Vinicius Moura
Ouvinte da CBN

Quando São Paulo fazia 397 anos, em 1951, Adoniran Barbosa escrevia Saudosa Maloca. Muito tempo depois, foi marcante, ao comemorar meus 20 anos, arriscar-me a cantá-la num karaokê da Liberdade. Era 1985, e Sampa estava com 431 anos. Eu segurava o microfone com a responsabilidade que uma música clássica pede. Mas não imaginava do que falava a música. Curiosamente, quando a “terra da garoa” fez 460 anos, foi que o assunto veio à pauta: a maloca, a saudosa maloca, estava sendo demolida.
Não moro em uma cidade que olha para trás. Lá em 1951, éramos 2,6 milhões de pessoas. Os homens usavam chapéus e os tiravam para acenar em respeito ao funeral que passava. Quem era? O que empreendeu? Que missão teria cumprido neste seu tempo? É possível que se perguntassem em silêncio, enquanto o gesto gentil ainda se sustentava no ar. É o que ainda fazemos — não o gesto, claro, mas as perguntas. Só que nossa cidade não tem vocação para lamentar o que passou.
Seu Antenor nasceu quando São Paulo completava 391 anos — 1945. Sua casa é remanescente de uma incorporadora que lamenta não ter conseguido fechar negócio, e a casa antiga se sustenta espremida entre os muros altos de uma moderna torre de studios. Mas saiba que o Sr. Antenor não vende, contrariando a urgência dos filhos. Este aposentado com problemas de mobilidade crê não precisar de mais nada. Mantém o saudosismo da velha vila e a lembrança dos vizinhos que se foram. Era isso que eu ouvia dele em 2019. Sampa é uma cidade de muitas histórias.
Contudo, sei que, mais do que tudo, lá no fundo, o Sr. Antenor — e tantos outros — mantinha o desconforto de ter vindo do interior de Minas e de ter trabalhado na construção civil, lá nos anos 60, para essa mesma construtora que agora quer seu pequeno pedaço de chão. E foi justamente o rendimento deste trabalho que lhe permitiu comprar seu pequeno lote. Que ironia: hoje, os netos do seu antigo empregador querem que sua casa se transforme numa quadra de beach tennis e agregue valor. São Paulo é uma cidade que olha para cima.
Em 2025, São Paulo fez 471 anos, e eu acabo de me mudar para o vigésimo terceiro andar de um desses prédios que esmagou algumas das antigas casinhas. Me enche de orgulho enxergar tão, tão distante através da grande vidraça. É festa aos olhos observar o céu alaranjado no fim de tarde, contrastando com o fundo escuro das árvores no Ibirapuera. Quantos podem pagar por essa vista? A terra da garoa cobra caro.
Por mais incômodo que pareça, Adoniran falava disso: vamos colocar quem não pode pagar num lugar um pouco mais afastado. Foi esse o motivo da demolição da Saudosa Maloca — e é o motivo pelo qual ela continua sendo demolida até hoje. São Paulo sempre olha para o retorno do investimento futuro.
Quando São Paulo fez 420 anos, fui com meu pai conhecer o metrô, em sua inauguração. Era a promessa sendo cumprida para quem tivesse ido morar longe: o metrô traria com rapidez. São Paulo sempre tem pressa. São Paulo não é unanimidade: é feia para uns — para quem está nas periferias, principalmente. E é bonita para outros — para quem está nos bairros bacanas, principalmente. É a cidade que permite executar novos sonhos ao mesmo tempo em que asfalta suas antigas histórias. São Paulo não tem tempo a perder.
Tenho certeza de que, assim como eu, o Sr. João Rubinato amava de paixão esta cidade de muitas tradições e enormes contradições. Quem é João Rubinato? Sabe não? É o nome de batismo de Adoniran. Já o Sr. Antenor era Antenor mesmo, um vizinho que morreu de Covid. Seu imóvel é hoje uma quadra de beach tennis. Será que os filhos do Sr. Antenor estão mais felizes?
Ouça o Conte Sua História de São Paulo
Vinicius Moura é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é de Cláudio Antonio.
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