Por Maria Lucia Solla
A página em branco é desafiadora, atraente, sedutora e, na mesma medida, apavorante.
A página em branco é a parede branca com que fala Shirley, a personagem do filme Shirley Valentine. É o profissional que se ocupa do que está além da anatomia e fisiologia dos corpos de seus pacientes. A página em branco é a pílula para acordar; é a pílula para dormir. É a droga que nos leva na direção temida: para dentro. A amedrontadora rota salvadora. Criação. Redenção.
A página em branco é o bom, grande, amoroso e generoso ouvido que se entrega com receptividade escancarada, com amoralidade de dar inveja, sem tranca, sem regra. Anarquista. E isso assusta, porque a liberdade assusta. É um objetivo cobiçado, mas difícil de alcançar e conviver. A tal da liberdade.
Mas não há dá para resistir a uma página em branco. A gente se rende. A criança desenha durante boa fase da vida, compulsivamente. E quando aprende a desenhar números e letras, nem as paredes resistem. Ela sobe pelas paredes, de alegria, quando aprende a rabiscar a inicial do nome, quando percebe que pode desenhar os sons de seus pensamentos para ser compreendida. O que, no entanto, é ilusão. Escreve-se para se entender, nunca para ser entendido. Se isso acontece, é consequência.
Depois vem o nome inteiro e as subsequentes conquistas. Bilhetes para o papai, declaração de amor pela mamãe, o nome de bichos e personagens preferidos.
depois vêm as cartas
em formato eletrônico
para o namorado
em formato biônico
vêm as confidências
as confissões
atestados de amor e de ódio
amenidades e indecências
página em branco aceita tudo
o meu sim o teu não o nosso talvez
página em branco aceita tudo
desde que seja um pensamento de cada vez
do rabisco à mandala
do indianismo à cabala
do extremismo da esquerda
àquele da direita
tudo isso
a página em branco aceita
da verdade embasada
pela ciência
à mentira deslavada
da falsa inocência
não há letra rejeitada
do russo ao polonês
do grego ao chinês
E em todas as línguas, de todos os cantinhos mais longínquos deste mundo, alguém solitário, agora, neste instante, grita um grito escrito para ser ouvido, visto, lido e assim poder sentir a experiência de estar vivo.
Maria Lucia Solla é terapeuta, professora de línguas estrangeiras e realiza curso de comunicação e expressão. Aos domingos, escreve no Blog do Mílton Jung