Conte Sua História de SP/460: o Aparador de Sonhos

 

Por Gabriel Fernandes
Ouvinte-internauta do Jornal da CBN

 

 

A parda palidez da poltrona de vime já estava oculta, desde cedo, pela Hercília, a velha e prestativa babá, sob um oleado esbranquiçado reservado para essas ocasiões. Aquele era um dia especial, mas o estado de espírito da garotada não era o mesmo. O caçula comprovadamente não gostava daquilo; os dois do meio se submetiam sem criar grandes dificuldades; como primogênito, eu tinha direito a algumas regalias.

 

O colorido tapete redondo de ráfia, que contrastava com a sobriedade geométrica do piso de ladrilhos hidráulicos da varanda, jazia enrolado em um canto, prudentemente afastado pela Hercília. A criançada espreitava do corredor enquanto o papai falava no telefone. Aquela conversa, que se repetia a cada dois meses em alguma manhã de sábado, já era esperada e temida. Não tínhamos como escapar do que viria a seguir. Revezávamos na vigia da porta da sala de visitas à espera do convidado indesejável. A estridência metálica da campainha não tardaria a romper o silêncio apreensivo da sala.

 

Priiiiim! Priiiiim! Priiiiim

 

Todos correm para a maçaneta da porta, mas é a Hercília quem a abre e anuncia para o papai: “Seu Eduardo, o Seu Ubaldo chegou!”. O papai deixa a sala. Seu Ubaldo sobe a escada que serve o jardim, atravessa a aspereza cinzenta do curto caminho cimentado que leva à casa. Sua silhueta obesa é recortada na tela luminosa de um dos arcos da varanda. Para nós, ele é um homem velho, de mais de 40 anos, pele morena de árabe, bigode fininho como linha de lã sob o nariz pontudo, voz estridente de trompete. Sempre traja o mesmo sovado jaleco branco, com cheiro de Aqua Velva misturado a um odor ardido de suor, que tem o condão de cobrir-lhe o arco convexo da volumosa barriga. Hálito de salsinha, a gente prendia a respiração até não poder mais.

 

As crianças não gostavam dele, eu acho. Ninguém gosta de tomar remédio amargo ou de ser picado por uma agulha de injeção, mas Seu Ubaldo fazia coisa pior. Como de costume, ele traz sua surrada maletinha marrom e seu cabelo crespo emplastado de brilhantina.

 

“Bom dia seu Eduardo, a criançada está crescendo, deveras!”. E passa a mão na cabeça da gente, despenteando nosso cabelo. Carrega, infalivelmente, uma tábua forrada com um desgastado couro sem cor e um sorriso sarcástico, talvez: “Quem é o primeiro?”

 

O Dario é sempre o primeiro. Caçula não tem direito a nada, não tem escolha. Ameaça abrir um berreiro, mas Seu Ubaldo já vem prevenido. De sua maleta de couro marrom, saca um pirulito e lhe oferece a vermelhidão açucarada da guloseima em forma de chupeta. A propina sempre funciona. Seu Ubaldo coloca a tábua estofada sobre os braços da poltrona de vime e senta o menino ali. Cobre o pequeno com um desbotado pano azul, deixando-lhe de fora apenas a cabeça. O inocente chupa o pirulito enquanto o barbeiro destrói seu cabelo com a infernal máquina manual: “Escovinha, né, seu Eduardo?” O caçula é o que mais sofre. Fica com a cabeça raspada como a bacia de comida do Lippy, nosso cachorro. Só resta um chumacinho de pelos curtinhos nos arrabaldes da testa, menor do que o do Cascão.

 

Vez ou outra, a voraz máquina de cortar cabelo mordia um pescoço inocente. Aí, as desculpas eram poucas e a choradeira profusa. Os dois do meio, o Eliseu e o Davi, já não se deixam seduzir pelo vermelhão adocicado da guloseima. Negociam com o papai não se sentar na tabuinha estofada e permissão para um corte mais civilizado. Condescendente, o papai cede quanto ao corte, mas eles ainda não têm estatura para se livrarem da tal tábua. Os pobrezinhos passam a exibir um vistoso corte americano: máquina um nas laterais até bem acima das têmporas e uma faixinha de cabelos curtinhos que se estende da testa até o cocuruto. Os bobinhos se dão por satisfeito.

 

Como o mais velho, eu tinha meus privilégios. Nada de pirulito vermelho de chupetinha, nada de tabuinha. Meu sonho de um cabelo como o do Elvis, cruzado na nuca com Gumex e um belo topete, porém, desfaz-se na geometria intrincada do chão de ladrilhos. Tudo que eu consigo é um corte meio-americano: uma raspadinha com a máquina dois logo acima das orelhas e um pouquinho mais de pelos no alto da cabeça.

 

Quando cortei meus cabelos, despedindo-me de minha vida de solteiro, foi o Ubaldo a quem procurei. Seu salão ficava na Rua Santa Cruz, na Vila Mariana, bem defronte à chácara dos irmãos maristas, do Colégio Arquidiocesano, onde, em dias de ócio, junto com meus irmãos, costumava surrupiar algumas frutas. Ele foi meu barbeiro desde os tempos da varanda de ladrilhos geométricos. Eu não sabia, ainda, que aquele seria um corte de despedida. Seu Ubaldo morreria alguns dias depois.

 

Por irresistível pressão familiar, me resignei a ir ao meu cabeleireiro habitual em uma galeria na Avenida Paulista. Teria preferido entrar na Martins Fontes que, do outro lado do corredor, tenta seduzir os frequentadores do salão com caos irresistível de suas vitrines coloridas. Deixei que o Antônio me tosasse a cabeleira, como costumava fazer o Ubaldo. Enquanto ele cometia seu desatino, o salão me pareceu, como num sonho, se transformar na velha varanda de casa. Pude rever meus irmãos, ainda crianças, e o rosto benevolente de meu saudoso pai. O Ubaldo confirmava com papai se, realmente, o meu poderia ser um corte meio-americano…

 

A lembrança me apertou o peito e a saudade quase se desprende de meus olhos como uma solitária lágrima. Se eu a deixasse cair, fundir-se-ia aos meus cabelos que, como sonhos aparados, jaziam no chão.

 

Gabriel Fernandes é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Conte mais um capítulo da nossa cidade. Envie seu texto para milton@cbn.com.br ou agende entrevista no Museu da Pessoa pelo e-mail contesuahistoria@museudapessoa.net. Outras histórias de São Paulo você encontra no meu blog, o Blog do Mílton Jung

Velhas e novas implicâncias

 

Falamos sobre qualidade do texto no rádio, semana passada, aqui no Blog e encontrei em meus favoritos o link para o texto que havia sido escrito por João Ubaldo Ribeiro e publicado, originalmente, no jornal O Estado de São Paulo, de domingo (24/04/2011), no qual ele destaca o uso de expressões comuns no noticiário que contaminam o discurso do brasileiro. Vale a leitura:

Semana Santa, bairro quieto e silencioso, jornais sem muitas notícias, uma certa preguiça. Ligo a televisão e um cavalheiro está falando sobre um assunto sem dúvida relevante, a julgar pelo semblante grave com que se dirige à câmera. Já por natureza lerdo de entendimento, cheguei no meio e não consigo atinar qual é o palpitante assunto. E deixo de tentar, assim que ele solta o terceiro ou quarto anacoluto em menos de um minuto. Anacoluto, já comentei aqui, é quando um elemento da oração fica sem função sintática, meio dependurado, como, por exemplo, “o Brasil, ele tem experimentado”, que o homem da televisão acaba de dizer.

Há quem estude esse tipo de fenômeno, porque realmente é interessante, pelo menos para linguistas e cientistas sociais. De alguns anos para cá, sem dar sinal nenhum de que vai embora, está perigando tornar-se regra tacar o anacoluto sempre que se usa um verbo na terceira pessoa. “Os deputados, eles não têm interesse nas reformas”, “o obeso, ele não deve ingerir açúcar” e assim por diante. Fala-se assim em toda parte, com essa espécie de sujeito duplo, e piora quando o falante está dando uma entrevista ou declaração pública, ocasião em que muita gente acha que deve botar paletó e gravata na linguagem. O anacoluto, que em si não tem nada de mau e é até um recurso estilístico, talvez seja visto como sofisticação de linguagem, ou sinal de que quem está falando tem bom conhecimento ou grande convicção do que diz. Sei lá, só sei que implico com esse abuso, que, na minha opinião, aleija a língua.

É engraçado esse negócio de querer enfarpelar a linguagem, quando se fala em circunstâncias formais, mesmo que apenas numa breve entrevista para um noticiário de televisão. Muitos se empertigam, abandonam sua maneira habitual de expressar-se e não só passam a caprichar nos anacolutos e similares, como na escolha das palavras, principalmente verbos terminados em “izar”. O que em casa seria usado, na entrevista é utilizado, assim como não se vê mais nada, só se visualiza. “Comerciar” praticamente não existe mais e chegará talvez o dia em que os que comerciam serão comercializantes. Aliás, ninguém vende mais nada, só comercializa.

Acho que foi essa necessidade de usar palavras por algum motivo consideradas preferíveis, ou chiques, que ocasionou o triste banimento dos verbos “botar” e “pôr”, preteridos universalmente por “colocar”. Ainda não vi referência a galinhas colocadeiras, em lugar de poedeiras, mas já li sobre galinhas colocando ovos e o dia das colocadeiras não deve tardar. Destino semelhante teve “penalizar”, que de uma só cajadada botou (colocou, já ouvi isso até em narrações esportivas) “prejudicar” para escanteio e nos obrigou a ficar, se for o caso, comiserados ou condoídos com o sofrimento alheio, mas nunca penalizados. Ainda no setor de banimentos, temos o caso de “difícil”, que, quem sabe se por ser politicamente incorreto, é hoje sempre substituído por “complicado”. E acredito que estamos presenciando o degredo talvez permanente da locução “por causa de”. Acho que maioria de vocês nem deu por isso, mas agora prestem atenção e notarão. Ninguém mais diz “por causa de”, diz “por conta de”. “Ficou em casa por conta de uma dor de cabeça”, “brigou por conta de uma dívida”.

E o “você”? Continua também, mais firme do que nunca. “Você armar um time ofensivo é mole, o que você não pode é deixar a defesa adiantada demais, porque aí você fica exposto a contra-ataques que você poderia evitar, se você posicionasse melhor a zaga.” E “jovial”? Creio que deve resignar-se a não querer mais dizer “cortês” ou “afável”. Já fiz uma checagem entre conhecidos e me surpreendi com a quantidade de gente que o liga a juventude. E o “então”? Observem como é cada vez maior o número de pessoas que inicia uma resposta com um “então” de significado obscuro. “Você foi lá hoje?” perguntamos. “Então”, começa a outra pessoa. “Não, não fui.” Acho que já tem gente que só responde depois de dizer “então”, deve ser cabalístico.

E “acontecer de”, como em “aconteceu de eu ver”? Não existe a menor necessidade desse “de” aí e o verbo sempre passou muito bem sem essa preposição. Prescinde dela como em “aconteceu ele estar presente”, ou se usa a integrante “que”. Imagino Caymmi cantando “acontece de eu ser baiano, acontece de ela não ser”. E “meio que”, que é isso? “Ele estava meio que preocupado com a situação”, “ela ficou meio que na dúvida” – que faz esse “que” aí? E “combinar de”? “Combinar” jamais teve necessidade desse “de”.

Finalmente, é cada vez mais observável que a tendência é dizer “brasileiros e brasileiras”. O plural no masculino, como era a regra, parece que não está valendo mais. Agora é “eleitoras e eleitores”, “agricultores e agricultoras”, “professores e professoras”. A tendência, imagino eu, será eliminar as palavras comuns de dois gêneros. Teremos, assim, “estudantos e estudantas”, “dentistos e dentistas”, “crianços e crianças” e – por que não? – “pessoos e pessoas”. Isso é reforçado pela preferência que a presidente Dilma tem revelado. Ele não somente quer ser chamada de “presidenta” – o que, aliás, já está dicionarizado – como, quando tem plateia, dirige a palavra aos presentes distinguindo o gênero deles, como, por exemplo, “operários e operárias”. Tudo bem, a língua é viva e não para de mudar. Mas não se pode deixar que ela corra solta, a norma culta é indispensável para a sobrevivência da língua como instrumento de comunicação científica e artística. Além disso, certas coisas acabam não dando certo. Por exemplo, a presidente pode preferir ser presidenta, mas, quando mencionada na condição mais genérica de “governante”, duvido que ela queira ser designada pela forma feminina da palavra.