Conte Sua História de São Paulo: o cronista da cidade a bordo de seu táxi

Márcio Câmara

Ouvinte da CBN

Photo by NEOSiAM 2021 on Pexels.com

Nasci no Canta Galo 1968, periferia da zona Oeste. Filho de Manuel e Maria, portugueses da Ilha da Madeira — um berço pesado, racista, machista e uma vida muito difícil. Papai tinha um bar.

Lembro do carro de doces: fazíamos a roda em volta pra ganhar doces quebrados; depois passava o carro que trocava garrafa por pintinho ou pirulito — para mim era muito bom, o que não faltavam eram garrafas no bar do pai. 

Rodávamos pião, jogávamos bolinha de gude, brincávamos de mãe da rua, balança caixão, esconde esconde  …

Eu era ótimo em história e redação. E aos dez anos, vendia sorvete e sonhos de padaria,  se eu quisesse comprar uma roupa melhor ou um tênis novo. Aos 14, já era registrado numa padaria e deixava metade do salário em casa. Depois fui office boy, indo para todos os cantos de São Paulo. O centro me deixava de boca aberta — especialmente diante do Teatro Municipal, da Galeria do Rock, da loja do Mappin.  

Foi na avenida São Luiz em que assisti ao meu primeiro filme, no cine Metrópole. Cinema era minha atração. Entrei onde não devia e assisti a alguns filmes pornôs, que já ganhavam espaço nas salas de cinema. Um dia entrei um cinema que estava vazio e deparei com o filme de Mahatma Gandhi, aquilo sim foi emocionante e ficou na memória.

São Paulo era divina. As pessoas se vestiam bem para passear no centro. Havia o Latitude 3001, uma caravela-balada, na 23 de Maio. O Carnaval era na Rio Branco com a São João. 

Hoje aos 53 anos, taxista há 16,  sigo rodando por todos os cantos da cidade, vendo de tudo na rua e levando todos os tipos de gente em meu táxi. 

Não conclui meus estudos, mas sempre tive o sonho de escrever. Achava que não seria capaz. Mas São Paulo é quase um país de tantas oportunidades. Comecei, então, meu primeiro livro: cataloguei cadeirantes de semáforos, que eu via na rua por anos e anos. Escrevi sobre eles: Anjos da Rua. Alguns voluntários me ajudaram na revisão e diagramação; e logo consegui dinheiro com três clientes para publicar a primeira edição com mil exemplares. 

Os livros foram doados para os personagens, dez deles vendiam os exemplares pelas ruas — o que o fez chegar as mais diversas mãos.

Como é grande a magia da cidade, fui chamado no Museu da Pessoa; depois pela Fabiola Cidral e o Cid Torquato, na CBN; fui convidado para congresso do Senac; TV Brasil, Cultura, Record. Na Band com o Megalli. Nas revistas. E do saudoso Gilberto Dimenstein, ouvi: “entre 55 mil taxistas de São Paulo, Márcio faz a diferença com seus livros”.

Já escrevi sete. Do Anjinhos da Rua, nove mil exemplares doados. E tudo graças a São Paulo, a cidade com algumas deficiências e cheia de oportunidades e maravilhas.

Márcio Câmara é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Escreva seu texto e envie para contesuahistoria@cbn.com.br. Para ouvir outros capítulos da nossa cidade, visite o meu blog miltonjung.com.br e o podcast do Conte Sua História de São Paulo.

Conte Sua História de SP: já vivi tantas loucuras na cidade

 

Por Ari Lopes
Ouvinte da rádio CBN

 

 

Já vivi tantas loucuras na cidade
Quero contar para você
Vi carro mergulhando
Nas águas do Rio Tietê
No rio Pinheiros não foi diferente

 

Ouça o que estou te contando
Vi um corpo
Naquelas águas estava boiando

 

Flagrei uma cena
Que achei muito chata
Um homem e o cachorro
Comendo no mesmo prato

 

Imagina o que aconteceu um dia
Nesse caso fiquei muito assustado
Um homem tirou toda a roupa
Dentro do meu carro ficou pelado

 

Ir atrás de carro suspeito
Até isso eu consegui
A esposa pegou em flagrante
Seu marido com um travesti

 

Em São Paulo já vi de tudo
Até o que não quis
Um corpo cai despedaçado
Na calçada da Avenida São Luis

 

No incêndio do Joelma
Eu estava lá perto vendo
Depois de muitos anos
Só agora isso eu estou escrevendo

 

No edifício do Andraus
Vi tudo acontecer
Gente se jogando por causa do fogo
Sabendo que ia morrer

 

São Paulo que todo dia tem problema
Correria é de rotina
Peço sempre para todos
Que tenham proteção divina

 

No túnel do Anhangabaú
Já vi água até o teto
Vários carros um em cima do outro
Antes não fechou, o túnel estava aberto

 

O Conte Sua História de São Paulo vai ao ar, aos sábados, logo após às 10h30 da manhã, no programa CBN SP, tem narração de Mílton Jung e sonorização de Cláudio Antonio

O que taxistas e árbitros de futebol têm em comum

 

Por Carlos Magno Gibrail

 

Carlos

 

As recentes manifestações de taxistas e os depoimentos de árbitros de futebol defendem a manutenção das condições atuais de suas funções e atribuições, repudiando a inovação que ora lhes é apresentada. É coerente, mas não é inteligente.

 

O naturalista Charles Darwin já demonstrou que a preservação das espécies é efetivada pela adaptação às mudanças. Mais recentemente o economista Joseph Schumpeter alertou que as novas tecnologias destroem antigos modelos de negócios e profissões, mas é inevitável.

 

O tema é recorrente, pois uma análise do passado reflete a repetição deste processo (inevitável) de inovação.

 

Não é difícil apostar no predomínio do Uber contra os taxistas, do WhatsApp contra as telefônicas, da Netflix contra as TVs a cabo. É o novo contra o velho. Ou será que as pessoas irão preferir médicos, remédios e hospitais sem tecnologia?

 

Os taxistas de São Paulo teriam melhor caminho se absorvessem a tecnologia em benefício próprio, e entendessem que o Uber é o futuro, enquanto o ponto será coisa do passado. Por bem ou por mal.

 

De outro lado, a proposta da CBF, de experimentar o uso da tecnologia simples, agregando um árbitro com recurso da imagem para dirimir dúvidas, recebeu dura oposição de árbitros notáveis.

 

Estes árbitros-personagens, com espaço nobre nas TVs, antes de criticar, deveriam estudar outros esportes que utilizam os recursos eletrônicos como tênis, handebol, vôlei, futebol americano e atletismo. Mesmo porque a tecnologia criou uma emoção adicional, por exemplo, no tênis, quando se espera a imagem de um desafio que pode decidir uma partida.

 

As cidades e o futebol esperam em breve a tecnologia que ora lhes é negada, com a dúvida de quando virá, mas a certeza que virá.

 

Carlos Magno Gibrail é mestre em Administração, Organização e Recursos Humanos. Escreve no Blog do Mílton Jung, às quartas-feiras.

 

A foto do taximetro capelinha é do Blog FuscaClassic

 

A foto do árbitro de futebol é do álbum de Andrea Re Depaolini no Flickr

Conte Sua História de SP: o taxista do Belenzinho

 

Por Cesar Cruz
Ouvinte-internauta da rádio CBN

 

 

 

Céu preto. Fiz sinal pro táxi. Oxalá! Quase eu gritei de alegria quando ele parou, porque eu já estava tomando aqueles pingões grossos na careca. Pulei pra dentro do carro a tempo de vê-los (os pingões) desabarem todos lá do céu, de uma só vez.
 

 

— Segue pra onde? — foi a pergunta do taxista, que eu mais intuí do que propriamente ouvi, por conta do barulhão da chuva na lataria.
 

 

— Metrô Belém! — gritei — É o mais perto, né?
 

 

Ele não respondeu, porque acho que também não ouviu. Se nem eu com 42 anos estava conseguindo ouvir minha própria voz, que dirá ele, que parecia bem velhinho.
 

 

Seguimos pelas ruas do bairro do Belenzinho, já empoçadas àquela altura. Fui observando pela janela os transeuntes com seus guarda-chuvas se aglomerando nas calçadas, duas moças aos gritinhos que, com cadernos na cabeça, buscavam refúgio sob uma marquise, e os camelôs correndo pra desmontar tudo.
 

 

Enquanto meus pensamentos vagavam, pelos meus ouvidos parecia ir entrando uma espécie de reza sonolenta, numa vozinha abafada pelo barulho da chuva; certamente uma missa na rádio do táxi. Espiei no painel e o rádio estava desligado. Não era rádio coisa nenhuma! Era o velhinho taxista, que recitava aquela ladainha e me espiava pelo retrovisor, esperando que eu desse algum tipo de sinal. Apurei os ouvidos para ver se entendia alguma coisa do que ele dizia. 
 

 

Lá fora já não se enxergava um palmo à frente do carro. E os trovões rachando sobre nossas cabeças. Enquanto o táxi avançava passo lento, fui pescando alguns fragmentos das histórias que contava o homem, em seu uníssono monocórdio e de baixo volume. Para fazê-lo feliz, mesmo sem conseguir ouvir quase nada, eu ia vez por outra dizendo “Oh, é verdade!”, ou “Puxa, que coisa, hein?”.

 

Algumas passagens eu conseguia compreender, como a do pai dele, que na época da Segunda Guerra dirigira bondes ali pelo bairro, foi motorneiro; da mãe, que trabalhou a vida toda na extinta firma Moinhos Santista, na Marquês de Abrantes; do irmão, dois anos mais velho que ele, que quando eles eram meninos de calças curtas foi atropelado por um bonde e morreu na sua frente.
 

 

— Não era o bonde do seu pai, né? — perguntei de um súbito, repentinamente chocado.
 

 

— Não, com a graça de Deus… — ele disse.
 

 

E o trânsito ia fechado diante de nós, e o que deveria ser uma corrida de 5 minutos já levava quinze. Não havia o que fazer. Impossível saltar na chuvarada a procurar uma estação que eu nem sabia onde ficava.

 

E na minha distração já ia avançado um relato sobre elevadores, e pelo que consegui escutar, desde mil novecentos e sessenta e alguma coisa ele não entrava em um, porque sei lá quem morreu num “despencamento horroroso” de um elevador no centro da cidade, e do corpo só sobrou a cabeça em cima dos sapatos…
 

 

E tome história!
 

 

Na calçada uma confusão enorme causada pela tempestade que arrastou tudo, e dentro do táxi uma profusão de causos que se sucediam loucamente. Agora ele contava o drama de um câncer que tinha vencido “com a força do trabalho”, porque o homem não pode ficar ocioso nem na hora da doença e…
 

 

Trovão! Cabrum!
 

 

— Porque a minha senhora, que…
 

 

Catabrum! Chuaaaá!
 

 

O final dessa frase se misturou a todos aqueles barulhos, e me sucedeu uma aflição, porque desconfiei que houvesse acontecido alguma coisa com a senhora dele.
 

 

— O quê? — perguntei; mas ele não parava nem por Deus de recitar suas histórias; nem pra ouvir os outros, nem pra esfregar a flanela no para-brisa que ia espalhando o embaçado do vidro. Por fim eu fiquei sem saber se o complemento da frase seria:
 

 

“Porque a minha senhora, que hoje é acamada,…”; ou:
“Porque a minha senhora, que não gosta que eu conte histórias,…”; talvez: “Porque a minha senhora, que acha essas chuvas um perigo,…”;
 

 

Ou um terrível:
 

 

“Porque a minha senhora, que Deus a tenha,…”.
 

 

Sei que àquela altura o táxi já estava encostado no meio fio. Paguei a corrida e chapinhei na enxurrada até a segurança da cobertura da estação, mas ainda a tempo de ouvi-lo enfim se apresentar:
 

 

— Luiz Fernando, seu criado!