Da Segunda Guerra ao primeiro ônibus nacional (II)

Por Adamo Bazani

Onibus exportados para Venezuela

“Sim, aqui tem fome, injustiças, dores, mas perto daquele cenário, o Brasil era uma Terra Prometida por Deus. Tanto é que alemães que nunca aqui estiveram, vieram na mesma embarcação”.

A afirmação é de Alfredo Nitsche, brasileiro obrigado a vestir a farda do exército de Hitler durante a 2a. Guerra Mundial, que lutou para não confrontar os soldados brasileiros enviados à Europa, conforme você leu – ou leia aqui, se quiser – no primeiro artigo sobre ele, publicado semana passada.

Ao retornar, após a Guerra, Alfredo teve uma breve passagem por Curitiba (PR) e foi parar em Santo André, no ABC Paulista, em 1949. Trabalhou nos armazéns Bazani e Chioratto, de Vangelista Bazani e Adelino Chioratto, na Rhodia Química e, conseguiu um emprego na Mercedes Benz, em 1956 A empresa de capital alemão estava se reestruturando no mundo e o Brasil estava nos planos.

Primeiro ônibus  brasileiro Alfredo Nitsche começou no almoxarifado, mas com a dedicação e a facilidade de se comunicar com os diretores – todos alemães -, ele cresceu na Mercedes Benz, que fazia chassis para caminhões utilizados em ônibus. A empresa tinha um grande projeto, do qual Alfredo fez parte. A construção do primeiro ônibus com tecnologia nacional.

Quando foi escalado pela diretoria para comandar os 1.400 operários que construíram o primeiro monobloco brasileiro, Alfredo disse se sentir na Guerra de novo. Mas uma Guerra que vale a pena e com uma tropa realmente motivada.

“Apesar de todo o projeto dos engenheiros alemães e da tecnologia que a Mercedes desenvolvia no Brasil, o primeiro ônibus monobloco (carroceria e chassis formando um volume só) era um desafio, algo nunca ocorrido no Brasil”.

Alfredo conta que, mesmo liderando a equipe, pegava no pesado.

“O O321, chamado por nós de ‘Super B’, foi uma sensação no mercado de ônibus brasileiro, até então com tecnologia de carrocerias sobre bases de caminhão e até carrocerias de madeira operando nas grandes cidades. Mas quem via o milagre, não via o santo, aliás, os 1.400 santos”.

O ex-combatente e agora operário contou que o O 321 foi feito a marretadas. Todas as peças foram moldadas quase artesanalmente, apesar de a produção ser em linha.

“Pegava uma chapa de mais de uma tonelada, colocava no molde e com a marreta fazia com que ela ganhasse a forma da peça de ônibus. Era tudo muito pesado. Hoje, um perfil metálico que pesa 300 quilos, antes pesava mais de uma tonelada”.

Apesar da técnica usada, pode-se dizer que o O321 foi feito como uma obra de arte pelos funcionários.

“O carinho com o projeto era enorme e todos contavam a parentes e amigos orgulhos que viria um ônibus moderno para época, com cara de Brasil”.

Cara de Brasil que ganhou o mundo, logo após o lançamento um lote de veículos foi encomendado pela Venezuela.

“Fazer parte do projeto Super B me fez ganhar uma nova vida. Toda minha motivação tirada pela Segunda Guerra voltou. Tínhamos momentos difíceis, sim. Tinha dias de desânimo, cansaço, da tristeza de ver funcionários machucados, existia, mas era uma Guerra que valia a pena. Na Guerra das Armas, não há vencedores. Na Guerra do Trabalho, de levantar cedo e abraçar uma causa, todos vencem. O lado pessoal, a empresa e a sociedade. Vejo um ônibus hoje e penso:  puxa, fiz parte desta história”.

São duas marcas na mente e no corpo de Alfredo Nitsche. Os calos por esculpir os primeiros Super B e as cicatrizes das granadas da perna. Apesar de jovem, Alfredo teve de se aposentar na Mercedes Benz, em 1976, quando o Monobloco O364 já estava no papel. É que as marcas da Segunda Guerra se manifestaram de novo e Alfredo teve problemas de saúde por conta de alguns estilhaços de granada que não foram retirados das pernas dele.

O médico da Mercedes Benz escreveu laudos e laudos sobre a condição de Alfredo, pedindo um reconhecimento por parte do governo alemão, pois foi lutando pela Alemanha que ele se feriu e teve de parar prematuramente. Segundo a filha dele, Doris, o governo alemão tratou o problema com descaso e nada garantiu à família.

“Devemos o apoio que tivemos ao Brasil e a Mercedes Benz, onde Alfredo era muito querido, porque do  País pelo qual ele arriscou a vida, só tivemos desprezo”,

Alfredo se considera um vencedor.

“Venci na Guerra, mas o que me orgulha mesmo é a família e o meu querido monobloco O321, que deu origem a uma nova tecnologia nos ônibus brasileiros.”

A Mercedes não produz mais monoblocos devido aos custos, mas todos os profissionais do setor, que atuaram naquela época afirmam que eram bem melhores para trabalhar e mais confortáveis para o passageiro. O lançamento do O371 Urbano foi um divisor de águas no mercado de ônibus urbanos e até as carrocerias tiveram de se modernizar.

“Agradeço a oportunidade de contar minha história, principalmente para conscientizar o mundo que se quisermos ter um futuro melhor, tempos de investir na educação, no diálogo, na inteligência, não em bombas, que trazem marcas que o tempo não consegue tirar. Viva a Guerra do Trabalho. Pode ter certeza, você que levanta cedo, pega ônibus pra trabalhar, volta cansado, é um soldado, o da Guerra que vale a pena” .

A emoção nas palavras de Alfredo Nitsche está nas lágrimas quase incessantes nos olhos e se reflete na sensação deste repórter, um privilegiado por ter a oportunidade de contar a todos a história de vida, luta e trabalho que é um exemplo.

Adamo Bazani é repórter da CBN e busólogo. Costuma escrever às terças no Blog do Mílton Jung, mas, atualmente, tem enviado tantos textos que vai acabar dono deste espaço.

4 comentários sobre “Da Segunda Guerra ao primeiro ônibus nacional (II)

  1. Parabéns Adamo pelo excelente trabalho, isto é um documento histórico, estou acessando pela primeira vez esse blog e gotei muito acho que as histórias sobre ônibus, empresas e empresário são ricas para entender o nosso pais sobretudo essa metrópole chamada São Paulo, fica uma sugestão de você fazer uma série sobre a histórias das empresas paulistanas.

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