Por Sérgio Mendes
Quando entramos no carro para o teste, este também já era o início da aventura. Percebemos a obviedade que não caberíamos todos ali dentro, não comodamente. O espaço que naturalmente já seria apertado sem a caixa na traseira, ficou ainda menor com ela. Por sorte, a atmosfera lá dentro estava bem espessa com toda a comoção da despedida. E isso junto do pequeno bico de minha mãe, brigada com o meu pai, dava cabo de qualquer ameaça aos meus planos. À exceção da minha irmã mais nova, Zangada, permanecemos todos sem perceber a caixa ou se alguém percebeu, foi só um pouquinho!
Ao encostarmos no banco, os ombros pegavam-se de maneira tal que bastava pensar em mover o braço e o outro o levantava o seu. As cabeças das duas pobres criaturas do meio, Zangada e Meio-zangada, inclinadas. Enquanto Helenita e eu nos dois extremos até podíamos nos encostar, mas caber de verdade não cabia.
Conversando com a minha irmã do meio que agora tem ela própria dois filhos com pouco menos idade que tínhamos nós naquele tempo, chegamos a entender aproximadamente a quantidade de coisas que deveriam passar pela cabeça dos nossos pais cientes do tamanho da jornada que iniciavam com quatro crianças e um carro velho, sob os cuidados unicamente dos dois.
O bairro inteiro era de terra batida, e as primeiras ruas que venceríamos antes de chegar no asfalto eram as que mais conhecíamos em nossa curta existência. Da frente da casa de vovó, em linha reta passando pelo grupo escolar onde a minha mãe trabalhou, até a esquina da rua da minha tia, e depois pela frente da casa dela. Naquele ponto acenamos para os parentes que nos assistiam passar da varanda no segundo andar.
O carro seguia devagar, até porque mais rápido e não daria tempo de enxergarmos ninguém. Sacolejava suavemente como se estivesse dançando uma música do toca-fitas que não tínhamos.
Os parentes foram ficando ao fundo, e nós no banco detrás de ombros grudados e com os olhos vidrados na aventura. A mesma que devia fervilhar a cabeça dos meus pais, mas do nada, o quase silêncio foi interrompido por um estouro forte.
Pow !
Correu um frio pela minha espinha! O barulho foi feio mas o carro seguiu sua marcha lenta e nos embalava qual molejo de colchão como se não tivesse sido com ele.
Era o primeiro susto pra todos os demais, e o segundo pra mim, que de olhos vidrados, agora pareciam querer trincar.
Mais alguns metros e chegaríamos ao nosso primeiro obstáculo. A pista asfaltada da rodovia que cortava a cidade, e que era também a saída do bairro, ficava em desnível, e o carro teria que subi-la. Olhei pela primeira vez os rostos de todo mundo ali dentro e não percebi preocupação. O único parecia ser só eu mesmo.
Meu pai engatou a marcha mais forte e zaz! O carro subiu sem maiores dificuldades, mas não sem um outro estouro um pouco menor que o primeiro. Paramos logo em seguida.
Os olhos vidrados das meninas e os meus rachados um pouco mais pela segunda flatulência do pobre carro, se desmancharam qual musica de vitrola quando o disco diminui a rotação até silenciar por completo, mas a parada não foi por nada mais grave. Foi o desapontamento da minha mãe com o meu pai que se manifestou. Ela o fizera parar e desceu pra que trocássemos nós dois de lugar. Assumi o seu posto de co-piloto no banco da frente e ela foi para onde eu estava, o que apertou ainda mais as meninas.
Folgado como fiquei, me ative a um livro qualquer que me propus a ler. Costumava ser fiel aos meus propósitos, lembram? Mas a leitura não rendia com tanta coisa acontecendo. Todo aquele mato ao lado e não raro na própria rodovia…
Vezes só o barulho do motor, vezes alguma conversa, vezes um rebuliço da excitação de informar minha tia da cidade nova e vezes a minha leitura que teimava em não render. Prosseguimos nossa marcha e rodamos por mais de três horas ininterruptas, absolutamente excitantes, e portanto as atenções foram desviadas dos incômodos que sentíamos.
Na hora do primeiro almoço na estrada, ainda pudemos saborear a comidinha de vovó. Ela nos entregou embalada em uma lata para comermos ali mesmo no carro. Paramos num posto de beira de estrada para comer e esticar as pernas com tão somente algumas horas de toada a bordo do corcel amarelo. Cada um se deliciou com o cheiro e sabor da farofa e do arroz de viagem.
Enchemos o buxo e lambemos os beiços! Ainda tivemos tempo de nos lavarmos enquanto meu pai abastecia o carro e trocava alguma conversa com um dos frentistas. Parecia que o bico da minha mãe tinha diminuído um pouco, e ela até ensaiava alguns comentários com as meninas e comigo.
Pressenti que o meu posto folgado de co-piloto igualmente estava a beira de acabar, mas ele ainda durou por toda aquela tarde.
À noite paramos para descansar conforme nossos planos e dormimos em uma pensão.
As horas correram, as cidades e os estados também. Os dias anteriores foram mais ou menos da mesma maneira, comigo de volta ao banco detrás e meus pais outra vez reconciliados.
Três deles depois e já corríamos por mais de 1500Km desde a partida e portanto a Bahía também já ficara para trás. Até alí o carro comportara-se bem, exceto se a velocidade ultrapassasse os 80Km. Era como se o pobre nos alertasse que todo o conjunto daquela obra era instável demais. Ele entrava em um frenesi de tremores, nos chacoalhando a todos. E tão somente com isso, apesar de estendermos os dias e as curvas obrigadas nos nossos corpos, prosseguíamos nos aproximando de casa.
Foi só em algum lugar de Goiás que a minha irmã ‘Zangada’, irritada pelos dias de pescoço e ombros para frente, decidiu soltar a sua fúria sobre mim e sobre aquela caixa! Instantaneamente meu livro escorregou das minhas mãos e as pestanas derriçaram-se sobre os meus olhos no sono mais profundo e mais providencial que já tivera na vida.
Ela berrava o que todo mundo queria dizer de tanto incomodo e aperto. Queria parar, queria parar!
Ninguém, exceto a minha mãe, costumava dar muita bola para os reclamos dela naquele tom já muito comuns a pessoa zangada como ela. Mas desta vez a pobre estava acompanhada inclusive por D. Fátima que provara por alguns quilômetros daquela sensação de ter a cabeça pendurada para frente como peça de alcatra. Iniciou-se um motim a bordo do muar! Todos falavam ao mesmo tempo, exceto eu que fingia dormir, farsante como só. De nada adiantou.
Então esta era a hora da vírgula. A hora da vírgula! Eu pensei fingindo mesmo que sonhava, com balãozinho de nuvem e tudo.
Aline reclamava a dor nas costas. Helenita uma outra dor qualquer, minha mãe me falava apontando pra minha caixinha de nada, coitada, e o meu pai fechava o senho de maneira que eu interpretei ficaríamos a caixa e eu na estrada.
A hora da virgula, do entrevero, do acerto de contas, chegara.
Eu desesperado, mas de olhos semi-cerrados só apontava pro meu balãozinho de nuvem sinalizando que dormia…
Mas óbvio, junto com balão, ninguém acreditava!
Era tanto o barulho que o pobre carro não conseguiu se fazer ouvido no seu lamento.
Tremeu, tremeu e estrebuchou!
Neste instante, o do estrebucho, ouviu-se o único som mais forte que aquela humanidade ouvira desde antes de entrarmos no asfalto.
Bum!
E uma enorme língua de faíscas de metal cinzelando se viu no nosso rastro.
Quando olhei pra trás o tempo parou tudo dentro do carro e só voltou em quadros. Um por um.
Fez-se um silêncio ensurdecedor. Ninguém entendeu muito bem o que estava acontecendo. Muito menos eu, que até pouco antes daquele instante, sustentava a minha farsa.
Quando o tempo voltou a correr, o carro já estava parado por completo, e então ouvimos a minha mãe:
Todos estão bem? Perguntou assustada.
Sim, sim, sim, sim. E eu, com o meu balão de nuvens nas mãos disse por último, sim.
Estava acabada a farsa. A parte detrás do carro inclinara-se no asfalto e víamos os meus pais de baixo para cima num angulo esquisito. Mas estávamos de verdade todos bem.
O balão com meu sonho de gibi escorregou das minhas mãos e murchou no assoalho, por sobre o meu livro, bem no vão dos meus pés.
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