Conte Sua História: Dona Maria do Carmo, uma mulher de verdade

 

No Conte Sua História de São Paulo você acompanha o texto da ouvinte-internauta Meg Guida, no qual fala da Dona Maria do Carmo, a mãe dela que tinha uma enorme capacidade de começar de novo:

 


Ouça este texto que foi ao ar, sonorizado pelo Cláudio Antonio

 

No bairro da Vila Romana, nos idos de 1970, muitas famílias ainda incorporavam expressões em italiano em frases do dia-a-dia. Eu me lembro que minha avó fumava sem culpa porque, na lavoura, quando emigrou da Sicília para cá, pitava para espantar os mosquitos.” Va via”, repetia a minha mãe quando eu ia roubar a massa do crostole estendido sobre a mesa, me repelindo da cozinha, imitando o que a nonna fazia com os mosquitos. Trabalhar pesado era tão natural quanto acordar todas as manhãs, comer e dormir. “Al lavoro”, como palavra de ordem, sempre foi um mantra para mim. E minha mãe, Maria do Carmo, a Carminha, como ninguém fez valer a prática da lida com suor e recompensa. O nosso verbo era começar.

 

Embora o dicionário descreva como a mesma coisa, recomeçar é diferente de começar de novo. Recomeçar, na minha conta, significa iniciar de onde você parou. E de onde você parou pode ser uma parada nada bacana. Você pode ter parado na mesmice, no ostracismo, na concordata e na falência de si mesmo, de suas ideias e perspectivas. No começar de novo, estão atitude e ação. Você sai do estado de paradeira. Olha o cenário da quilometragem que percorreu e se guia por esse espelho retrovisor para acelerar e chegar inteiro, cuidando para não fazer bobagens no meio do caminho. Quem apenas recomeça, sem entender porque parou ou foi parado, corre o risco de repetir o padrão do erro, inconscientemente. Aliás o prefixo “re” sugere mesmo algo a ser reparado, consertado, remendado para fazer o papel de que voltará a ser e ter o efeito de inteiro. Já viu se algum artista que se relança? Uma empresa que se relança? É a mesma coisa que falar do último lançamento de um cantor. Quer dizer que depois desse, não haverá outro?

 

Bem, mas voltemos ao começar de novo. Minha mãe, Maria do Carmo, a Maria, a Carminha batizada assim pelos amigos nos últimos 30 anos, comemorou os seus 80 no dia 25 deste mês, março. E viveu a vida começando de novo, usando um vigor que eu sei lá de onde ela tirava para cada fase, para cada projeto. Minha mãe olhava pelo retrovisor do passado apenas para estar segura de andar para a frente sem bater em ninguém nas ultrapassagens, nas curvas. E ela chegava com sucesso ao destino, sempre. Lembro que na minha infância eu convivia com muita gente em casa, mais de 15 pessoas no usual. E família de verdade éramos eu, minhas duas irmãs e meus pais. Vocês podem acreditar que ao se casar, minha mãe herdou a sogra viúva doente, velhinha, com mais seis pessoas, marido e filhos de uma cunhada recém-adquirida e falecida? E ainda acham que a Amélia era mulher de verdade….Durante anos eu vi minha mãe na ativa, mirando adiante e para o alto. Fazia tudo em casa, sem empregada, cozinhava para um batalhão e sem sal para a minha avó, cuidava de todas nós, acompanhava o dever de casa e ainda por cima costurava como ninguém. Tirava os modelos das revistas e nos vestia como princesas, sem repetir na criação. Até para os nossos cabelos ela inventava moda, colocando cerveja para fixar os cachos, os rabos de cavalo e coques no alto da cabeça. Não tinha tempo ruim pra dona Maria do Carmo. Desemprego do meu pai? Falta de grana? Com essa agenda absurda, ela ainda costurava para a vizinhança para sustentar a casa e os nossos sonhos. Começou de novo quando saímos do ninho, quando voltamos. Quando passamos apertos de alma e de bolso. Quando o marido pensou ir para o andar de cima, mas os amigos do além e o pai de todos o mandaram de volta. Hoje, aos 80 anos e alguma coisa, minha mãe começa de novo todo dia. Nasce nas manhãs irradiando alegria, louca para testar o prato novo que aprendeu na televisão, a roupa que customizou, contar do bazar que participará, da criança que vai vestir. Ela só esquece de começar de verdade – e aí, recomeça sempre- a briga com a balança. Mas é tão linda a figura que minha mãe mostra ao mundo, esculpida com os excessos que a sua culinária impecável insistiu em destacar!

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