De luz

 

Por Maria Lucia Solla

Por dois ou três minutos vou me esvaziar de mim e, durante esses cento e tantos segundos, deixar-me invadir por uma luz que ilumina sem brilhar e conforta sem subjugar. Mas é preciso que eu tenha cuidado para não me render à tentação de pensamento e emoção que brotam do ego, e para não enfiar em cada canto disponível a fissura por controle e julgamento.

Vou percebendo a luz se alastrar num raio desmedido, sem freio nem direção, tocar tudo o que encontra pela frente e transformar tudo o que é tocado. Colher lágrima de dor e semear alento, distribuir compaixão e coletar solidão, cansaço e descrença. Ela vai apagando a certeza, depondo a razão, apagando dos olhos e da memória do homem a mentira e desmentindo a fé que precisa de guia para chegar ao Criador.

Ela vai fazendo o que lhe é próprio fazer, tocando cada canto esquecido de cada esquina de espaços que desconheço e apagando a lembrança dolorida, o sonho fracassado, a frustração pelo que passou e a incerteza pelo que ainda nem chegou. Vai alcançando cada um: letrado e desletrado, enricado e empobrecido, diplomado e tatuado, o calmo e o arretado, o querido e o detestado, e vai sinalizando o caminho para o fim de tanto sofrimento.

Vou me aquietando enquanto ela põe rédeas na minha mente que mente, que mente, que mente, que me leva pela estrada errada que vem prometendo o cetro e a coroa desde a materialização do nosso chão e do nosso céu, que nem mesmo nossos são.

Ela vai convencendo a mim, e a quem puder alcançar e tocar, de que é melhor deixar ir o que nunca foi e nunca será meu, que nem sempre quem ama é amado, e que para o amor não há regra e nem livro editado. Vai afastando de mim, e de quem puder alcançar e tocar, os rebentos da carne e do coração, como faz a macieira que permite que a maçã se solte e siga o próprio destino. E ela, a luz, ainda vai desativando bombas criadas para destruir, e vai levando dos nossos corações o impulso de matar e de morrer e plantando, em seu lugar, coragem de viver, mansidão e leveza de simplesmente ser.

Que o toque da luz nos faça esquecer o que precisa ser esquecido, administrar o possível e aceitar o impossível.

Maria Lucia Solla é terapeuta, professora de língua estrangeira e escreve, aos domingos, no Blog do Mílton Jung

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