De nada

 


Por Maria Lucia Solla

 

 

Comecei a escrever sobre saquinho de supermercado, mas acabei dando num beco escuro, que atiçava as borboletas no meu estômago, e parei. Fui pensar e fazer coisas que também estavam na lista de urgência, e que me davam prazer. Criei, cozinhei, fotografei, dei uma olhada na logística dos meus planos, e recomecei a escrever no dia seguinte.

 

Estação de chuvas, você sabe, fica difícil desviar o pensamento. Para onde você olha está cinza, nebuloso, ameaçador, ou despejando água e soprando ventania que dá medo. A gente vê, lê e ouve sobre muita gente desabrigada e dolorida; gente que tenta não perder o pouco que acredita ter, enquanto a Natureza tenta reaver o que é seu de origem. Dizer o quê? Repetir a ladainha? Que a malha de canos que mora sob o solo já vem pipocando há muito tempo, mas outras prioridades mais cintilantes tomam o lugar da necessidade básica? Somos um país de terceiro mundo e novo rico. Fazemos plástica e implante de silicone, mas não cuidamos do que não é visível. Casaco de veludo e bunda de fora, como sabiamente diz a minha sogra, a dona Ruth.

 

Mas sabe como é o pensamento, você pensa que já espantou, e vem ele de volta querendo ser pensado. Me recusando a voltar à história do saquinho plástico, peguei um atalho e me dei conta de que no passado, nem tão passado assim, já que eu consigo me lembrar, a gente levava duas cesta de vime para as compras e vinha faceira da feira, do fruteiro, ou do armazém, com as cestas cheias e coloridas. Duas cestas porque temos dois braços. A gente comprava o que podia carregar.

 

Mas falar sobre o quê? Ligo a tevê e fico sabendo de uma pesquisa que diz que nós jogamos fora metade dos alimentos, in natura, processados e muitos ainda enraizados. Dizem que muitas vezes nem vale a pena colher o que não tem boa aparência porque o público alvo só compra o produto bonito. Vai fora um tanto tão escandaloso que poderia alimentar toda a população que passa fome no mundo.

 

Então pensei: vou falar sobre nada. Só que acabei me lembrando de um padre de Hamburgo Velho, no Rio Grande do Sul, perto de Porto Alegre, que eu não cheguei a conhecer, mas sobre o qual sempre falavam os meus sogros. Contavam que ele tinha um forte sotaque alemão e que nos enterros, quando jogava a terra sobre o caixão, dizia pô, pô, têra, têra, falando de morte e vida; da terra de onde vem o nosso corpo, e que nos alimenta e abriga, e da nossa volta a ela, literalmente em pó, para alimentá-la em retribuição. Eu acredito.

 

Acredito no ciclo da vida. Acredito que assim na terra como no céu, que assim fora como dentro. É só prestar atenção. Ou a gente presta atenção, ou não… e até a semana que vem.

 

Em tempo: Alguém sabe me explicar por que mulato virou pardo?

 


Maria Lucia Solla é professora de idiomas, terapeuta, e realiza oficinas de Desenvolvimento do Pensamento Criativo e de Arte e Criação. Aos domingos escreve no Blog do Mílton Jung

5 comentários sobre “De nada

  1. Oi amiga, como sempre, mais um texto” tudo a ver”. Mas acho que o casaco de veludo e bunda de fora, não são uma exclusividade nacional, na minha opinião este “modus vivendi”é
    culpa do bicho-homem, independente de nacionalidade, credo ou cor.
    Bjs gaúchos. Maryur

  2. Oi, Maria Lúcia, como eu gosto do seu texto solto. Também vi a reportagem sobre o desperdício de comida, que me despertou um sentimento que me desorganiza muito por dentro, o de impotência. De não ver saída. Como convencer as pessoas a comprarem frutas menos bonitas, por exemplo? E o que dizer dos vegetais que sequer serão colhidos pois não vão agradar? Eu queria mesmo era ter uma grande ideia, mas não me vem nada. Só me resta dizer que o mulato continua existindo, e assim como o cafuzo, e outros misturados, são tipos de pardo. Boa semana pra você.

  3. Maryur,

    exclusividade eu não diria, mas temos uma tendência a um dos primeiros lugares, pela minha experiência, e do meu ponto de vista.

    É por isso que somos da mesma "turma" há muitos, muitos anos. Nos damos espaço, cada uma com a sua visão, como diz o teu texto de ontem no meu blog e como disse a tua irmã, no comentário dela. Sabemos que quanto mais a gente aperta o outro na nossa fôrma (Nova ortografia pra cucuia…), mais rapidamente ele escapa. Nós nos damos espaço. Respeitamos limites. E mesmo assim, a 1200 quilómetros de distância, você pressentiu que eu não estava bem, e salvou a minha vida.

    Amo você

    Beijo e boa semana

  4. Elizabeth, você disse tudo.

    Impotência é o sentimento que eu também tenho numa situação como essa, além do quê, deve ter gente ganhando com isso.

    Agora, quer dizer que mulato e mulata, só vão existir na música, na poesia, e no dicionário, como com cordialidade, respeito e consideração?

    Estamos perdidos?

    Não, não estamos não. É assim mesmo. Uns sabem que o bem-estar geral é que gera o bem-estar individual, e outros fingem que não sabem.

    Faz o que você pode, e me dá a sensação de que você já faz, e assim vai a vida.

    Obrigada por estar aqui conosco.

    Beijo e boa semana,

  5. Querida Maria Lucia, existir na poesia e na música não é pouca coisa não. Além do quê os mulatos e mulatas estão aí bombando e jorrando vitalidade pra todo lado. Piores são os pardos, que só existem nos formulários, sem qualquer legitimidade. Bjo goiano.

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