Porta arrombada, pacto de ferro

 

Por Milton Ferretti Jung

 

Cheguei a lembrar, ao iniciar este texto, o que digitei várias quintas feiras atrás no qual tratei da tragédia ocorrida em Santa Maria: o incêndio na boate Kiss. Escrevi naquele o conhecido adágio popular “porta arrombada, tranca de ferro”. Estava pronto a parafraseá-lo baseado no primeiro dos cinco pactos propostos pela presidente Dilma Roussef, na reunião de emergência com governadores e prefeitos estaduais, visando a acabar com os protestos populares cujos objetivos, acredito, ficaram sobejamente conhecidos. Já havia imaginado postar: porta arrombada, Constituinte Exclusiva. Em menos de 24 horas,porém,a Presidente desistiu da ideia,sensibilizada com as orientações do presidente da OAB,Marcos Vinicius Furtado Coelho. Estragou a minha paráfrase,mas mantenho o que diz o provérbio,isto é,”porta arrombada,tranca de ferro”. Se,de fato,os quatro pactos que permaneceram serão colocados em prática,os protestos devem terminar. Royalties para a educação,investimentos em saúde,responsabilidade fiscal e transporte público,ao contrário da Constituinte Exclusiva,são exequíveis e urgentes.

 

Ora – me pergunto – por que estas maravilhosas providências não foram tomadas antes pelo Governo.Foi necessário que jovens, reunidos por força do Facebook,tenham ido às ruas,munidos de boas ideias e muita coragem,para que as autoridades se dessem conta de que não é mais possível retardar o que há muito tempo já deveria estar em execução,com vistas a tornar menos difícil a vida dos brasileiros. Há um tempo para tudo,conforme se lê no Eclesiastes. Atrevo-me a dizer que,no mínimo,é tempo de se dar uma trégua aos governantes para ver se tudo o que estão prometendo vai sair do papel. Ah,uma vitória já foi alcançada pelo povo:caiu a PEC 37.

 


Milton Ferretti Jung é jornalista, radialista e meu pai. Às quintas-feiras, escreve no Blog do Mílton Jung (o filho dele)

Por uma constituinte popular permanente

 

Texto escrito por Francisco Whitaker um dos criadores do Fórum Social Mundial e da Lei do Ficha Limpa:

 

Enquanto era um simples projeto de iniciativa popular, para o qual eram recolhidas assinaturas de apoio pelo Brasil afora, a atual Lei da Ficha Limpa sofreu muitos e diversificados ataques. Chegou a ser chamada mesmo de autoritária, por fazer um reparo à conquista indiscutível da humanidade que foi a adoção universal do principio anti-barbárie da presunção da inocência. Mas seus principais opositores se encontravam justamente entre os que seriam por ela atingidos e que, apoiando-se na infindável possibilidade de recursos aberta pelos nossos Códigos processuais, usavam esse principio para assegurar sua impunidade. E por isso mesmo foi de fato uma surpresa que o projeto superasse a barreira que se erguia contra ele no Congresso, onde se dizia, quando lá chegou com seu milhão e meio de assinaturas, que era mais fácil uma vaca voar do que ele ser aprovado.

 

E eis que o bom senso desse milhão e meio de eleitores chegou – depois de uma verdadeira maratona dentro do Congresso, no Tribunal Superior Eleitoral e por fim no Supremo Tribunal Federal – a encurralar o principio da presunção da inocência lá onde ele tinha mesmo que ficar: no direito penal. E a sociedade se viu enfim contemplada com a validação do principio também universal da precaução, ainda mais quando se trata, como no direito eleitoral, de eleger pessoas às quais será entregue a responsabilidade de cuidar dos destinos do país.

 

Uma vez feito mais esse avanço na vagarosa construção de uma verdadeira democracia no Brasil, chovem loas à nova lei, vindas das mais diversas e às vezes incríveis procedências. Um sólido consenso, apoiado numa significativa proporção de votos no STF, se forma no país em torno da necessidade indiscutível de uma biografia inquestionável para se ter o direito de exercer funções públicas. Ficha Limpa passou a ser um novo e importante conceito da cultura nacional. E como se todos tivessem de repente descoberto o ovo de Colombo, multiplicam-se, do nível municipal ao nível federal, novas leis estendendo essa obrigatoriedade a todo e qualquer cargo de governo, inclusive os de confiança. Fomos enfim capazes de introduzir algumas barreiras a outros tipos de barbárie, como a de se apropriar insaciavelmente de recursos que são de todos – a corrupção que hoje se escancara em todo o mundo – ou como a de se apoiar no poder conquistado pelo voto para se resguardar de condenações por diferentes tipos de crime.

 

Mas eu gostaria de analisar outro aspecto da experiência vivida. O processo de conquista da Lei da Ficha Limpa teve outro tipo de efeito, que pode vir a ser ainda mais amplo: o de dar aos cidadãos a consciência de que podem mudar as leis do país em favor da coletividade. Um pequeno artigo da Constituição de 1988, já então chamada de Constituição Cidadã, criou o instrumento da Iniciativa Popular de Lei, pelo qual uma proposta de mudança legislativa pode ser levada ao Congresso desde que um por cento do eleitorado a subscreva.

 

O primeiro uso desse instrumento – uma proposta de criação de um Fundo Nacional de Habitação Popular – ocorreu cinco anos depois. Mas o projeto correspondente levou 17 anos para se transformar em lei. Com o aprendizado da primeira, uma segunda tentativa, seis anos depois, foi mais bem sucedida: um projeto que estabelecia que perderiam seu registro os candidatos que comprassem votos – a chamada corrupção eleitoral – foi transformado em lei sete semanas depois. E passados mais dez anos a proposta da Ficha Limpa veio coroar a efetividade do instrumento, ainda que tivesse exigido oito meses para ser transformada em lei.

 

E eis que de repente, após o término da novela da Ficha Limpa, surgem por todo o Brasil, do nível federal ao municipal (nos Municípios cuja Lei Orgânica também incorporou o instrumento), projetos de lei de iniciativa popular. Nem tenho informações sobre tudo que está sendo gestado pelo Brasil afora. Mas há muitos grupos de cidadãos e cidadãs, reunidos em associações e entidades da sociedade civil, que estudam projetos visando questões que nossos Parlamentos não enfrentam adequadamente.

 

A Plataforma pela Reforma do Sistema Político, que congrega 35 entidades nacionais da sociedade civil, lançou um projeto de lei visando a Reforma Política. Todos sabemos que ela é extremamente necessária em nosso país, mas o Congresso sozinho não consegue realizá-la. Há pouco outro importante problema nacional começou a ser enfrentado também por meio de uma Iniciativa Popular: foi lançado no Amazonas um projeto de lei de Desmatamento Zero, que contesta diretamente a decisão congressual sobre o Código Florestal. Há associações que estão elaborando uma Iniciativa que limita em dois mandatos consecutivos o exercício da representação política – que uma vez transformada em profissão perverte o seu sentido. A proposta de limitar o número de mandatos está sendo inclusive levada ao nível preparatório final da 1a. Conferência Nacional sobre Transparência e Controle Social. Há grupos estudando uma Iniciativa de Lei que interdite as empresas de financiar campanhas eleitorais – que as leva a dominar em seu favor as decisões congressuais e do próprio Poder Executivo. Retomam-se também velhos sonhos como o da Tarifa Zero no transporte coletivo da cidade de São Paulo, ou o da obrigatoriedade de plebiscitos prévios à realização de obras públicas de elevado valor ou significativo impacto ambiental, previstos na Lei Orgânica desse mesmo município. Até um Poder considerado intocável como o Judiciário será seguramente um dia surpreendido por propostas populares visando corrigir as distorções que ocorrem em seu funcionamento.

 

A Constituição exclui do alcance da Iniciativa Popular mudanças constitucionais. Nada impede porem que a aspiração popular chegue ao Congresso com milhões de assinaturas e um grupo de parlamentares assuma a iniciativa de propor, apoiados nessa aspiração, um Projeto de Emenda Constitucional – PEC, nos termos da proposta popular. É o caso da iniciativa sobre o número de mandatos, que já prevê a necessidade de uma PEC, e da iniciativa resultante do impacto causado pelo drama de Fukushima, que propõe que nossa Constituição vede a construção de usinas nucleares em nosso país e determine a interrupção da construção de Angra III e o desmonte de Angra I e Angra II, livrando-nos do pesadelo dos terríveis acidentes com reatores e as gerações futuras da herança diabólica do lixo atômico.

 

Corremos na verdade o risco da banalização desse instrumento. Até porque que tais empreitadas são gratificantes mas não são fáceis. Nas duas iniciativas bem sucedidas acima citadas – contra a compra de votos e pela Ficha Limpa – levou-se um ano e meio, em cada uma, para se chegar ao 1% do eleitorado. É preciso muita perseverança. E uma vez entregue ao Congresso, a tramitação da proposta tem que ser acompanhada dentro dele pelos seus promotores, passo a passo, para que não fique, como a primeira delas, 17 anos mudando de gaveta. As vacas só voam com muito embalo… E a um período de entusiasmo e multiplicação de propostas pode-se seguir cansaço, desencanto, frustração… Precisaríamos estar bem conscientes de que só devemos lançar Iniciativas Populares se estivermos organizados e dispostos a ir até o final de um processo difícil e longo.

 

Nesse quadro alguns parlamentares já se apressam, quase afoitamente, para mudar a Constituição e facilitar as coisas para o povo. Por exemplo, criando a possibilidade da coleta de assinaturas pela Internet, que permite que se chegue mais rapidamente ao mínimo necessário. No caso da Ficha Limpa, no final do seu processo, e já entregue o projeto ao Congresso, mais 400.000 assinaturas obtidas pela Internet foram incorporadas.

 

Mas essa facilitação reduz a adesão ao trabalho de ler uma proposta e apertar um botão para expressá-la, e anula toda a dimensão educativa do processo de coleta de assinaturas. Essa coleta pode ser demorada mas é também uma pedagogia de exercício da cidadania. As pessoas que buscam assinaturas têm que estar bem cientes do que estão propondo e as pessoas que assinam só o farão se estiverem convencidas. No caso da lei contra a corrupção eleitoral foi possível criar com essas pessoas, em todo o Brasil, após sua aprovação, os chamados Comitês 9840 (número da lei), que assumiram a função de garantir que fosse realmente aplicada lá onde moravam – e mais tarde foram animadores da coleta para a Ficha Limpa.

 

Alem disso, com a coleta pela Internet corre-se com isso o risco de não se ter muita gente disposta ao demorado trabalho de acompanhar e pressionar o Congresso, durante todo o tempo de discussão e decisão sobre o projeto – no caso da Ficha Limpa foram oito meses.

 

Se o tema de uma proposta for preciso, compreensível, e corresponder a uma efetiva aspiração da sociedade, essa forma de participar do processo legislativo pode ser efetiva, como ficou demonstrado com as leis da compra de votos e da Ficha Limpa. E quanto mais o instrumento da Iniciativa Popular se consolidar no conhecimento dos cidadãos e cidadãs e passar a contar com maior apoio dos meios de comunicação de massa, os prazos podem ser mais curtos e a pressão sobre o Congresso mais forte.

 

O Senador Pedro Simon, em recente desabafo no Senado, falou de seu desencanto com o Congresso, opinando que somente a pressão da sociedade faria com que ele assumisse plenamente suas funções. Quem sabe o surgimento de um processo constituinte popular permanente possa atender à sua angustia.

Reforma Política dispensa Constituinte

 

Por Antônio Augusto Mayer dos Santos

Com alguma freqüência, surge apregoada por Congressistas e neste ano eleitoral por candidatos, a idéia de convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte para a implementação da Reforma Política que este país exige. Segundo eles, esta seria a solução ideal para resolver a questão político-eleitoral do país.

Entretanto, a par de messiânica, retórica e demasiadamente simplista, esta não é uma solução apropriada ou tampouco recomendada, sequer pela Ordem dos Advogados do Brasil. Vejamos.

Constituinte é um procedimento de natureza extraordinária que exige rigorosos pressupostos. Todavia, estes se encontram ausentes do cenário nacional. Além disso, é importante ressaltar que os principais temas da Reforma já estão materializados em projetos que tramitam no Congresso Nacional, muitos em condições de pauta. Por outra, conforme advertem renomados especialistas e estudiosos, uma Assembléia Nacional praticamente paralisa o Legislativo, situação esta que, por óbvias razões, dispensa aprofundamentos.

Também que, pelo fato de ser exclusiva, a Constituinte não disporia de poderes para legislar as matérias de hierarquia inferior que dariam efetidade às novas regras constitucionais, o que indubitavelmente frustraria a sua decantada gênese na medida que diversos itens permaneceriam pendentes de regulamentação.

Contudo, a principal impropriedade é mesmo de natureza técnica. Primeiro, porque a maioria dos itens da Reforma não ostenta mínima envergadura ou aptidão constitucional. Depois, que Constituinte parcial para tratar de uma única matéria é algo contraditório e praticamente inexplicável. Por fim, fique claro que não há nada, absolutamente nada no texto da Constituição Federal vigente que impeça a implementação de alterações eleitorais, partidárias ou de representação popular. Ademais, o povo já delegou poderes para esta finalidade. O que ocorre, na verdade, é uma vergonhosa omissão parlamentar.

Nem mesmo os anêmicos índices de credibilidade que as pesquisas de opinião conferem à maioria dos Congressistas tem sido suficientes para substituir a retórica pela atitude. Ora, se sem Constituinte a maioria do Congresso, a começar pelas bancadas governistas, já se curva sem maior esforço e crítica para ratificar as Medidas Provisórias, que se dirá sob uma Constituinte.

Para concretizar pressões legítimas em torno desta atitude, é importante que os eleitores brasileiros elejam neste pleito de 2010, parlamentares comprometidos com mudanças e reformas concretas. Assim, se na propaganda do candidato constar que ele se compromete com a Reforma Política mas no exercício do seu mandato ele não honrar o compromisso, que não seja reeleito na próxima.

E mais: que receba manifestações de cobrança dos eleitores pelo fax do seu gabinete na Câmara dos Deputados (www.camara.gov.br), escritório político, torpedos em celulares, cartas, telegramas, editoriais em jornais, sites, blogs, etc.

Assim, se num primeiro exame a tese da Constituinte se revela simpática, sedutora ou dotada de potencial para supostamente solucionar os problemas mais aflitivos da matéria, na prática, ela se revela um procedimento contraproducente e impróprio.

Diante do volume de projetos que tramita em torno do assunto, a convocação de uma Constituinte apenas acentuaria a incapacidade do Congresso Nacional para executar sua tarefa precípua e natural: legislar.

Antônio Augusto Mayer dos Santos é advogado especialista em direito eleitoral e autor do livro “Reforma Política – inércia e controvérsias” (Editora Age). Às segundas, escreve no Blog do Mílton Jung.