E se você vivesse com HIV?


Diego Felix Miguel

Foto de Αλεξανδρος Μαμουνης

O HIV foi um fantasma que pairou por grande parte da minha vida. Por muito tempo, pareceu um destino predestinado pela minha orientação sexual e, talvez, um tipo de castigo por não me identificar com preceitos religiosos conservadores que limitam a expressão e a vivência sexual.

Esse sentimento não surgiu por acaso. Ele foi produzido por uma sociedade marcada pelo medo e pela discriminação nas décadas de 1980 e 1990, durante a epidemia de AIDS, que tirou tantas vidas, especialmente de pessoas que ousaram desafiar a estrutura machista e patriarcal. Naquele período, ser homossexual, bissexual ou trans era sinônimo de marginalidade, reforçando estigmas que, infelizmente, ainda persistem em nossa cultura.

Meu Amigo Luís Baron

Comecei a lidar melhor com esse medo quando mergulhei nos estudos sobre sexualidade e gênero na velhice. Nessa trajetória, tive a sorte de trocar experiências com pessoas idosas que enfrentaram estigmas ainda mais intensos, como o meu amigo Luís Baron.

Conheci Luís em 2018, pelo Instagram, através do seu canal @topassado_, onde ele já discutia questões sobre as velhices LGBT antes que o tema se tornasse tendência. Pouco tempo depois, nos encontramos nas reuniões da Eternamente Sou, a primeira organização social do Brasil voltada às pessoas idosas LGBT, onde Luís se tornou presidente.

Ao longo desses anos, construímos uma amizade profunda. Para mim, Luís é uma referência de futuro: um homem sexagenário gay que combina sensibilidade e força para iluminar temas invisibilizados pelo conservadorismo. Sua história de vida é um farol, especialmente para quem busca resistir às pressões de um mundo que insiste em invalidar identidades dissidentes.

Superando o Medo

Foi com Luís que compreendi como muitos dos medos e inseguranças que me atravessam foram socialmente construídos. Desde antes do meu nascimento, expectativas de gênero e sexualidade já moldavam o papel que eu deveria desempenhar na sociedade. Para quem foge dessa norma, a sexualidade é vista como algo sujo, impuro, promíscuo.

Esse estigma reforça o medo das infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), como o HIV, associando-as à culpa e à irresponsabilidade – não pela ausência de prevenção, mas por desafiar padrões considerados aceitáveis. É uma estratégia de invalidação que vulnerabiliza ainda mais quem já está à margem.

O Avanço da Ciência e o Desafio da Sorofobia

Com Luís, aprendi também que o preconceito contra pessoas que vivem com HIV – a sorofobia – é mortal. Ele não apenas dificulta o acesso à prevenção e ao tratamento, mas também alimenta o isolamento social e o estigma, perpetuando ciclos de sofrimento.

Hoje sabemos que qualquer pessoa sexualmente ativa, independentemente da orientação sexual ou do número de parceiros, está suscetível às ISTs. Porém, avanços significativos mudaram radicalmente esse cenário. Métodos de prevenção como a PrEP (profilaxia pré-exposição) e a PEP (profilaxia pós-exposição) estão disponíveis, e o tratamento do HIV permite que pessoas que vivem com o vírus alcancem uma expectativa de vida igual à de quem não o tem.

Mais importante, uma pessoa em tratamento, quando indetectável, não transmite o vírus. Isso mostra que é mais seguro se relacionar sexualmente com alguém indetectável do que viver sob o peso dos preconceitos que a sorofobia perpetua.

Uma Luta Coletiva

O HIV não é apenas uma questão médica; é uma questão social. Para enfrentar esse desafio, precisamos ir além do discurso simplista do “use camisinha” e adotar uma abordagem mais ampla e acolhedora. Isso inclui promover a educação sobre os novos meios de prevenção, incentivar a testagem regular e, sobretudo, combater o preconceito e a discriminação que afastam tantas pessoas do cuidado que merecem.

Conhecer Luís me mostrou que viver com HIV não é o fim, mas uma oportunidade de reconstruir narrativas. Ele me ensinou que, muitas vezes, os estereótipos e as estruturas de poder são mais fatais do que o próprio vírus.

A luta contra a sorofobia, portanto, é também uma luta por dignidade e pelo direito de existir plenamente, independentemente de quem somos ou de como vivemos nossa sexualidade.

Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Depto. de Gerontologia da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.

Quem acolhe as pessoas idosas que vivem com HIV?

Por Diego Felix Miguel

Foto de Anna Shvets

O Dia Internacional de Luta contra a AIDS, celebrado em 1º de dezembro e instituído em 1988 pela Organização das Nações Unidas, visa aumentar a visibilidade das demandas de pessoas que vivem com HIV, contribuir para a desmistificação e promover uma compreensão mais aprofundada da infecção na sociedade, tratando-a como uma questão de saúde pública.

A intersecção do idadismo, que é o preconceito e discriminação pela idade, com a sorofobia, que é a aversão contra pessoas vivendo com HIV, representa um dos grandes desafios enfrentados por profissionais que atuam com idosos e se empenham em reforçar as boas práticas em Geriatria e Gerontologia.

Quando levamos em conta aspectos diversos que formam nossa identidade, como gênero, raça, cor, orientação sexual e etnia, torna-se evidente a iniquidade no acesso a informações e orientações eficazes sobre prevenção e tratamento digno disponíveis para todos.

A desigualdade social agrava a vulnerabilidade e expõe as pessoas idosas a várias formas de violência. Entre elas, destaca-se a solidão e a falta de uma rede de apoio que permita compartilhar, com confidencialidade, desejos e práticas sexuais sem o medo de julgamento ou de exposição vexatória em redes sociais, o que perpetua a ideia ultrapassada de uma velhice assexuada, heteronormativa e conservadora.

Por isso, esclareço o título deste artigo: “Quem acolhe as pessoas idosas que vivem com HIV?”.

A palavra “acolher” aqui não deve ser entendida como um reforço do estereótipo de que pessoas com HIV sejam dependentes e necessitem de ajuda, mas sim que a ciência mostra diariamente o quanto é possível gerir a doença e manter uma vida saudável e ativa com o tratamento adequado.

Acolhimento, neste contexto, significa o quanto estamos dispostos a eliminar preconceitos. Sabemos que qualquer pessoa sexualmente ativa pode estar sujeita a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e isso não está associado à promiscuidade, mas à necessidade de repensar os ‘juízos de valores’ baseados em visões conservadoras.

No que diz respeito a autocuidado e prevenção, o importante não é o número de parceiros(as) sexuais, mas sim como cada um cuida de si, os métodos de prevenção escolhidos e, fundamentalmente, um processo de autoconhecimento.

Devemos também atualizar nossa abordagem. O preservativo é apenas uma das várias opções de prevenção disponíveis.

Refletir sobre o impacto traumático de imagens de pessoas com infecções avançadas é crucial; abordagens que geram medo apenas reforçam estigmas e culpabilizam, perpetuando preconceitos e discriminações enraizados em nossa percepção do que é aceitável na intimidade e prazer entre pessoas.

A sorofobia cria uma desigualdade de poder ao ignorarmos a confidencialidade e ao nos fecharmos para novas realidades e práticas sexuais. Enxergar as ISTs de maneira estigmatizante apenas fortalece a noção de culpa em indivíduos que são, na realidade, vítimas de um sistema injusto.

É essencial estarmos abertos para entender a sexualidade em toda a sua complexidade, incluindo estratégias de prevenção atualizadas como a Profilaxia Pré-exposição (PrEP), Profilaxia Pós-exposição (PEP) e a Prevenção Combinada, que engloba a redução de riscos, todas disponibilizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Além disso, é importante ressaltar que pessoas que vivem com HIV têm acesso a tratamentos eficazes que garantem sua qualidade de vida e, quando estão com carga viral indetectável, não transmitem o vírus através de práticas sexuais.

O debate sobre o HIV não deve ser limitado aos profissionais de saúde ou gestores de políticas públicas; é um tema pertinente a todos nós, cidadãos que formamos a sociedade, e devemos participar ativamente dessa luta, unindo-nos contra a sorofobia.

Mais informações no site da Unaids

Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e membro da Diretoria da SBGG-SP, gerente do Convita – Patronato Assistencial Imigrantes Italianos, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve a convite do blog