

 

Olá,

 

pisquei, e a segunda virou quinta. Os dias correm como nós, e num desses dias voadores liguei a televisão e ouvi que o número de assaltos a residência e estabelecimento segue crescendo. Confirmei também que a civilidade segue diminuindo e que a fúria do invasor atinge nível de dar náusea. Se sequestra e se mata por tudo e por nada também. Humano tortura humano, legal e ilegalmente; se degrada, dissolve, mingua.

 

Tem muito ódio, muita raiva, muita amargura nos corações. Campeia a traição, o abuso e o descaso pelo outro. A sociedade do eu primeiro vem fortalecendo alguns músculos, mas vem deixando definhar o próprio coração. Se sobressai no índice do dinheiro, do consumo, e se retrai na educação, no respeito, na consciência do real direito de cada um.

 

Mas tem o outro lado onde pipocam projetos sociais; gente que troca o dia-a-dia, o conhecido, o conforto, pelo inverso da medalha. Gente que se arrisca no universo da diferença, do carência, da doença, do desengano, onde acaba encontrando – dizem os que se entregam – um presente da vida.

 

De um lado o invasor, do outro o libertador. É o que vemos desde criança no desenho animado. Bom contra mau. Falávamos disso, meu filho e eu, no domingo passado. Sobre repressão, criminalidade e atividade das polícias. E eu pergunto o que mais vai ser preciso proibir, quantas vezes mais vai ser preciso remendar a Constituição, para podermos saciar a boca faminta da justiça, do suborno, e das polícias, num desbotado filme de bandido e mocinho.

 

Enquanto o bom continuar a se entrincheirar e se armar para combater o mau, será só um arremedo de bom. Será um mau presunçoso a se considerar do bom lado da cerca. Só isso. E o mau, acreditando ser mau porque é isso que lhe dizem desde que entendeu a primeira palavra, o primeiro olhar, se arma para resistir, lutar e atacar o bom.

 

Não tenho a solução, nem na palavra nem no pensamento, mas sinto no coração que ela existe e que é possível; e tenho certeza de que você também sente. É preciso, no entanto, que a galera do bloco bom não se pavoneie, sentando nos próprios pés na ilusão de que não percebam seu medo e sua vergonha, e que não continue apontando, de bico erguido, o erro do vizinho. Em qualquer área, em todo nível social, cultural, no bloco civil, no bloco militar, penso em gente, não em casta.

 

As maiores e mais fratricidas guerras foram guerras religiosas; e continuam sendo. O religioso rotulado, que se considera bom, fica cada dia mais agressivo e arregimentador. É só olhar em volta, para os que rezam estirados no chão para falar com Deus, e os que se ajoelham para fazer a mesma coisa. Para os que aceitam os santos, e os que não aceitam. Para os que consideram Jesus o Messias, e aqueles que não. É guerra que, como todas as outras, é feia, dissimulada, discriminatória e preconceituosa, disfarçada de divina, correndo solta, acelerando o tempo que se esgota para que a consciência se instale como programa de tecnologia de ponta.

 

Pense nisso, ou não, e até a semana que vem.

 


Maria Lucia Solla é professora de idiomas, terapeuta, e realiza oficinas de Desenvolvimento do Pensamento Criativo e de Arte e Criação. Aos domingos escreve no Blog do Mílton Jung