Por Milton Ferretti Jung
Não sei até quando os leitores deste blog vão aturar que eu conte histórias como as que já postei, isto é, nas quais sou personagem. Vou me arriscar a lhes pedir licença para relatar mais uma.
Já escrevi sobre o tempo em que meus pais,cansados das minhas artes, decidiram me mandar para um internato, o Colégio São Tiago, em Farroupilha, na época uma cidadezinha situada na serra do Rio Grande do Sul que, como tantas outras, foi colonizada por italianos. Eles já me haviam ameaçado me internar no São Jacó, em Novo Hamburgo, um pouco além da Grande Porto Alegre e pilotado por maristas,tal qual o São Tiago. O número que deveria ser bordado nas minhas roupas seria 86. Como no internato para o qual acabei indo seria o oitavo hóspede, bastou que o 6 fosse retirado.
Meu antecessor no educandário morava na mesma rua que eu, na capital gaúcha. Meus pais se informaran sobre o colégio com os dele, cuja paciência com o comportamento do filho foi seis meses mais curta que a dos meus. Bruno, este o nome do meu companheiro de desdita, havia chegado no início do primeiro semestre de 1947 e eu, no começo do segundo. Viajamos juntos ,acompanhados pelos meus genitores. O trem, então, era o melhor meio de transporte. A viagem começava em Porto Alegre, passava por Farroupilha e terminava em Caxias.
Na primeira semana de aula dei parte de doente. Foi quando,como já relatei numa dessas quintas-feiras em que tratei dos estranhos sabores do vinho,que o Irmão Inácio me serviu,no dormitório,o primeiro copo desta bebida,sem que estivesse misturado com água,como ocorria,por ordem paterna,na minha casa. Vinho à parte, volto a história. Depois que comecei a comparecer às aulas normalmente,apenas às vespertinas me deixavam um tanto contrariado. Após as matutinas, almoçava-se e, em seguida, no gramado ao lado do ginásio de esportes, jogava-se uma pelada,todos vestidos com suas roupas normais,nada de fardamento. Esse, somente usávamos nas quartas-feiras, dia em que se jogava para valer. Os do selecionado do colégio, diariamente, tinham de acordar às cinco da manhã para fazer exercícios físicos. No inverno,era um horror levantar tão cedo. Eu jogava na seleção. Comecei como lateral e terminei no gol, posição em que era menos ruim.
Um belo dia ou, para ser mais preciso, uma bela tarde, quando faziamos fila para entrar nas salas de aula, o Bruno ficou na minha frente. Não sei por que cargas d’água (expressão antiguinha esta,não?) talvez por culpa do nojo que me dava ser obrigado a estudar em dois turnos, fiz uma indecorosa proposta ao Bruno:
– Cara,vamos fugir do colégio?
Ele me olhou meio espantado, mas, para minha surpresa, topou. Bolei como seria o nosso procedimento. Após as aulas, havia breve interrupção e logo tínhamos que ir para o que era conhecido por “estudos”, na minha ótica, outra chatice sem tamanho. Combinei com Bruno que a gente pediria licença para ir à privada, coisa que nos daria chance de escapar e que escapar pela porta lateral do ginásio esportivo. Não contávamos, porém, que um colega fosse usar o WC exatamente na hora em que iniciaríamos o nosso plano. O que fazer? Simples, pensei e pus em prática: fechamos o colega pelo lado de fora. E nos largamos com a meta de chegar a Caxias do Sul, minha cidade natal. Nem Bruno nem eu tínhamos e menor idéia do que fazer depois.
Para não sermos vistos por algum conhecido, precisamos dar uma grande volta até atingir os trilhos do trem e seguir, pela linha férrea, em direção ao nosso destino. Com isso, perdemos muito tempo. Não tardou e começou a escurecer. Logo era noite fechada. Andáramos apenas nove quilômetros. E bateu o medo. Mato fechado em torno dos trilhos. Ir adiante ou voltar? Retornar foi a decisão que tomamos unanimemente. E voltamos rezando o terço durante todo o caminho de regresso. Não me lembro da hora, mas era bem tarde quando chegamos ao São Tiago, para alívio geral: dos fugitivos, isto é, nós: dos maristas e dos nossos pais,que haviam sido informados do desaparecimento da dupla pelos irmãos. Para nossa surpresa,o castigo não foi dos mais pesados: cada um teve de escrever uma carta aos pais,explicado o que fizéramos e a falta de razão para justificar a atitude tomada; tivemos também que decorar o I-Juca Pirama, poesia interminável. Recordo-me que precisei escrever mais de cinco cartas até que a última não fosse censurada pelo irmão regente. Ainda bem que meus filhos e netos não me tomaram como exemplo.
Mílton Ferretti Jung é jornalista, radialista e meu pai. Às quintas-feiras, escreve no Blog do Mílton Jung (o filho dele)
Bah ai é que eu vejo que fui um santo. Que sorte a tua hein Pai.
Beijo
Prezado Milton Ferretti Jung,
a sua história, desenha-se assim, em minha memória a imagem de uma pequena e modesta escola primária. Do fundo verde-escuro, representado pela fronde de velhas árvores, emergem contornos brancos do singelo edifício escolar. Constitui ele uma mancha clara pincelando com a diferença da cor o espesso colorido verde do estupendo e agreste quadro natural. Cobre-o telhado enegrecido pela ação de tantas chuvas que suportou e cujo tamborilar, naquelas remotas eras, soava sons aos meus ouvidos com acordes sublimes de uma canção divina e misteriosa.
Foi ali, dentro de suas velhas paredes, ouvindo a sinfonia do vento nas ramagens das árvores próximas, que eu tive a ventura de conhecer a única professora da qual recebi, os únicos ensinamentos que pude adquirir num estabelecimento educacional: o ensino primário.
Vejo-a ainda em sua mesa de trabalho com seus olhos negros a destacar-se do moreno pálido do seu rosto emoldurado pela vasta cabeleira castanha.
Vejo-a afagando os meus cabelos revoltos de garoto livre e sonhador, criado na vastidão sem limites da cidade de Novo-Horizonte/SP. Recordo-me muito bem da última vez que a vi quando nos deixou, partindo para a cidade de Campinas, enquanto eu lhe depositava nas mãos o ósculo do meu respeito e da minha imorredoura gratidão.
Meu conselho: escreva um livro.
Abraços de quem o admira,
Nelson Valente
Obrigado,Nélson Valente. Nós,mais velhos,sempre temos o que contar sobre o passado,como fiz no meu texto e o amigo,no seu comentário. Ainda não me atrevi as colocar as minhas em livro.
Prezado Milton Ferretti Jung,
ninguém pode fugir à História. Clara ou oculta, essa “senhora”, está presente em todos os nossos dias. Sempre considerado importante. Não só ela mas também esse cavalheiro, mais misterioso ainda, sem o qual ela não poderia existir: o Tempo.
O que é o novo? O novo é coisa velha reinventada, portanto, somos jovens!
Estou separando Vossos artigos para uma publicação de um livro e com comentários dos amigos do Blog do Milton Jung.
Abraços de quem o admira,
Nelson Valente