Tolerância e humildade, por Flávio Gikovate em 14 tuítes

 

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Flávio Gikovate morreu aos 73 anos, nessa quinta-feira. Esteve com a gente na CBN até bem pouco tempo, enquanto a doença permitiu. Fazia um programa inovador dentro de uma emissora que se dedica a transmitir notícias: tornava público seu divã e, a partir dele, atendia a centenas de solicitações de ouvintes, que abriam coração e alma para compartilhar suas angustias.

 

Mesmo internado, no Hospital Albert Einstein, seu conhecimento ainda encontrava espaço para chegar até o público que o admirava, através de seu perfil no Twitter. Nas últimas horas, escreveu em 14 tuítes sobre a intolerância, e eu tomo a liberdade de dividir com você os pensamentos do médico, psiquiatra e colega de rádio CBN.

 

Uma boa definição de pessoa humilde consiste na real disposição de ouvir e de aprender sempre, inclusive com aqueles que sabem menos que ela

 

 

Tolerantes são os que conseguem se irritar muito pouco com a parte desagradável presente em suas atividades e nas pessoas com quem convivem.

 

Ser tolerante é enorme vantagem, pois lidar bem com quem não nos agrada facilita a vida social e o encontro daqueles que consideramos legais

 

A tolerância tem a ver com a capacidade de respeitar diferenças de pontos de vista e de estilo de vida. Não ser pessoa crítica ajuda muito.

 

Por vezes tem a ver com a humildade: não se achar pessoa tão especial cria condições favoráveis para um convívio diversificado.

 

Muitos se fazem de tolerantes apenas com o intuito de seduzir e cativar seus interlocutores. São falsos e movidos por interesses duvidosos.

 

Pessoas intolerantes sempre passam uma imagem de arrogância e superioridade, de quem se impacienta e se aborrece com as “tolices” que ouve.

 

Não é raro que os mais intolerantes se considerem (e alguns sejam) mais inteligentes e cultos que seus colegas. O sucesso não passa por aí!

 

Uma pessoa humilde de verdade tem ciência de que seu saber é limitado e que a arrogância e altivez intelectual corresponde a um grave engano.

 

Quem é intelectualmente arrogante se acha portador de um saber inquestionável: ao ser contestado, não ouve o interlocutor com real respeito.

 

As pessoas que acham que sabem muito se afastam da “porosidade” psíquica: seus diálogos visam apenas fazer prevalecer seus pontos de vista.

 

A pessoa arrogante não se interessa pelo que o outro diz: ao ouvi-lo, só está se municiando de argumentos para desqualificar seu raciocínio.

 

A humildade corresponde a um estado de alma em que predomina o respeito pelas outras pessoas: pelo modo como vivem, pensam e se comportam.

 

Uma boa definição de pessoa humilde consiste na real disposição de ouvir e de aprender sempre, inclusive com aqueles que sabem menos que ela.

Deslizando na arrogância

 

Esqui

Esquiar sempre foi considerado tarefa impossível para mim. Imaginava minha falta de habilidade e a neve lisa conspirando contra meu orgulho. Exceção feita ao surfe, que ao menos servia para tomar banho após a rebentação, os esportes radicais nunca foram meu forte. Lá em casa – entenda-se por Porto Alegre – quem era adepto às práticas mais arriscadas sempre foi o caçula, meu irmão Christian. Desde dirigir Kombi até andar de skate. Causava-me inveja vê-lo sair com os amigos para o Parque Marinha do Brasil, onde havia uma pista daquelas que mais se parecem com uma gigantesca e tortuosa piscina de cimento. Minha preferência era pelos esportes com bola, o futebol e o basquete, especialmente – apesar de que encarar alguns grandalhões no garrafão bem que poderia ser caracterizado como algo bastante radical.

Dito isso, fica claro que jamais pensei ser capaz de ficar em pé sobre aqueles dois pedaços de prancha usados para deslizar na neve, quanto mais deslizar na neve com os dois pedaços de prancha. Por isso, a viagem a uma estação de esqui, no Chile, estava sendo encarada como um desafio. Afinal, se você não esquia o que fazer por lá? Comer, rezar e amar. E beber, claro.

No primeiro dia de aula, a companhia dos dois filhos tornou a tarefa ainda mais constrangedora. Enquanto eles já sinalizavam habilidade natural, eu mais parecia um bebê cambaleante em seus primeiros passos. Pior, o olhar deles não era de solidariedade. Era de pena. Não abandonei meu propósito porque tirar as botas de esqui seria ainda mais complicado. Não sei se você já teve oportunidade de calçá-las, se não, pense que são ideais para presos em liberdade condicional. Impossível ir muito longe com aquilo nos pés.

Algumas horas depois, unhas do pé ardendo e uma comichão subindo as pernas comecei a me entusiasmar, apesar da insistência do treinador em franzir a testa e sacudir a cabeça enquanto me assistia. Aos berros de “cunha, paralelos, cunha, paralelos” ele tentava me convencer de que era possível fazer certo. Estar em pé e descer as primeiras rampas sem despencar para mim era suficientemente certo.

Foram oito horas de aula divididas em três dias. O suficiente para superar parte de meus medos, andar para um lado e outro da pista e ter a ideia de que esquiar era possível. Nem mesmo calçar as botas era mais problema, apesar da unha do pé dar sinais de que a situação ficaria preta, literalmente. Convidado por amigos aceitei ir mais alto, usar uma pista um pouco mais desafiadora para minha (in)experiência. Foi incrível a sensação proporcionada pelo domínio do equipamento, o controle da velocidade – “cunha, cunha” -, a possibilidade de mudar de direção conforme a posição das pernas e meu desejo. E de repente: um tombo espetacular deixa meu braço fora de seu lugar de origem e com uma dor que só foi maior no orgulho perdido.

Poucos dias de esqui são suficientes apenas para você aprender que a prepotência jamais será perdoada. Na primeira ilusão de que você domina alguma habilidade, a realidade o desmente. O tombo é inevitável, a dúvida é a dimensão dele. Quanto maior a soberba, maior o prejuízo. O que, convenhamos, não é preciso arriscar-se na montanha de neve para descobrir. Basta viver.