Conte Sua História de São Paulo: os inovadores ‘Gilda’, cidadãos paulistanos dos trilhos

Por Rubens Cano

Ouvinte da CBN

Foto do bonde Gilda reproduzida do site São Paulo Antiga

No Conte Sua História de São Paulo, o ouvinte da CBN Rubens Cano de Medeiros destaca a cidade inovadora desde os tempos dos bondes:

Nenhum bonde, do primeiro a rolar até o último agonizante, foi tão bonito, confortável e moderno quanto os setenta e cinco Huffliner Cars, vindos da Broadway nova-iorquina. em 1947, para uma incipiente CMTC. E que haveriam de tornar-se cidadãos paulistanos dos trilhos por vinte anos de árduo trabalho.

Em nossa pauliceia, havia quem passasse a referi-los como Centex – do inglês Central Exit, pela portal central de saída. Outra alcunha: “Gilda”. Uma homenagem à beleza da personagem de Rita Hayworth, sucesso do cinema da época. Moleque, ouvia chamarem de “GiRda”, com erre. Para mim, era o “bonde Avenida Angélica”, da linha 36. Lembro de seus assentos de elegante palhinha trançada e dispostos como os de ônibus, de dois lugares.

Nos trilhos da internet, remanescem imagens das décadas de 1950 e 1960, nos arredores do Paiçandu, a Broadway paulistana. Largas avenidas, carros em profusão, multidões de pessoas, feérica iluminação e, sobretudo, cinemas.

Diz a lenda que um Gilda estava justamente a passar onde ocorria aquela “cena de sangue num bar d’Avenida São João”. E Paulo Vanzolini, sentado juntinho à janela, teria visto tudo. Tudinho.

Rita Hayworth, a diva que inspirou o apelido do bonde, soube do episódio depois, em meio a jornais paulistanos traduzidos na banca da Ipiranga. E talvez, como dizem, tenha descido do “Gilda” discretamente no cine Metro, para ver a si mesma na tela grande.

“Gilda, a diva… que virou bonde.”

Ouça o Conte Sua História de São Paulo

Rubens Cano de Medeiros é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Escreva seu texto e envie para contesuahistoria@cbn.com.br. Para ouvir outros capítulos da nossa cidade, visite meu blog miltonjung.com.br ou o podcast do Conte Sua História de São Paulo.

((os textos originais, enviados pelos ouvintes, são adaptados para leitura no rádio sem que se perca a essência da história))

Conte Sua História de São Paulo: escolas de datilografia e bondes de teto de linóleo, eu vi

Rubens Cano de Medeiros

Ouvinte CBN

Foto: Mílton Jung

Por volta de 1960. Tenho treze anos. Mas não lembro se São Paulo já dispunha de supermercados – ao menos o pioneiro Peg-Pag, na Vila Mariana. Perto do Cine Phenix. Não faltavam mercearias, empórios ou quitandas, onde – tal qual em padarias, bares e botecos – uma plaquinha alertava. “FIADO? Quando o Corinthians for campeão”. Durou até 1977, sabemos. Osvaldo Brandão tirou as plaquinhas, das paredes.

Num incerto dia – quase noitinha, lembro – subi a escada de cimento e granilito do sobradão, ainda hoje em pé. Dobrando a esquina toda, Domingos de Morais com Rodrigues Alves, grandão! À frente do então lindo Largo Dona Ana Rosa, que mantinha resquícios, ainda, de footing… Ali, um entroncamento de trilhos e fios. Dos bondes; uns iam até São Judas; outros, até Santo Amaro. Mais um: Vila Clementino.

Então, eis-me no amplo salão de grandes janelas, onde ouvíamos o “tec-tetec”, típico, dos teclados da Escola de Datilografia Rodrigues Alves. Quando, inédita vez, meus olhos e minhas mãos acercaram-se pertinho de uma máquina de escrever – se lembro, hein! Uma Olivetti, meio esverdeada.

Aluno do curso, eu me sentava rente à janela. Donde podia ver – não antes visto – os bondes, de cima, que passavam. Algo me intrigava. Do chão, mal se notava. Era um revestimento escuro que recobria o bonde, exteriormente; todo o “teto” que suportava a alavanca de contato. Que seria “aquilo”? Perguntava-me, a mim. Alguém explicou. Era linóleo. Imensa lona que impermeabilizava o teto de madeira, do bonde, ante a intempérie. Igual aos tetos dos carros de passageiros da Santos-a-Jundiaí. Que podíamos ver na Luz, das passarelas sobre as plataformas. Jornais antigos mostram que ônibus paulistanos, de até os anos 40, também traziam revestimento de linóleo – um charme que carrocerias metálicas dispensaram, obviamente.

Todos sabem. A datilografia, a das máquinas, morreu, não? De atestado emitido – ironicamente – pela própria causa-mortis: e-mail! Digitar, no computador, eu? Não morro de amores. Sempre adorei da-ti-lo…grafar! Tanto que – inviável, descabido e anacrônico, sei bem, mas…

Deparasse eu, num jornal, com um fantasmagórico anúncio… Exatamente assim: “PRECISA-SE DE DATILÓGRAFO”, ah… Precisa-se, é? Algum rascunho de escritorinho, de fundo de corredor? Uma portinha só, uma tosca escrivaninha – puxa vida! – com uma autêntica Remington-Rand? Caramba!

Ei! Eô, eô: me chama, que eu “vô”!

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Conte Sua História de São Paulo: Vila Mariana me sapecou um desgosto

Rubens Cano de Medeiros

Ouvinte da CBN

Photo by Burak The Weekender on Pexels.com

Primeiro, um descuido. Subsequente, teimosia. E, arrematando a
costura, dúplice insensibilidade e grosseria. Pronto! Eram os
ingredientes da minha “tragédia”.

Daquele bonde camarão, nem senti raiva. Já do motorneiro… E do
motorista – lembro bem – do Fordinho Prefect verde, ah…

Meu quinhão de sangue ibérico levou-me a rogar, aos dois, várias
pragas! Que, como sói acontecer com imprecações, são inúteis, inócuas:
até aumentaram minha raiva…

Descuido que, meia horinha mais, revelar-se-ia fatal. Tínhamo-nos
esquecido – eu e meus pais, à saída, de travar o portão com a tramela.
Sem que notássemos, a danadinha pôs-se a nos seguir. Na nossa
caminhada, subidona da José Antônio Coelho a fora.

Meu sobrenome Cano – foneticamente mal aportuguesado, do castelhano –
motivava que perguntassem: “Você é filho de ISPANHÓR?”. Não era. Mas
neto, sim.

E completavam. “Espanhol é tudo teimoso!”. Minha mãe, fila de
imigrantes da Andaluzia, a Isabel Cano, ela teimava e contrariava! Eu
até que muito insisti, no percurso.

“Manhê! Vâmo voltar, prender ela no quintal…”. Mas qual! Minha mãe
retrucava: “NÃÃÃO! Ela volta, sozinha!”. Voltou? Seguiu-nos até os
trilhos da Domingos de Morais. Até a placa branquinha, PARADA DE
BONDE, no alto, perto de fio trólei.

Lembro nítido! Era 25 de janeiro – íamos passear no Centro. Eu,
moleque, naquele feriado, algum ano da década de 50, não longe de ter
passado o IV Centenário.

Revejo, de memória. Então, o bonde camarão chegou. Um, da linha 101 –
Santo Amaro. De letreiro Praça João Mendes.

A porta da frente se nos abriu – subimos. Incontinenti, ela nos quis
seguir – até botou as patinhas no degrau de ferro, dobrável, da
própria porta. Mas…

O maldoso motorneiro, vendo, fechou abruptamente! Lançou o animalzinho
à frente do carro, cujo maldoso motorista sequer diminui a velocidade:
PLAFT! Doloso, matou! Minha mãe bradou: “Não olha!”. Eu? Horrorizado,
vi tudinho.

De fato, permitiam-se carros no contrafluxo de bondes; porém bastava
frear… Num átimo, aí fechei os olhos. As lágrimas que chorei ainda
gotejavam na triste volta… A cachorrinha jazia nos
paralelepípedos…

Naquele festivo 25 de janeiro, Vila Mariana me sapecou um desgosto.

À época, moleque, eu adorava folhear – ler, mesmo – a bela A Gazeta.
Cujas edições comemorativas nos 25 de janeiro traziam lindas
ilustrações e nitidíssimas grandes fotos em preto e branco – me
encantavam!

Sem exagero, eu lia inclusive… a página policial! Página que – hoje
suponho – bem poderia, no dia seguinte à tragédia, ter estampado uma
certa manchete…

“FERIADO MANCHADO DE SANGUE – BONDE E CARRO ASSASSINOS – POIS NEM
SEMPRE O HOMEM É O MELHOR AMIGO DO CÃO”.

No 25 de janeiro seguinte… Que bom! Outro cãozinho já tinha me vindo
– cicatrizar o coração… 

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Conte Sua História de São Paulo 470: minha Móoca tem o cheiro do cotonifício e o sabor do cannoli

Italo Cassoli Filho

Ouvinte da CBN

Fachada do Cotonifício Rodolfo Crespi. Foto de Daniellima89 Domínio público

Destacar um ponto especial de São Paulo não é tarefa fácil. Cada lugar, cada cantinho, cada nicho tem seus encantos próprios.

Se você for ao Brás, Liberdade ou Bela Vista terás a oportunidade de vivenciar emoções diferentes ainda hoje.

Mas o meu “cantinho” é a Mooca…ahhh como eu te amo!

E essa paixão vem dos idos de 1960 quando passava as férias na casa do tio Américo e da tia Ida.

O encanto era ainda maior porque eu vinha de Pirassununga, uma realidade totalmente diferente. Desembarcar na estação da Luz e embarcar no bonde rumo a rua Javari passando pela rua dos Trilhos já fazia aquele menino tremer na base. 

Quando o motorneiro parava próximo ao Cotonifício Rodolfo Crespi, uma industria têxtil, fundada em 1897, que ocupava uma enorme área a minha pulsação disparava. Até a fumaça e o odor que ela exalava, me encantavam.

E assistir aos treinos e jogos do Juventus? Que felicidade vibrar com meu Moleque Travesso, aquele cannoli de sabor incomparável. Dá água na boca.

Dez anos depois, eu iniciei minha carreira profissional como professor. 

Onde?  No Colégio MMDC na rua Cuiabá. Claro, na Mooca. Destino? Se foi ou não, eu pouco me importei, a minha felicidade era estar novamente no bairro que aprendi a amar.

O bonde fora substituído pelo ônibus, que partia da Praça Clovis Beviláqua, e ao mesmo tempo que fazia seu trajeto projetava em minha memória um filme que até hoje, quando tenho a oportunidade de lá retornar, ainda vejo: a fumaça, o cheiro do Cotonifício, o sabor do cannoli, as vitórias do Moleque Travesso.

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Conte Sua História de São Paulo 470: dos bondes lotados às cabras do Cambuci

Joao Coppa

Ouvinte da CBN

Reproduçao do site São Paulo Antiga do pesquisador Douglas Nascimento

Os bondes que usávamos estavam sempre cheios de pessoas andando em pé nos estribos. Quando a gente não tinha dinheiro, era preciso fugir dos cobradores, que andavam em volta do bondes mesmo quando em movimeto. A maioria dos cobradores de bondes era de portugueses .

Nasci em São Paulo, no bairro do Cambuci na Rua José Bento, lá pelos anos de 1930. A ruas do bairro eram de terra, onde se faziam fogueiras na época de São João. A festa durava a noite inteira e o melhor momento era o de pescar com uma varetinha as batatas doces no meio da fogueira. 

Tinham também pinhões assados e pipocas, além do gostoso quentão, só para maiores Os balões coloridos passeavam à vontade lá entre as estrelas, e, às vezes, caiam, por sorte, perto da gente. 

De vez em quando ouvia-se um tilintar de sinos e lá vinha uma porção de cabras, lideradas por um bode. Eram os vendedores de leite de cabra, que por uns trocados nos forneciam um copo de leite ainda quente, pura delícia! 

Nos fundos da vila de casa onde morávamos, passava uma valeta, onde, nos campos em redor, meu pai catava cogumelos, que minha mãe fritava. 

Todos os dias, no cair da tarde, enxames de pernilongos vinham atacar, e minha mãe costumava, acender jornais dentro de uma bacia, a luz atraía os insetos que morriam no calor. Ainda não havia inseticida. 

Fomos morar depois na rua do Paraíso, onde meu tio tinha uma loja de armarinhos, em que se vendia fazendas em peças, roupas, linhas e agulhas. Comecei a trabalhar nessa loja enquanto frequentava o curso primário no Grupo Escolar Rodrigues Alves, que ainda existe lá na  avenida Paulista. Eu fazia entregas da loja, alem de varrer, arrumar as mercadorias. As entregas me levavam longe, lá para o bairro da Aclimação. Para chegar até lá tinha de atravessar a mata que hoje é a avenida 23 de Maio. Pura aventura! No meio tinham bicas d’água sempre geladinha, frutinhas silvestres, moranguinhos e amoras, coquinhos e pitangas. 

Naquele tempo, o Carnaval era festejado na Paulista, e os carros enfeitados com os foliões vinham da Consolação e faziam a volta  na Praça Osvaldo Cruz, que só tinha uma única via, e alguns casarões no entorno.

Durante a Segunda Guerra, as padarias não tinham trigo para fazer o pão e de vez em quando produziam um pão preto e intragável. Gasolina também não tinha, e inventaram o carro a gasogênio, que funcionava a carvão e soltava uma fumaça preta e mal cheirosa. 

Chegando nos anos 1950, na Praça da Bandeira, onde é hoje o terminal de ônibus, havia o Circo de Alumínio, que era também um parque de diversões. Naquele tempo, o Palhaço Piolin e sua turma faziam as brincadeiras no seu próprio circo, na praça Marechal Deodoro. 

Já na esquina da São João com a Ipiranga, grande filas se faziam para entrar nos belos cinemas: o cine Art-Palácio, o Paisandu, o Ipiranga e o belo Cine Metro, onde os homens só entravam de gravata ao lado de mulheres bem chiques.

Todas essas coisas e lembranças boas que o tempo deixou para trás.

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Joao Coppa é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Daniel Mesquita. Seja você também uma personagem da nossa cidade. Venha participar da edição especial do Conte Sua História de São Paulo, em homenagem ao aniversário da cidade. Escreva seu texto agora e envie para contesuahistoria@cbn.com.br. Para ouvir outros capítulos visite o meu blog miltonjung.com.br ou ouça o podcast do Conte Sua História de São Paulo.

Conte Sua História de São Paulo: sonhava ser o motorista do “Papa Fila”

Ismael Medeiros

ismaelmedeitos@outlook.com

Nasci em 13 de julho de 1946, no Hospital Umberto Primo, o Matarazzo, próximo de onde meus pais moravam, na rua Herculano de Freitas, na Bela Vista. Aos dois anos mudamos para São Miguel Paulista, onde a economia girava em torno da Nitro Química, fábrica da Votorantim.  Meus avós maternos seguiram morando nos velhos sobrados da Nove de Julho, ao lado do túnel — o que nos levava a visitar frequentes ao Bexiga.

Sair dos limites da zona leste era uma saga. Pegávamos um ônibus até a Penha. Era o ônibus do Toninho, seu proprietário. Depois de passar pela curva da morte, na Ponte Rasa, desembarcávamos na praça Sete de Setembro para, em seguida, subirmos no bonde —  ou o Camarão,  de cor alaranjada, ou o aberto. Na Praça Clóvis Beviláqua, saltávamos de um bonde para outro, para chegar na rua Manoel Dutra, próximo a praça 14 Bis.

Nos bondes, havia propaganda de produtos no alto. Uma das que não esquece tinha um careca correndo atrás do macaquinho que lhe roubara o vidro da loção capilar: “vem cá Simão! Traga a minha loção”.

O ouvinte Ismael é o menino menor desta foto feita na Praça 14 Bis em 1948

Na praça 14 Bis tinha um jardim que seguia até o túnel, com espaços onde andava de bicicleta com o primo Joãozinho. Havia bancos de assentos para apreciar o movimento de carros, geralmente Ford e Chevrolet. Eu e ele apostávamos se passariam mais carros verdes ou pretos. Ainda por lá, ao lado do túnel, tinham dois chafarizes que davam uma vontade louca de mergulhar. 

Ainda lembro do retorno a São Miguel, no fim da tarde, início da noite, quando a cidade virava uma festa de luminosos, colorindo e encantando as pessoas. O meu preferido era o Elmo do Banco Auxiliar de São Paulo que eu avistava do ponto de ônibus, no parque Dom Pedro II – já era época em que os bondes começavam a ser substituídos. Do lançamento do ônibus ‘Papa Fila’,  uma espécie de carreta da CMTC, guardo a lembrança do motorista que ficava isolado no cavalo mecânico, enquanto os passageiros vinham na parte articulada de trás. 

Sonhava ser o motorista daquele ônibus. Fazia do contorno do assento meu voltante. Com a boca, imitava o ronco do motor. Trocava marchas imaginárias. E seguia conduzindo meus passageiros pela Rangel Pestana, Celso Garcia, Penha e de volta a São Miguel Paulista. 

Ismael Medeiros é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Escreva seu texto para contesuahistoria@cbn.com.br. E ouça outros capítulos da nossa cidade no meu blog miltonjung.com.br e no podcast do Conte Sua História de São Paulo.

Conte Sua História de São Paulo: minha primeira e única viagem de bonde, para entrar na história

Por Fátima M.R.F. Antunes

Ouvinte da CBN

 

 

No fim dos anos 1960, o prefeito Faria Lima começou a retirar os bondes de circulação. A desativação do bonde Fábrica, que fazia o trajeto Praça João Mendes e Sacomã, no Ipiranga, foi anunciada para janeiro de 1967. O nome Fábrica se referia à indústria que havia no início da linha, Estabelecimento Cerâmico Saccoman-Frèresa, onde trabalharam o vovô João e o tio José. 

 

Desde 1900, os bondes elétricos eram o meio de transporte popular na cidade. Grandes e pesados, correndo sobre trilhos e dependendo de fiação elétrica aérea, destoavam dos ágeis e maleáveis ônibus, que apareceram décadas depois. Naqueles anos 1960, os bondes estavam sendo substituídos por ônibus.  Ao longo da década, as linhas foram sendo suprimidas. A última viagem de um bonde passou pelas avenidas Ibirapuera, Vereador José Diniz e Adolfo Pinheiro até Santo Amaro — em 27 de março de 1968.

 

De nada serviriam os lamentos da população. A hora tinha chegando. E o bonde Fábrica, que rasgava o bairro do Ipiranga pela rua Silva Bueno, seria desativada. Tia Tereza, irmã caçula de minha mãe, assim como outros milhões de paulistanos, estava agitada com a mudança. Afinal, o famoso bonde Fábrica, presença constante nas boas e más ocasiões, sempre estivera ali, companheiro e solidário. 

 

A família de minha mãe morara no Ipiranga. Primeiro na Rua Lima e Silva; depois na das Juntas Provisórias. Tia Tereza tomava o bonde na Silva Bueno para ir às compras no centro e à infinidade de salas de cinema que havia nas avenidas São João e Ipiranga. No Fábrica, ela, mamãe e vovó visitavam os parentes no Pari, com baldeação na Praça João Mendes. No Fábrica, se ia ao médico; até o Sacomã, aos sábados e domingo, para o footing, ou o“vai e vem”: os rapazes ficavam parados nas calçadas, enquanto as moças caminhavam pra lá e pra cá, de olho num pretendente. 

 

Os velhos bondes atravancavam o trânsito. Retirá-los das ruas parecia uma medida drástica, mas diziam que era necessária para a melhoria da circulação urbana.

 

Tia Tereza sempre foi uma entusiasta do progresso e da renovação, mas lá no fundo, sabia que os bondes deixariam saudade. Em janeiro de 1967, ela decidiu:  

 

“Vou levar a Fatima para um paseio no Fábrica antes que ele pare de rodas. Essa menina nunca andou de bonde! Quando for moça, vai poder dizer que andou de bonde em São Paulo.

 

Na Vila das Mercês, zona Sul, onde morávamos, só havia ônibus — eram pintados de amarelo clarinho, com faixas vermelhas na parte inferior.  Tia Tereza planejou com detalhes a aventura. Ajudou-me a escolher um vestido bem bonito. Do portão de casa, na antiga Rua B  — hoje Rua Caloji — nos acenavam a avó Dolores e minha mãe, Rafaela, com meu irmão Vanderlei no colo, enquanto íamos para o ponto.  Junto com a gente, foi a prima Eliana, filha da Tia Tereza, que sequer tinha completado um ano.

 

Descemos do ônibus no Sacomã e logo pegamos o bonde no ponto inicial. Sentei num daqueles bancos compridos, que ficavam nas laterais —- eram de madeira envernizada, duros, que faziam a gente escorregar, quando o freio era acionado. Confesso que achei escuro o interior do bonde, desconfortável. 

 

Antes do bonde deixar a Silva Bueno, descemos, atravessamos a rua e tomamos o ônibus de volta pra casa.  Eu tinha apenas quatro anos e jamais esqueci desse passeio. Mais do que a lembrança do bonde, ficou o carinho de minha tia. Penso que tia Tereza era uma mulher de visão. Ela já sabia, lá em 1967, que 53 anos depois, minha única e última viagem de bonde seria um capítulo do Conte Sua História de São Paulo. 

 

Fatima Martin R. F. Antunes é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Escreva o seu texto e envie para o contesuahistoria@cbn.com.br. Ouça também em podcast.

Conte Sua História de São Paulo 465 anos: até o último bonde que passou em Santo Amaro

 

Por Rubens Cano de Medeiros
Ouvinte da CBN

rcm.rhda.sp@gmail.com

 

 

Eu, um anônimo passageiro

 

Entro no túnel do meu tempo. E retrocedo de uns 60 anos. Eis-me, então, moleque de dez! Quando minha mãe dizia que, eu, molequinho de colo, dedinho esticado apontando para um deles, na rua… dizia que a primeira palavra que balbuciei foi um substantivo que rolava pesadão nos trilhos, rangendo ferragens e madeira, soltando azuis faíscas da roldana contra o fio trólei; e embaixo, entre as rodas dos truques.

 

“Bon-de” —- foi o que disse.

 

Lembro, sim! Vinha um adulto e dizia. Ah, que os bondes, anterior à cê-eme-tê-cê, eles tinham sido da Light: –- “Você sabia, menino?”. Eu? Sabia… que da Light –- meu pai era lighteano do Cambuci – eram postes e lâmpadas. Postes de ferro, de cimento e uns remanescentes de toras de eucalipto. Lâmpadas de filamento, e que acendiam em série, notava-se fácil, iluminando ruas de paralelepípedos, as asfaltadas e as ruas de terra que – claro! – sob chuva, eram de lama!

 

Ah,eu adorava bondes e ônibus! E a própria Companhia Municipal de Transportes Coletivos – aquela, de entre os anos 1950 e 1960. Nossa! Quantas garagens! Que enorme frota! Quantos muitos funcionários! Diziam, lembro, “a CMTC é da Prefeitura”, referindo que a municipalidade a gerenciava – instituída que houvera sido em 1947. Eu gostava do vermelhão dos bondes e ônibus, embelezado por singular e indefectível logotipo, que eu chamava “emblema”.

 

Eu? Ora, nunca trabalhei na CMTC – que pena! Fui somente um anônimo passageiro. De bondes que circularam nas minhas infância e adolescência; de ônibus como os sacolejantes ACLO, de mecânica inglesa e que davam tranquinhos mudando marchas “semiautomáticas” –- nas linhas 11, 12 e 13. Ou 47 e 48. Que saudadizinha!

 

Quando, em 1961 – lembro bem – Adhemar de Barros cedeu lugar para Prestes Maia, então o vigoroso vermelho da CMTC virou – bondes e ônibus – um apático laranja clarinho… anêmico.

 

Os velhos bondes – obsoletos, de há muito – a cor laranja lhes era a da própria agonia. Pois, sabemos, o último camarão deu seu suspiro final em Santo Amaro, em 1968, numa viagem ironicamente festiva. Nela, o prefeito Faria Lima, que tornou de um azul escuro a cor da “Nova CMTC”.

 

Olha, bem melhor que eu… que o diga um ex-ceemeteceano: quão imponente, a CMTC! Que reformava bondes, na Araguaia; montava carrocerias de ônibus na colossal Santa Rita e mantinha uma Escola Senai, na Ponte Pequena! Oficinas e garagens? Eram muitas: Jabaquara, Santo Amaro e Lapa; Sumaré, Barra Funda, Cambuci. Depois, enorme, Vila Leopoldina. Uma, exclusiva de ônibus elétrico, na Machado de Assis. Era pouco? Era muito!

 

Os bondes? Lembro, igual. Três gares – herdadas da Light – curiosamente denominadas de “estações de bondes”: Vila Mariana, Brás e Alameda Glete. Exagero, dizer da CMTC, “imponente”?

 

Que o amanhecer de 25 de janeiro, em que Piratininga soprará 465 velinhas … que a efeméride traga consigo, tal qual um ônibus traz um passageiro, uma lembrança! Ao mesmo tempo, reconhecimento e gratidão de nós, concidadãos. Enfim, uma homenagem à CMTC, digo melhor, às gerações de paulistanos que por meio século a conduziram! E, assim, nos conduziram! A CMTC é uma história de São Paulo: nada é mais paulistano que ela! Uma nostalgia vermelhona.

 

Rubens Cano de Medeiros é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Participe desta homenagem a nossa cidade: envie seu texto para contesuahistoria@cbn.com.br

Conte Sua História de São Paulo: a lição que recebi quando saltei do bonde

 

Por Adalberto Miguel Pedromônico

 

 

Tenho centenas de histórias para contar sobre São Paulo. Nessa magnífica cidade vivi minha infância e minha adolescência. Mais precisamente no bairro do Cambuci.

 

Meus pais se mudaram de Guaratinguetá para São Paulo, nunca soube as razões, em 1946, quando eu tinha dois anos. Foram morar na Rua Silveira da Mota onde ficamos até 1953, quando nos mudamos para a Rua Backer.

 

Estudei os meus quatro primeiros anos no Grupo Escolar Oscar Thompson e o ginásio no Liceu Siqueira Campos, durante quatro mal aproveitados anos. Do Liceu ficou muito marcada a convivência com o Ubiratã, irmão do Biriba, que era um mesa-tenista de renome e que se sagrara campeão sul-americano. Joguei muito contra o Ubiratã no União Mútua, do Ipiranga.

 

Muitas lembranças me vêm à mente quando me ponho a rever o passado e muitas foram determinantes para a formação de meu caráter.

 

Recordo-me com clareza de minhas idas e vindas ao centro da cidade, quando eu pegava o bonde Vila Prudente-Praça João Mendes e saltava do bonde andando sempre que o cobrador se aproximava. Cobrador esse que, como os demais, puxava a cordinha recitando: “tlin, tlin, dois prá Light e um pra mim”.

 

Certo dia um senhor de cabeça branca, mas muito lúcido, se acercou de mim que acabara de aterrisar na confluência da Rua da Glória com Lavapés, e com muita simplicidade e generosidade me recomendou que não mais fizesse aquilo. Que talvez eu não soubesse, mas que algumas personalidades públicas, como Adhemar de Barros, Jânio e outros, faziam a mesma coisa que eu quando tratavam dos recursos do povo.

 

A conversa, em princípio soou como “coisa de véio”. No entanto, “degavarinho” o recado foi deixando sua marca e eu passei a me preocupar um pouco mais com meu comportamento. Voltei a pagar a passagem.

 

Morando na Backer, minha saudosa mãe Angelina era freguesa de carteirinha do seu Joaquim, um padeiro que passava, diariamente sem falhar, desde a Lins até o final da Backer, vendendo pão e leite. Anotava os pedidos das freguesas e trazia os pães por volta das 7 horas. O mais espantoso é que ele passava antes, cerca de 5 horas, deixando uma garrafa de leite nos portões das casas que haviam feito o pedido. E o muito mais espantoso é que ao acordarmos nosso leite estava lá, no mesmo lugar onde havia sido deixado pelo burruga!

 

Outra história que costumo contar às pessoas com quem convivo, com certa riqueza de detalhes, tem a ver com meu primeiro emprego.

 

Já com 14 anos e me revelando um estudante de pouco futuro, Dona Angelina me mandou trabalhar “prá ver quanto dói uma saudade…”. Meu pai me arranjou uma vaga de contínuo, no escritório de três advogados, que ficava na Benjamim Constant, esquina com Quintino Bocaiúva, em cima das lojas Garbo. Por lá estive durante uns oito ou nove meses e aprendi muito da vida cotidiana.

 

O fato é que os três advogados tinham conta bancária na Caixa Econômica Federal, que ficava na Praça da Sé.

 

Bem, de vez em quando cada um deles — Dr. Mario Jorge, Dr. Herminio Costabile e Dr. Portugal Gouvê — preenchia, assinava e me dava um cheque de valores diversos para sacar.

 

Lá por volta das 9 horas, ia eu despreocupado da puta da vida. Pegava uma das filas de caixa e, ao chegar minha vez, entregava os cheques para o funcionário que me dava em troca um medalhão de cobre ou latão com um número gravado, que servia de senha.

 

Muito bem! Primeira parte do serviço concluída.

 

Voltava para o escritório munido de três medalhões e muita vontade de lá encontrar a filha do Dr. Mario Jorge que era um “piteuzinho” — um ou dois anos mais velha que eu. Vontade muitas vezes frustrada.

 

Passadas duas horas, voltava à agência e apresentava ao mesmo caixa os medalhões. O caixa perguntava a cada medalha: “qual o valor?”. E eu dizia certinho, uma vez que havia anotado. O funcionário tirava maços de notas da gaveta e separava cada valor, que me era entregue. Via de regra eu pedia elastiquinhos e formava três pacotes que eram enfiados nos bolsos de minha caça Rancheira, tendo identificado cada um. Atravessava a Praça da Sé, voltava para o escritório e entregava o dinheiro quando desse certo.

 

Foram muitas essas idas à Caixa e nunca tive nenhum problema.

 

Daí, quando eu digo que a vida era melhor, tudo que sabem fazer é me recriminarem e rotularem de saudosista. Ninguém é capaz de me dizer se poderemos, um dia, voltar a criar nossas crianças num ambiente desse tipo.

 

Como as histórias que aqui rememorei, tenho muitas outras. Tanto que estou escrevendo minhas memórias, antes que eu acabe.

Adalberto Miguel Pedromônico é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. E a locução de Mílton Jung. Envie a sua história para milton@cbn.com.br

Conte Sua História de São Paulo: o bonde da Casa Verde

 

Pedro Vitorino
Ouvinte-internauta da CBN

 

 

Plim, plim, plim, lá vem o bonde
Plim, plim, plim, lá vai o bonde.
De onde vem, pra onde se destina?
– Vem do Centro, Rubino de Oliveira,
Da Vila Maria, Vila Sabrina,
Como bólido, espalhando faíscas incandescentes
Sobre os trilhos e dormentes
Tortuosamente fincados nesta Terra de Piratininga.

 

Em cada parada um vaivém de pessoas aprumadas
Subindo ou descendo, soberbas, aceleradas,
Rumo ao trabalho ou sua triunfante volta ao lar:
– São paulistanos, paulistas, mineiros, baianos,
Brasileiro do sul, do norte, do leste e do oeste
E de além mar: portugueses, espanhóis, japoneses,
E muitos outros que nesta terra aportaram
E a escolheram para aqui fincarem suas raízes.

 

É quase madrugada, ainda ruas escuras,
Luzes ofuscadas pela fria e incessante garoa paulistana;
Na Praça Centenário, rostos sonolentos aguardam a vez do embarque…
Lá vem o bonde, trepidante, com seu condutor – o motorneiro –
Em seu traje de gala, triunfante!
E mais uma jornada se inicia, no seu pinga-pinga,
Em ziguezagues pelas ruas da cidade, ainda adormecida,
Mas pronta a cumprir seu destino, sem fadiga.

 

Homens, mulheres e garotos imberbes ali estão:
Gorros à cabeça, cachecóis e capas a cobrir-lhes os corpos
–  A proteção indispensável contra a garoa e o frio-
Em cada mochila, a marmita, a garantir-lhes a sustentação no trabalho.
E lá vai o bonde, descendo a Rua Inhaúma,
Ponte da Casa Verde à vista, com seus muitos campos de futebol – ladeados –
Silenciosos agora, mas repleto de vida, aos domingos,
Em sublimes momentos de intensa glória!

 

Barra Funda, Bom Retiro – o centro está logo ali;
Lá vai o bonde, no seu plim, plim, plim insistente.
Em cada curva um solavanco – um vai pra lá, vem pra cá
Despertando aqueles heróicos trabalhadores anônimos
Símbolos da grandeza desta terra que é de luta e esperança;
Ouve-se o plim, plim, plim da última passagem registrada
– “Fim da linha”, diz o cobrador, mais uma vez,
Porém, diziam as más línguas: !Não a última cobrada”!

 

Anoitece, e toda aquela gente sonolenta desse mesmo dia – no seu amanhecer –
Ali está, todos atentos ao Casa Verde,
Estampado na “testa” daquele monstro de madeira e ferro
Que logo surge, como um dragão, expelindo fogo,
Entre os trilhos e suas “patas” barulhentas
Agora em direção ao aconchego do lar,
Embalados pela sonoridade – e habilidades – do cobrador:
Plim, plim, plim, um pra Light, dois pra mim…
Plim, plim, plim, um pra Light, dois pra mim…
Plim, plim, plim…

 

Pedro Vitorino é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Claudio Antonio. Conte mais um capitulo da nossa cidade. Escreva para milton@cbn.com.br.