Coisa de cidade grande

 

Milton Ferretti Jung

 

Nasci em Caxias do Sul no distante ano de 1935. Como a maioria dos que se dão ao trabalho de ler estes meus textos das quintas-feiras sabe ,com certeza, Caxias foi uma das várias cidades, neste Brasil, colonizada por italianos. Meu pai era porto-alegrense e minha mãe, uma das quatro mulheres de uma prole completada por mais seis homens, caxiense como seus irmãos e irmãs. Vovô Vitaliano Ferretti não brincava em serviço. Possuir muitos filhos, naquele tempo, foi-se tornando, com o passar dos anos, cada vez mais difícil. E ainda mais filhos da mesma mulher. A vantagem é que os pais, como meu avô, punham os rebentos a os ajudar. Seu Vitaliano (o nome já dava uma ideia da nacionalidade dele) produzia mandolates e alguns dos filhos, imagino que os mais moços, vendiam a guloseima no cinema – creio que, na época, existia apenas um em Caxias. A receita do mandolate era da região Vêneta, de onde vieram para o Brasil inúmeros emigrantes italianos. Meu avô por parte de mãe foi um dos mais operosos. Chegou a ter uma malharia cuja sede ficava em sua casa. A residência avoenga era um sobrado, com porão e sótão. As peças, em sua maioria, eram grandes. Situava-se na principal avenida da cidade, a Júlio de Castilhos, naquela época ainda uma via sem calçamento. Quando chovia, ficava escorregadia e dificultava o ir e vir de caminhões, muitos carregados com toras.

 

Foi na casa da Júlio de Castilhos que nasci. Meus pais moravam em Porto Alegre e minha mãe deu-me à luz com auxílio de uma parteira, o que era normal naquele tempo. Permaneci por uma semana aos cuidados da vô Joana. Visitávamos seguidamente minha cidade natal, na qual eu possuía uma infinidade de tios e primos, muitos deles empregados da Eberle, forte indústria, dedicada à fabricação de talheres e outros produtos, que nasceu de uma simples funilaria montada por Giuseppe Eberle e vendida ao seu filho Abramo. A Caxias dos velhos tempos, a que mais cresceu na região de colonização italiana, está pagando alto preço pelo seu progresso. Vieram pessoas de todas as partes em busca de trabalho, o que havia sido uma vila se transformou. Os veículos que, aos poucos, foram substituindo os cavalos e as carretas que os colonos usavam para vender seus produtos de porta em porta, entopem hoje as ruas de Caxias. Ainda bem que o meu avô não viveu para ver em que se transformaria a sua cidade .Se vivo fosse, com certeza, tal qual este seu neto, nem sequer teria vontade de ir a pé do bairro de São Palegrino à praça que ficava em frente à Catedral e onde as pessoas se reuniam depois da missa dominical. Vovô Ferretti subia e descia a Júlio de Castilhos tão rápido, apesar de já ter idade avançada, que quase não conseguíamos o acompanhar. Inverno e verão, ele vestia terno com colete e não dispensava a gravata. Saudade machuca, mas não mata. Se matasse, eu já estaria morto. E este sentimento fica ainda mais palpitante quando leio o noticiário policial. Caxias do Sul participa dele com desgraçada frequência. A última notícia ruim publicada pelos jornais de Porto Alegre deu conta de que um jovem, por ter sido expulso de uma boate, matou duas pessoas a sangue-frio e feriu outra gravemente. Faz muitos anos que não visito Caxias. A que eu conheci não existe mais. Era dela que eu gostava.

 


Milton Ferretti Jung é jornalista, radialista e meu pai. Às quintas-feiras, escreve no Blog do Mílton Jung (o filho dele)

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