De herança

 

Por Maria Lucia Solla

 

 

Tenho pensado muito nos meus ancestrais, já há algum tempo, e tenho resgatado das caixas de pertences que conseguem me acompanhar no meu caminho cigano, os que vieram antes e desbravaram um país estrangeiro com língua muito diferente do português que alguns deles desconheciam, mesmo sendo vizinhos de fronteira. Para mencionar uma das barreiras a serem transpostas. Nós diferimos uns dos outros no pensar, no dizer e no sentir, porque carregamos os viveres dos que nos antecederam nas dependências da vida.

 

Mas voltando aos meus ancestrais, começando pelos bisavós que trouxeram pela mão bocas pequenas expressando fome, bagagem mínima e carteira leve, viveram sem telefone, nem geladeira, e agora você toma a frente e faz a tua lista mental.

 

Se deixaram os seus países, zona de conforto, é porque a coisa estava feia do lado de lá. Afastar-se da família era a última opção na vida. Casava-se, e construíam-se tantas casinhas quantas necessárias para abrigar filhos, noras, genros, netos, sobrinhos e toda a árvore, de preferência.

 

Essa gente simples, que já era ou foi tornada simples pela cadência da vida, não deixou na Europa nem a dignidade, nem a honradez. Pode ter deixado para trás cristais e prataria, mas trouxe o vício de agregar. Pela falta do vil metal, e pela necessidade do apoio uns aos outros, agrupou-se em cortiços, onde todos eram amigos, parentes ou afins.

 

Ajudavam uns aos outros, dividiam tarefas do agrupamento e, claro, como toda fruta tem caroço, havia falta de privacidade.

 

Aliás, acredito que privacidade é uma palavra que foi resgatada do ostracismo dos dicionários, nestes nossos novos tempos. Antes, na casa dos meus ancestrais, privacidade era solidão.

 

Meu pai, criado por uma avó portuguesa, filho de mãe portuguesa e pai espanhol de Murcia, aprendeu o que era trabalhar desde os quatorze anos. Foi premiado na maioria dos finais de ano da empresa, até a celebração dos seus quase sessenta anos de firma. Ele se orgulhava dizendo que só tinha um carimbo na carteira de trabalho.

 

Eu nasci em berço de ouro e tive a benção de ter sido criada nos seus moldes, uma vez que até os meus cinco ou seis anos, morei na mesma casa, com minha bisavó, meus avós paternos, meu tio Neno e minha tia Zoraide, irmãos do meu pai. Minha mãe, filha de italianos e uma entre onze irmãos, também foi responsável pela formação do meu alicerce. Quando eu tinha uns seis anos, meus pais já tinham evoluído tanto as suas consciências, que eu e os meus estudos éramos prioridade no orçamento de casa, e éramos orientados pela sabedoria e competência da Cirley Motta, a minha prima Ley. Construíram casa e se mudaram dela para que eu estivesse sempre perto da escola. Me apoiaram a aprender línguas que eles nem conheciam, me alimentaram seguindo as regras de saúde que trouxeram em suas bagagens e conviveram com uma filha que era tão diferente do que eles tinham sido.

 

Gratidão!

 

Maria Lucia Solla é professora de idiomas, terapeuta, e realiza oficinas de Desenvolvimento do Pensamento Criativo e de Arte e Criação. Aos domingos escreve no Blog do Mílton Jung

8 comentários sobre “De herança

  1. AMIGA MARIA LUCIA,
    BOM DIA.
    FELIZ AQUELE QUE DESCENDE IMIGRANTES DE TODO O MUNDO E QUE VIERAM AO NOSSO QUERIDO BRASIL,TRABALHAR,ENSINAR,AMAR UNIR.
    FELIZ A SUA OBSERVAÇÃO DE QUE TODOS SE AJUDAVAM,LEMBRO-ME DE MINHA AVÓ AJUDANDO AS MINHAS TIAS,IRMÃS DELA,DIVIDINDO,COMIDA,ROUPA.
    FICO MUITO TRISTE E AMARGURADO QUANDO VEJO O QUE ESTÃO FAZENDO NO BRASIL,ESQUECENDO E FALTANDO COM O RESPEITO DAQUELES QUE LARGARAM TUDO PARA VIVER EM UM NOVO PAÍS.
    ABRAÇOS
    FARININHA.

  2. Querida, foi como rever um filme muito semelhante ao meu, embora com etnias diferentes, o cerne das histórias se assemelham. Linda a foto e lembrei de mais de 30 anos atrás um Natal que passamos todos : Solla, Tedesco, Kroeff e Silber,
    lá nos jardins da Carlos Huber, como se fossemos uma só família.
    Saudade da boa, bjs prá ti e pro Luiz

  3. Prima querida, eu e minha mãe estamos emocionadas de ver esta foto antiga e com pessoas que nos são tão caras. Realmente gratidão é a palavra exata p/expressarmos nosso agradecimento por estes desbravadores que nos ajudaram p/que nos transformássemos nestas pessoas íntegras que somos hoje.
    Que Deus os ilumine e os abençoe agora e sempre!
    Bom carnaval, repleto de reflexões!
    Maga e Tia Ignês

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