Ocupação sem fim

Dra. Nina Ferreira

@psiquiatrialeve

Celular, trabalho, séries, comida, sono, exercício físico, estudos, bebida alcoólica, submissão, silêncio…

O que isso tudo tem em comum?

A gente se enche de coisas pra fazer. Não é difícil achar uma ocupação, até porque as opções na vitrine são várias – sempre tem uma informação nova, uma reunião nova, algo imperdível ou urgente na lista do dia.

A gente entra, se afoga, tenta respirar na superfície, se afoga de novo, nada mais um pouco… E assim a gente vai vivendo – vivendo?

De repente, passou a semana, não fizemos o que era importante, continuamos tristes, irritados, cansados. De repente, tem um tanto de coisa que precisa mudar pra nossa vida melhorar, mas… passou.

Celular, trabalho, séries, comida, sono, exercício físico, estudos, bebida alcoólica, submissão, silêncio…

Quantas fugas.

Quantos jeitos diferentes temos de não parar, não olhar pra dentro, não encarar o que está torto ou o que dói.

Quantas maneiras encontramos de nos ocupar – inclusive, com atividades que, aos olhos da sociedade, parecem banais (celular) ou até muito úteis e admiráveis (trabalhar, conquistar mais e mais, fazer sucesso).

Aqui, vamos pensar além da forma: Por que fazemos o que fazemos? Estamos conectados e envolvidos com nossas escolhas e ações, elas têm um fim – ou seja, um objetivo bom para nós?

Por que fazemos o que fazemos? Estamos nos ocupando de atividades e tarefas que nos mantêm distantes de ter que olhar e sentir e lidar com aquilo que é pesado, sofrido, desafiador?

Natural fugirmos do que assusta; podemos fugir vez ou outra, como uma estratégia para respirar ou suportar. O que prejudica mesmo é essa ocupação sem fim – essa ocupação que afoga, que desconecta, que não tem um fim saudável e desejável, porque é só um “tapa-buraco”.

Que buracos estamos tentando evitar? Que vazios estamos tentando preencher?

Fica o convite… Vamos, sim, nos ocupar – com uma finalidade: o de, verdadeiramente, ser e viver. Ocupação com fim.

A Dra. Nina Ferreira (@psiquiatrialeve) é psiquiatra, psicoterapeuta e sócia fundadora da LuxVia Health Center. Escreve a convite do Blog do Mílton Jung.

27 anos separam Prego de Barbosa e quase nada mudou no Presídio Central

 

Há uma semana, o presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa foi a Porto Alegre para vistoria do Presídio Central, o maior do Rio Grande do Sul e um dos piores do Brasil. Não precisou de mais de 30 minutos para repetir aquilo que qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento do local já sabe: os presos vivem em condições subumanas. Barbosa disse aos jornalistas que “com certeza o preso não sai recuperado daqui. Ele muito provavelmente, em alguns casos, sai daqui muito pior do que entrou, enraivecido e brutalizado”. A visita faz parte do Mutirão Carcerário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, presidido por Barbosa. Verdade que o cenário encontrado na capital gaúcha não se difere muito daquele que temos em presídios Brasil afora, mas me chamou atenção por ter conhecido o local quando trabalhei no jornalismo gaúcho e perceber que pouca coisa foi feita desde então.

 

Em 1987, três anos após iniciar carreira na Rádio Guaíba de Porto Alegre, fui escalado para cobrir rebelião que ocorria no Presídio Central. Trinta e três presos deixaram as celas e renderam funcionários do Instituto de Biotipologia que fica dentro da penitenciária. Durante dez horas, fizeram ameaças, atacaram funcionários e desafiaram a polícia. Duas pessoas morreram no início da ação: um preso e um agente penitenciário. Próximo do local onde estavam, ouvi alguns deles gritando que nada tinham a perder, ao mesmo tempo que se percebia o desejo de policiais de entrarem para vingar a morte do colega. Após longa negociação e temendo a morte de inocentes, o Governo do Estado, Pedro Simon, deu ordem para que os presos fugissem em três carros acompanhados de reféns e sob a promessa de que estes seriam liberados com vida.

 

Em um lance de grande sorte e um pouco de irresponsabilidade, acompanhado pelo motorista Gilmar Lacerda, decidimos seguir o comboio de presos com o carro da rádio, o que permitiu que levássemos aos ouvintes, ao vivo, as emoções daquela fuga pelas ruas de Porto Alegre que estavam cheias devido ao horário do rush. A polícia também os perseguia até sumirem do nosso campo de visão. A ousadia dos rebelados rendeu reportagens durante semanas na imprensa gaúcha, enquanto a minha, alguns elogios e questionamentos, afinal, nos colocamos em risco durante aquela ação.

 

Não sei o que aconteceu com os presos que participaram da fuga, é provável que tenham morrido em outros confrontos ou voltado para a cadeia por novos crimes que cometeram. O mais perigoso deles, Vico, assaltante de banco, deveria ficar preso até 2029. Um dos comparsas dele, Prego, me disse, ainda durante a rebelião, que “nós estamos no colégio, na escola do crime”. Da declaração do condenado à de Joaquim Barbosa, 27 anos depois, poucas coisas mudaram no Presídio Central de Porto Alegre.

 

Talvez apenas eu tenha ficado mais velho e responsável (correr atrás de bandido, nunca mais!).

I-Juca Pirama para os fujões

 

Por Milton Ferretti Jung

Não sei até quando os leitores deste blog vão aturar que eu conte histórias como as que já postei, isto é, nas quais sou personagem. Vou me arriscar a lhes pedir licença para relatar mais uma.

Já escrevi sobre o tempo em que meus pais,cansados das minhas artes, decidiram me mandar para um internato, o Colégio São Tiago, em Farroupilha, na época uma cidadezinha situada na serra do Rio Grande do Sul que, como tantas outras, foi colonizada por italianos. Eles já me haviam ameaçado me internar no São Jacó, em Novo Hamburgo, um pouco além da Grande Porto Alegre e pilotado por maristas,tal qual o São Tiago. O número que deveria ser bordado nas minhas roupas seria 86. Como no internato para o qual acabei indo seria o oitavo hóspede, bastou que o 6 fosse retirado.

Meu antecessor no educandário morava na mesma rua que eu, na capital gaúcha. Meus pais se informaran sobre o colégio com os dele, cuja paciência com o comportamento do filho foi seis meses mais curta que a dos meus. Bruno, este o nome do meu companheiro de desdita, havia chegado no início do primeiro semestre de 1947 e eu, no começo do segundo. Viajamos juntos ,acompanhados pelos meus genitores. O trem, então, era o melhor meio de transporte. A viagem começava em Porto Alegre, passava por Farroupilha e terminava em Caxias.

Na primeira semana de aula dei parte de doente. Foi quando,como já relatei numa dessas quintas-feiras em que tratei dos estranhos sabores do vinho,que o Irmão Inácio me serviu,no dormitório,o primeiro copo desta bebida,sem que estivesse misturado com água,como ocorria,por ordem paterna,na minha casa. Vinho à parte, volto a história. Depois que comecei a comparecer às aulas normalmente,apenas às vespertinas me deixavam um tanto contrariado. Após as matutinas, almoçava-se e, em seguida, no gramado ao lado do ginásio de esportes, jogava-se uma pelada,todos vestidos com suas roupas normais,nada de fardamento. Esse, somente usávamos nas quartas-feiras, dia em que se jogava para valer. Os do selecionado do colégio, diariamente, tinham de acordar às cinco da manhã para fazer exercícios físicos. No inverno,era um horror levantar tão cedo. Eu jogava na seleção. Comecei como lateral e terminei no gol, posição em que era menos ruim.

Um belo dia ou, para ser mais preciso, uma bela tarde, quando faziamos fila para entrar nas salas de aula, o Bruno ficou na minha frente. Não sei por que cargas d’água (expressão antiguinha esta,não?) talvez por culpa do nojo que me dava ser obrigado a estudar em dois turnos, fiz uma indecorosa proposta ao Bruno:

– Cara,vamos fugir do colégio?

Ele me olhou meio espantado, mas, para minha surpresa, topou. Bolei como seria o nosso procedimento. Após as aulas, havia breve interrupção e logo tínhamos que ir para o que era conhecido por “estudos”, na minha ótica, outra chatice sem tamanho. Combinei com Bruno que a gente pediria licença para ir à privada, coisa que nos daria chance de escapar e que escapar pela porta lateral do ginásio esportivo. Não contávamos, porém, que um colega fosse usar o WC exatamente na hora em que iniciaríamos o nosso plano. O que fazer? Simples, pensei e pus em prática: fechamos o colega pelo lado de fora. E nos largamos com a meta de chegar a Caxias do Sul, minha cidade natal. Nem Bruno nem eu tínhamos e menor idéia do que fazer depois.

Para não sermos vistos por algum conhecido, precisamos dar uma grande volta até atingir os trilhos do trem e seguir, pela linha férrea, em direção ao nosso destino. Com isso, perdemos muito tempo. Não tardou e começou a escurecer. Logo era noite fechada. Andáramos apenas nove quilômetros. E bateu o medo. Mato fechado em torno dos trilhos. Ir adiante ou voltar? Retornar foi a decisão que tomamos unanimemente. E voltamos rezando o terço durante todo o caminho de regresso. Não me lembro da hora, mas era bem tarde quando chegamos ao São Tiago, para alívio geral: dos fugitivos, isto é, nós: dos maristas e dos nossos pais,que haviam sido informados do desaparecimento da dupla pelos irmãos. Para nossa surpresa,o castigo não foi dos mais pesados: cada um teve de escrever uma carta aos pais,explicado o que fizéramos e a falta de razão para justificar a atitude tomada; tivemos também que decorar o I-Juca Pirama, poesia interminável. Recordo-me que precisei escrever mais de cinco cartas até que a última não fosse censurada pelo irmão regente. Ainda bem que meus filhos e netos não me tomaram como exemplo.


Mílton Ferretti Jung é jornalista, radialista e meu pai. Às quintas-feiras, escreve no Blog do Mílton Jung (o filho dele)