De céu e inferno

Por Maria Lucia Solla

Olá,

A turba alvoroçada prepara-se para um encontro com um mestre. Esperam que, num passe de mágica, ele possa lhes abrir as portas do céu. Ansiedade campeia e prolifera no ar.

A figura do mestre se aproxima sem que ninguém perceba. Nada de carruagem de fogo, helicóptero, ou nave espacial. Chega sem cortejo. Passeia o olhar pela multidão, sorri e não diz; pergunta: Quem sabe onde ficam Céu e Inferno? 

Menina entre o céu e o inferno, na AmarelinhaApós um mergulho no silêncio da surpresa, segue-se um ensurdecer de vozes descompassadas, pipocam desmaios, e alguns entram em transe, falando línguas só conhecidas no recôndito de suas próprias almas. Ninguém sai incólume. Há os que ficam imóveis, o olhar perdido num horizonte qualquer, tomando coragem para ver, e há outros, fisicamente agitados, que despejam, em público, o conteúdo de malas e malas de conceitos sufocantes, dos quais nunca haviam se separado. E endireitam a coluna, aliviados do peso. Ele olha. Sorri novamente um sorriso maroto, e vai embora. Parte como chegou. Sem Pompa e Circunstância.

Se isso aconteceu ontem, hoje, nesta realidade ou noutras paralelas; se ainda está para acontecer ou ainda se nunca aconteceu, não faz a mínima diferença.

Se eu estivesse lá, faria parte do grupo que fala mais que a boca. Diria que hoje vejo claro e cristalino que céu e inferno não ficam nem lá em cima, nem lá embaixo. À esquerda, à frente, à direita ou atrás. A gente se acostumou a olhar para fora.

Quantas vezes transitei por esses dois conceitos! Pior do que o esquizofrênico que constrói o castelo de areia e vai morar nele, eu acabava morando num castelo de areia que nem era meu. Tropeçava no céu e dizia: Inferno! Vivia um tempão ardendo no mármore do inferno, acreditando que aquilo era o mais próximo do céu que eu conseguiria chegar.

Então, fi-nal-men-te entendi, na mente e no coração ao mesmo tempo, que não fazia mais sentido continuar acreditando num céu e num inferno tamanho-único Não fazia sentido continuar a fingir que acredito que tudo acontece do lado de fora. Joguei fora a crença de que alguém pode manejar as rédeas da minha vida, enquanto eu descanso dela.

Não acredito mais que ter razão seja importante, e procuro não desperdiçar os preciosos minutos da minha vida, perseguindo sonhos que decididamente não são meus.

E você? Como andam seus conceitos de céu e inferno?

Pense nisso, ou não, e até a semana que vem.

De céu e inferno na voz da autora e com a música War cantada por Edwin Starr

Maria Lucia Solla é terapeuta, professora de língua estrangeira e autora do livro “De Bem Com a Vida Mesmo Que Doa”, publicado pela Libratrês. Todo domingo relata por aqui a experiência conquistada desde os tempos em que pulava amarelinha

11 comentários sobre “De céu e inferno

  1. Tenho costumeiramente acordado domingo de manhã e lido meus e-mails. Neles, especialmente nos da Malu, encontro um pouco de poesia, filosofia e alegria de viver. A vida é assim, um dia está tudo perfeito, em outro estamos só respirando, as vezes com a dificuldade da poluição… Bom, deixem as emoções saírem…. bjs Tatá

  2. PARABÉNS Maria Lúcia!
    Fico contente de ver que as pessoas não estão adormecidas. O que importa é o aqui e o agora e o respeito ao ser humano que sem dúvida está aí. O resto são conjecturas das quais não temos como transformá-las em realidade. Os conceitos de “céu e infermo” estão relacionados ao mundo da vida cotidiana, mundana. Concordo contigo Maria Lúcia quando dizes que o importante é não disperdiçar a vida atua. O resto como diria um conhecido: “é conversa flácida para adormecer bovino”. Abraço e continue a nos fazer refletir sobre conceitos criados pelo próprio ser humano. Anna

  3. Oi querida , maravilhoso este texto de hoje ! E como é “importante” descobrirmos a importancia de não ter que ter ,sempre , razão ! Bjs, Maryur

  4. Ahanna!

    Cunhada minha. A irmã que eu não tive. Amiga. A quem admiro e respeito. Brilhante profissional. Escritora, Doutora em enfermagem. Quadrimãe. Liinda. docemente firme e firmemente doce.

    Amo você,
    Lu

  5. Vilém Flusser na obra ‘A dúvida’ defende que não existem conceitos sem palavras, portanto, podemos ir direto ao que interessa. Toda via, penso que cada palavra carrega um universo onde o linguístico faz sua morada, por assim dizer. Se não, profanação vira um ato democrático, mais do que uma categoria do conhecimento que estabelece nossa relação com as coisas. Sei la..

    Abs.,
    _

  6. Júnior,

    faço eco das suas últimas palavras: Sei lá…
    Bom te ouvir, e obrigada por me apresentar mais uma fonte de reflexão.
    Vou curiosar sobre Flusser.
    Acabo de ler que ele morou no Brasil.

    Beijo e até domingo,
    ml

  7. flusser? nossa ! quanto tempo. foi meu professor de filosofia em 61 no mackenzie.
    chega, para não virar festa baile e começar a cheirar naftalina.

    beijo.
    edgar

  8. hahahahaha
    edgar, que delícia de comentário!
    tempo em que o mackenzie e o rio branco (de onde brotei) eram inimigos, esnobavam um ao outro. Divertidíssimo. O chico buarque era quem diminuia a rivalidade. Senti perfume de Rastro.

    beijo,
    ml

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