Marina Zarvos
Ouvinte da CBN

“Caminho às cegas pelos corredores
do tempo e subo e desço seus degraus,
suas paredes toco e não me movo,
volto onde comecei”
(Otávio Paz)
‘Vai um chopps e dois pastel pra mesa seis! “
Assim virou folclore, na gramática dos bares e botecos, o jeito paulistano de lidar com singular e plural. Sim! O plural subtraído parece ser o usual. Adota-se o singular e ponto final.
Observo o vaivém dos garçons no movimentado e conhecido bar em Moema, ponto de encontro de quem busca um espaço para a tradicional “happy-hour” ou para turistas que desejam saborear tiras de picanha na chapa, acompanhadas de acepipes e do tilintar de copos e brindes.
Vez ou outra, rendo-me ao convite inebriante dos aromas e do alegre tumulto. Fiz isso dias atrás. Com apenas alguns passos, já estava acomodada em minha mesa preferida, na calçada. Como num passe de mágica ou pelo efeito do chope, senti-me como quem entrava no túnel do tempo.
Retornei ao mesmíssimo local, no fim dos anos de 1960. 69 para ser preciso. As pessoas festejavam no 25 de janeiro, 415 anos de São Paulo, que inaugurava a monumental Avenida 23 de Maio, com previsão do trajeto centro-aeroporto de Congonhas em apenas 15 minutos. Cenário de um tempo em que a algazarra das crianças subindo e descendo os degraus da escada, ou dos adolescentes conversando na calçada, e namoricos no portão ou bailinhos na garagem, eram alaridos da liberdade.
As ruas invadidas pelo asfalto que recém-chegara em nosso bairro, anunciavam uma era de desenvolvimento: o velho bonde sendo retirado da Avenida Ibirapuera, enquanto os sinos da igreja dobravam, talvez num lamento por sua morte. O Cine Jurucê, palco para grandes romances e beijos roubados, sendo desocupado, dava lugar a uma grande loja de bolsas e malas.
Passeio por diversas ruas do bairro: Anapurus, Jurema, Aicás. Lentamente me aproximo e revejo o conjunto de casas geminadas da Jamaris. A casa de minha infância era a de número 615. Entro pé ante pé, quero tocar as paredes da casa e não me movo, por instantes apenas, volto a ter 15 anos.
— Senhora! Senhora! Mais um “chopes”? pergunta o solícito garçom.
A magia se desfaz abruptamente. Atônita, constato que o conjunto de casas fora demolido, recentemente. Prenúncio de mais um megaempreendimento. E eu, esta senhora que já foi menina, moça, jovem senhora e agora avó, testemunhei muitas histórias de nossa cidade e do bairro de Moema.
Ao retornar para 2024 e para a casa em que brincava, hoje o bar do meu chope, compartilho uma preciosidade histórica do lugar: ali morava uma grande amiga, e sua mãe só não permitia que brincássemos no corredor lateral da casa, pois levava ao ateliê do pai. Lá era o local em que ele pintava e não deveria ser incomodado. Não podíamos caminhar nem às cegas até lá. Isso sempre me intrigava.
Só anos depois, o mistério me foi revelado: ali, onde hoje é o famoso bar, morava o pintor Nonê de Andrade. Sim! Minha amiga era neta de Oswald de Andrade, filha de Nonê. Que privilégio ter frequentado aquela casa! Histórica, incrustada em Moema e desconhecida da maioria, porém hoje muito popular como o melhor chope do bairro, na esquina da Anapurus com a Jurema.
Volto de minha viagem pelas memórias, sorvo um gole do gelado chope tento projetar um futuro no qual o plural e o singular, na gramática da vida, sejam empregados corretamente e convivam harmoniosamente. Um futuro que abrace o progresso sem deixar de cultivar a memória do passado.
Tim-tim! Um brinde aos que nos antecederam!
Ouça o Conte Sua História de São Paulo
Marina Zarvos é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Juliano Fonseca. Seja você também protagonista da nossa cidade: escreva para contesuahistoria@cbn.com.br. Para ouvir outras histórias, visite o meu blog miltonjung.com.br ou ouça o podcast do Conte Sua História de São Paulo.