Por Augusto Licks

No dia 2 de outubro, data do primeiro turno da eleição de 2022, serão formalizadas algumas coisas que já são conhecidas por todos que acompanham de perto o cenário político brasileiro, a saber: candidaturas sem possibilidade de vitória serão enfim tratadas como tal. Antes do dia 2, por questões legais, protocolares, ou de outra natureza, o período oficial de campanha eleitoral e a cobertura jornalística proporcionaram amplo espaço a todos candidatos e candidatas, com exceção a debates televisivos em que aplicou-se uma regra de barreira para nomes que não atingiam um determinado percentual em pesquisas de intenção de voto.
Nos debates, foi oferecida participação a alguns candidatos cujas chances de vitória sempre estiveram taxativamente descartadas pelas mesmas pesquisas. Sabemos que sempre há margem de erro em pesquisas. No entanto, no caso específico da corrida presidencial, para que houvesse uma alteração extraordinária nos percentuais projetados, algum tipo de singularidade precisaria acontecer, algo como o afastamento de um dos favoritos por motivo de saúde.
De resto, todo o período oficial de campanha e mesmo o desempenho nos debates não teriam força suficiente para uma inversão da expectativa quanto ao pleito presidencial. E por quê isso? É porque na prática a campanha eleitoral começou lá atrás, desde a eleição de 2018, disseminada entre as redes sociais, esse fenômeno que cada vez mais mantém ocupada a população no dia-a-dia. Não apenas isso, pois o que as redes sociais refletem é o parâmetro decisivo em eleições: o apelo pessoal, que transforma-se em culto à personalidade, combustível de populismo, independentemente de orientação ideológica.
Para a eleição de 2022 somente as duas candidaturas favoritas se credenciaram com esse handicap favorável, mesmo que enfrentando respectivos e expressivos índices de rejeição. Há um ano ainda existia a possibilidade de uma terceira via oferecer competitividade, pois aproximadamente um terço do eleitorado rejeitava tanto Bolsonaro como Lula. Não aconteceu, e é possível encontrar algumas explicações.
Não houve, por exemplo, união em torno de algum candidato único que liderasse uma frente. Mesmo que houvesse, demandaria um esforço muito grande para impor em curto prazo uma personalidade que consolidasse apelo popular diante do “loteamento” já existente. Além do mais, havia e há o esvaziamento programático, a tarefa difícil de se popularizar com propostas já abarcadas por Lula ou Bolsonaro.
Ciro Gomes foi o primeiro a detectar que não haveria frente de terceira via, e cedo contratou marqueteiro de campanha, enquanto outros foram perdendo tempo. Na época, Ciro ainda era visto como uma alternativa de centro-esquerda não-petista, acolhido coerentemente pelo PDT, o partido trabalhista fundado por Leonel Brizola quando Ivete Vargas tomou para si a legenda do antigo PTB.
Simone Tebet brilhou durante a CPI da Covid, revelou-se como alguém que se expressa muito bem e com naturalidade, e ali sua candidatura poderia ter sido lançada como “algo novo” na política, mas perdeu tempo e enfrentou resistências no próprio MDB.
Então, no domingo de 2 de outubro, Ciro e Tebet despedem-se da disputa presidencial, juntamente com outras candidaturas ainda menores. Isso não significa que se afastarão da cena, pois passado o 1° turno, vira-se uma chave e a política adquire uma dinâmica diferente. Durante todo o período de campanha, os candidatos usufruíram de grande exposição midiática e os não-favoritos se apresentaram como franco-atiradores buscando afirmar-se em contrariedade a Bolsonaro e Lula, obviamente plantando para seus respectivos futuros.
Em caso de vitória de Lula em 1° turno, especula-se que Ciro poderia até postular uma liderança de oposição de centro-direita, já que devido à sua postura em debates uma parcela de pedetistas não mais o reconhece como leal ao trabalhismo, que teria sido usado como disfarce oportunista. Possivelmente, o marqueteiro de Ciro avalie que ele possa ocupar o espaço de uma possível ausência futura de Bolsonaro, caso o filho Flávio não se apresse naquele objetivo. Ciro já foi ministro de Lula mas, hoje, embora o ex-presidente reforce estar aberto ao diálogo, dificilmente encontrará acolhimento num novo governo petista. Caso haja 2° turno, será interessante observar para qual lado penderá o cearense, ou se irá lavar as mãos. Sempre imaginei que penderia para Lula, mas com sua postura recente aquela expectativa talvez não se sustente mais. E sobre as outras candidaturas menores? Provavelmente se alinharão por um lado ou outro, subindo ou não em palanque, buscando negociar algo em troca.
Simone Tebet alcançou boa visibilidade durante a campanha graças à sua boa capacidade de expressão. Enquanto Ciro mostrou-se mais contundente contra Lula do que contra Bolsonaro, Tebet foi na direção inversa, portanto cogita-se que tenderá a apoiar Lula num eventual 2° turno, afinal textos de sua campanha chegaram a mencionar “não se omitir”. Especula-se até que possa ser convidada para algum ministério de Lula, o que seria uma forma de o petista cooptar uma liderança emergente. Iria aceitar? Tebet certamente gostaria de investir em seu perfil “independente” rumo a 2026, mas iria precisar de um suporte partidário e popular bem mais efetivo. Além disso, precisaria resolver algumas contradições como seu histórico de apoio a decisões bolsonaristas, e sua origem familiar de proprietária rural em questões que afetaram interesses de povos indígenas em demarcação de terras. Seu afastamento de apoiadores de Bolsonaro a partir da CPI já lhe rendeu prejuízo eleitoral em seu estado. Conseguirá resolver essas questões num partido como o MDB, de sabida simpatia mais por coalizões do que por candidaturas protagonistas?
É inegável o aspecto plebiscitário da eleição presidencial, uma escolha entre consolidar o caminho de extrema-direita iniciado por Bolsonaro ou aceitar Lula como única possibilidade de preservação do atual regime democrático de direito. Entre os indecisos e os “nem-nem” foi cristalizando-se alguma tendência a antecipar o que seria voto de 2° turno, como tentativa de minimizar o risco de uma “derrota maior”.
Isso explica o “voto útil”. É certo que Bolsonaro conseguiu algum avanço entre indecisos e o apoio declarado de algumas personalidades públicas, além da “simpatia” sem voto declarado de famosos como o jogador Neymar e a teledramaturga Glória Perez, mas as pesquisas indicam ter chegado a seu limite eleitoral. Já do lado de Lula, chama atenção o crescimento percentual maior nas pesquisas e a grande quantidade de personalidades públicas que abriram voto em seu favor, e o que é emblemático: gente que no passado atacou implacavelmente os governos petistas. É de se destacar, entre outros: o jurista Miguel Reale Jr, que instruiu o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, os juízes Celso de Mello, Ayres Britto, Carlos Velloso, Nelson Jobim e Joaquim Barbosa, este último presidente do Supremo Tribunal Federal na época do escândalo “Mensalão”, ex-presidenciáveis como Marina Silva e Henrique Meirelles, o influenciador Felipe Neto, com 44 milhões de seguidores, as populares apresentadoras Xuxa e Angélica, esposa de Luciano Huck, apresentador simpatizante do PSDB, e o até pouco tempo “cirista” Caetano Veloso, que acabou liderando campanha para tirar voto de Ciro.
Salvo fato de força maior, tudo indica derrota de Bolsonaro, talvez até em primeiro turno. Mas isso é o que as pesquisas indicam e pesquisas oferecem probabilidades, não certezas. Outros fatores podem acontecer numa eleição afetando as probabilidades. Impugnações, fraude, dificuldades de transporte de eleitores, violência, são possibilidades que não podem ser descartadas, apesar de todo esmero da justiça eleitoral.
Também não dá para se descartar, por tudo que temos testemunhado, que o próprio sistema seja testado na sua capacidade de resistir a ameaças não-democráticas. O economista francês Thomas Piketti, autor do best-seller “O Capital no Século XXI”, foi perguntado por um entrevistador assumidamente de 3ª via se considerava “irresponsável” aquela opção. Piketti respondeu que era um termo muito pesado, e que o mais adequado seria “arriscada”. Referia-se à possibilidade de, num segundo turno, Bolsonaro fortalecer-se na sua estratégia de contestar e desafiar o resultado eleitoral se não lhe for favorável, a ponto de tentar o que Donald Trump não conseguiu nos EUA.
A teoria de conspiração sobre um suposto golpe permanece como uma sombra pairando sobre a eleição presidencial. Bolsonaro foi acusado de usar suas recentes viagens a Londres e a Nova York como palanque político. Não me pareceu que foram tentativas de obter mais votos e sim oportunidades usadas para conclamar seguidores. A sua declaração antecipando suspeita caso não viesse a vencer já em primeiro turno ocorreu no mesmo dia em que grupos de redes sociais espalharam uma pesquisa falsa dando ao presidente 60% das intenções de voto. Coincidência, ou algum tipo de senha ? Dias depois, pessoas que tinham acessado serviços digitais do governo do Paraná começaram a receber a seguinte mensagem por SMS: “Vai dar Bolsonaro no primeiro turno! Sen˜o, vamos a rua para protestar! Vamos invadir o congresso e o STF! Presidente Bolsonaro conta com todos nos!!”. Segundo o próprio governo paranaense, a mensagem ilegal foi disparada aproximadamente 324 mil vezes.
Na medida em que foi se aproximando a data do 1° turno, aumentaram relatos de violência política, geralmente motivada por bolsonaristas. Tem sido perceptível o medo de simpatizantes de Lula em ir à rua com roupas ou adereços identificando sua preferência, fazendo lembrar daquela frase pronunciada em eleição passada pela atriz Regina Duarte: “Eu tenho medo”.
Agora, refletindo por outro lado, caso recrudesça alguma tentativa de “virada de mesa”, isso talvez convença finalmente alguns setores da sociedade brasileira sobre o risco real de uma crise institucional no país. Incluem-se aí Ministério Público, forças armadas, setores empresariais e setores da própria “grande imprensa” que terão que ser mais claros a respeito da defesa do estado democrático de direito, se isso lhes é ou não prioridade maior. Existe um manancial de imputações ao presidente Bolsonaro, desde seu comportamento intimidador contra o Poder Judiciário, até sua postura ao longo da pandemia, passando por suspeitas de corrupção em sua família nos episódios das “rachadinhas” e na compra de 51 imóveis com dinheiro vivo de origem não-declarada, conforme detalhado em recente livro da jornalista Juliana Dal Piva.
Você, leitor ou leitora, considera que essas imputações são justas e estão tendo repercussão devidamente proporcional? Acha que a repercussão seria a mesma se o presidente fosse outro?
Sou contra a obrigatoriedade do voto, pois ofusca o direito que é. Pessoas que nada entendem de política ou por ela nada se interessam não deveriam ser obrigadas a votar. E, sim, nesse caso não teriam moral para reclamar da política e dos políticos como genericamente acontece. O que dizer para estas pessoas, que não redundasse em alguma forma de manipulação ou propaganda? Já aos que votam por convicção, recomendo pesar muito bem as implicações de suas escolhas presidenciais, pois não será apenas a escolha de um candidato, poderá ser também a escolha do regime político a vigorar daqui para a frente, com possíveis consequências para liberdades democráticas em nosso país.
Augusto Licks é jornalista e músico








