Coisas da Vida

 

Por Christian Jung
Do Blog MacFuca

Milton Ferretti Jung, ontem e hoje

O título do texto parece bem atual, mas na verdade reproduz o nome de um comentário que era redigido e lido pelo meu Pai, lá pelos anos de 1950 na então Rádio Canoas. Tenho vários deles em casa e me impressiono como o conteúdo na época era praticamente o que se vê ainda hoje. Reclamações ao prefeito Leonel Brizola do aumento das passagens de ônibus, a avenida São Pedro alagada após a chuvarada, o bonde que não conseguia passar, os carros que se arriscavam e os transeuntes chegando atrasados ao trabalho.

Bom, o que me traz aqui não é o conteúdo dos textos isso pode ficar para outro dia. O que me traz aqui mesmo é o locutor em questão.

Destes anos que já vivi, me dou o direito de analisar determinadas situações, visto que o tempo nos dá ao menos a possibilidade de refletirmos.

Filho de radialista, me criei sempre com a desconfiança e a palavra coerente de minha mãe dizendo que tudo que eu reclamava em frente ao rádio (em relação a ela, é lógico) meu Pai escutava na rádio. Sempre olhei para aquele aparelho de madeira sobre o balcão com desconfiança e, por vezes, resolvi mudar o teor da conversa para possíveis cobranças ao fim do dia. Sabe como é, entre falar e correr o risco, o silêncio era a melhor opção. Evidentemente que minha mãe contava tudo e sempre quando aquela “voz do rádio” chegava em casa era informada sobre os ‘acontecidos’ do filho mais novo. (Certamente da irmã mais velha e do irmão do meio, também, mas esses assuntos não eram de minha alçada). Afinal de contas ele era o locutor oficial do Correspondente Renner, como o é até hoje.

As cobranças dele sempre foram brandas, eu é que me apavorava. Sabe como é, Pai é Pai.

Lá em casa se acordava, almoçava e dormia com a característica de abertura do Correspondente Renner (hoje, atropelada pela tecnologia e falta de sensibilidade). Até mesmo quando pegava carona de carro com os pais de alguns colegas de colégio lá estava ele. Meu Pai! Trazendo as últimas informações das agências de notícias. Rádio ligado era como uma transferência à distância da relação afetuosa de alguém que me ensinou desde pequeno que “pano que cai no chão não se esfrega no carro”. Filosofia masculina de quem não passa o domingo sem um paninho na máquina.

Ainda se não bastasse a leitura do noticiário, tinha a locução esportiva, narração essa que lhe deu o apelido de o “Homem do Gol, Gol, Gol”. Bordão gravado em muitos discos de vinil da história do futebol brasileiro. Caminhar pela rua com ele era escutar no mínimo duas ou três vezes alguém gritando “Milton Gol-Gol-Gol Jung”. Era sempre isso. Bem, tinha também os dias de jogos. Morávamos, aliás, moro ainda perto do Olímpico e de fato meu Pai nunca escondeu ser gremista. Essa coisa de ficar fazendo gênero não é com ele. Dependendo do resultado, ao fim da partida, sempre tinha um cidadão que passava em frente de casa, esses vizinhos meio descompensados, que gritava: “Milton Jung, gremista filha da p…”. Já era folclor, eu dizia pro Pai. Olha só, o Vitor Hugo passou por aí (esse era o nome do artista que fazia os elogios). E assim me criei neste meio radiofônico tendo como rotina as visitas à Rádio Guaíba e ao Correio do Povo, de onde pegava os restos de chumbo dos linotipos pra colocar dentro dos carrinho de plástico para ficarem pesados e não capotarem nas brincadeiras.

Enfim, desde que me dei conta de identificar de quem eram as vozes que escutava quando ainda bebê, nunca mais parei de ouvir a voz do meu Pai. E lá em casa, a palavra voz tem uma poesia incrível porque se vive dela também. Aprendi a relação que tem ler e interpretar ou somente ler. Que quem te escuta, visualiza as palavras. Que da voz que produzimos, o oxigênio é a nossa gasolina. Que a quem nos ouve, devemos respeito, e para isso precisamos ser confiantes, fortes, alegres e, principalmente, coerentes com a informação que estamos passando.

Se ele algum dia me disse isso?

Não, nunca precisou, porque a admiração que sempre tive e tenho até hoje e a postura correta de bom profissional, sempre me fizeram entender que esses que gritam o seu nome na rua, gritam porque o que lhes chega é muito mais que notícias, é a mais pura poesia de quem nasceu com o dom de transformar um simples aparelho de rádio em um companheiro inseparável.

Por isso Pai, depois de um tempo te vendo afastado do rádio e mesmo com todas as mudanças na nossa velha e eterna Rádio Guaíba, tenho que te dizer que o sentimento de saber que tu estás ali dentro daquela caixa de madeira que eu achava que tu me escutavas, me dá a completa percepção que o teu tempo ainda não se acabou, que o velho microfone Neumann de Fita continua lá, no mesmo lugar, te esperando, esperando a pressão da tua voz pra funcionar. Porque não só ele, mas todos os teus fiéis ouvintes, os que virão a ser, e, principalmente, eu nos meus 43 anos, preciso muito ouvir a tua voz.

Volta Pai, porque estas coisas que aconteceram e as que estão por vir, “São Coisas da Vida.”

Um grande beijo!

Christian Jung é mestre de cerimônia, meu irmão e filho e radialista. Este texto foi escrito originalmente no Blog Mac Fuca do qual ele é o autor.

2 comentários sobre “Coisas da Vida

  1. Milton,

    Sou gaúcho e cresci ouvindi a rádio guaíba, lendo correio do povo e folha da tarde. (Bons tempos)
    Que suadade de ouvir o grito de “gol, gol,gol” do velho narrador e grande locutor.
    Que saudades daquela época, mas a vida anda prá frente…Moro em Taguatinga (DF) e ouço a CBN, e leio seu blog.
    Meus sentimentos.

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