Por Alceu Sebastião Costa
Ouvinte da CBN
Após a noite bem dormida e o banho privilegiado, entrego-me à rotina costumeira das manhãs. Ingeridos os remédios do tratamento do Mal de Parkinson, abstenho-me do café com pão e manteiga, ao menos por ora. Hoje, não irei ao escritório. Portanto, oferecerei minha companhia a Elisabeth, durante o seu desjejum. Ela não é madrugadora como eu. Aliás, nem o sono nem o café são as minhas prioridades. Estas o são, sim, meu recolhimento solitário, compulsando meditativo algum escrito, vezes de minha própria lavra, bem como criando versos, como saudável terapia.
Neste momento, tenho nas mãos um pedaço de papel, que ontem, à noite, desenterrei literalmente do fundo do baú. Melhor, do fundo do “malão”. Aquele mesmo “malão”, uma bolsa de couro de porte avantajado, que eu usava nos meus idos acadêmicos como simulação de aluno aplicado, transportando pilhas de livros. Hoje, o velho “malão” companheiro tem serventia apenas para a guarda de documentos de uso esporádico ou emergencial. E foi daí que resgatei o tal pedaço de papel, metade da folha de agenda do dia 20 de dezembro de 1988.
Mas para que serve um simples pedaço de papel guardado por anos a fio? Certamente, para a faxineira, que acaba de chegar, mais um traste para o lixo. Analfabeta, mesmo que soubesse ler, jamais alcançaria a profundidade do texto nele manuscrito por mim, com a finalidade de levar um pouco de conforto a um grande amigo.
Antes de prosseguir, eis a transcrição:
“Se o lume é de boa têmpera, suporta a fúria da procela qual simples roçar da mais suave brisa e sua chama jamais se apaga.”
Afasto uma lágrima teimosa e prossigo nos meus devaneios. No rodapé, uma nota telegráfica:
“P/MP/cartão de Natal nesta data.”
Traduzindo: este texto foi a minha mensagem no cartão de Natal para Milton Pagliaro, em 20 de dezembro de 1988
Realmente, posto que não somos eternos, o meu amigo calabrês manteve a chama da esperança acesa por um longuíssimo período, desafiando a morte até o derradeiro instante, tomado pela metástase incontrolável.
Não fosse a sua vida pautada na retidão de conduta, principalmente no lado profissional, e na postura regrada nos princípios da disciplina, diria que os mais de dez anos de luta contra o câncer seriam o bastante para fazer dele uma pessoa admirável.
Com frequência, ouvia suas referências à inspiração de nossas palavras para a elevação do seu ânimo diante da briga tão desigual. Mais que a lisonja só a inspiração Divina que fez de nós o Seu instrumento.
Circunstancialmente, esse pedaço de papel retornou às minhas mãos, aflorando as boas lembranças do calabrês. Curioso é que, concomitantemente, encontrei também a cópia de uma crônica de minha autoria publicada no jornal “A Cidade”, de São Carlos, em 11 de abril de 1963, quando cursava o 2º ano Colegial do Seminário. Espantoso tratar-se de um escrito com o título “Lembra-te de mim quando chegares ao teu reino.” Noto que ambos os textos em referência focalizam a questão do sofrimento físico. Obviamente, sem comparativos, mas um e outro convergem para a simbologia do ritual de passagem desta para a outra vida, cuja expectativa por si só é o alimento para afugentar o desespero.
Sei que Deus nos dando bons guias aumenta muito a nossa carga de responsabilidades e de provações.
Que os agraciados com o Reino Celestial não nos faltem!
SAÚDE, AMADO AMIGO CALABRÊS!
(Obrigado, Sampa, pelas amizades, que só me fizeram crescer)
Alceu Sebastião Costa é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Escreva seu texto para contesuahistoria@cbn.com.br