A quem pertence a nossa saudade?

Diego Felix Miguel

Foto de Magi Dobreva

Cara leitora, caro leitor, qual é a sua primeira lembrança ao falarmos sobre saudade?

Nos últimos dias, tenho refletido sobre o lugar que a saudade ocupa na minha vida. Ela parece estar enraizada na minha infância, aparecer em raros momentos da adolescência e se manifestar com frequência nas relações mais intensas que estabeleci na vida adulta. A saudade é um sentimento fascinante; nela repousam nossas memórias mais significativas, acompanhadas de aromas, sabores e amores.

Recordo aqueles momentos de risadas e da sensação de completude quando estamos com quem amamos e sentimos a reciprocidade, ou mesmo na ausência dela, quando saboreamos nossa imensurável capacidade de resiliência. Parece-me que a saudade sempre vem acompanhada por alguém: sejam pessoas queridas, animais que foram nossos fiéis companheiros ou, talvez, pela maior e mais importante presença: a nossa. É a partir dessa entrega afetiva que nos permitimos nos envolver e sermos transformados pelo contato com os outros, com os animais e com o mundo.

Sei que este texto pode soar filosófico, mas, enquanto escrevo, diversas lembranças vêm à mente, especialmente das oportunidades que tive ao longo da vida de conviver com pessoas idosas, tanto em casa quanto nos ambientes profissionais em que atuo.

Neste período em que celebramos a saudade — e, por que não, os bons afetos? — não posso deixar de reverenciar dezenas, ou talvez centenas, de pessoas mais velhas que me inspiraram e contribuíram para a construção da minha identidade. Essas contribuições vieram tanto por meio de boas experiências quanto por escolhas menos felizes, todas compartilhadas em uma intensa troca afetiva. Dessa forma, as memórias se tornam imortais por meio do legado que deixaram, mesmo sem terem plena consciência dessa responsabilidade. Elas passaram a fazer parte da essência das minhas ações e valores, multiplicando-se pelo mundo.

Ouso dizer que isso é o que chamamos de “geratividade” em sua essência: passamos o bastão de nossos saberes e vivências para as gerações mais novas, mantendo acesos os sentimentos e as saudades que carregamos.

E, pensando nisso, pergunto-me: quais saudades estou plantando nesta minha trajetória?

Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Departamento de Gerontologia da SBGG-SP. Mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP, escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.

“É claro que me viro sozinho, sou o filho gay”

Diego Felix Miguel

Imagem criada no Dall-E

Nos últimos tempos, uma frase específica tem circulado nas redes sociais, sempre acompanhada de vídeos leves e irônicos de homens gays realizando tarefas cotidianas: “É claro que me viro sozinho, sou o filho gay”. À primeira vista, o tom humorístico parece inofensivo, mas para muitos da minha geração, essa frase carrega um peso histórico e emocional que não pode ser ignorado.

Para as novas gerações, talvez essa expressão de autossuficiência tenha ganhado um novo significado, marcado por maior aceitação e liberdade para construir identidades dissidentes. No entanto, para aqueles que cresceram antes dos anos 2.000, a realidade foi – e ainda é – muito mais complexa. Longe de querer generalizar, é claro que existem diferentes configurações familiares e sociais que podem ter permitido uma vivência mais leve e acolhedora para algumas pessoas LGBT. Mas a verdade é que, para a maioria, a jornada foi (e é) marcada por iniquidades, exclusão e desafios que não são facilmente superados.

Dizer que “me viro sozinho” pode soar como um motivo de orgulho para quem observa de fora, e talvez até para aqueles que internalizaram a resiliência como forma de sobrevivência. Mas a verdade é que, por trás dessa aparente força, existe um preço alto a ser pago. Um preço que envolve a solidão, a ausência de redes de apoio e o constante esforço para se adequar a padrões normativos que oferecem apenas uma falsa sensação de segurança.

Parece fácil, quando visto da poltrona do privilégio.

Para quem nunca precisou se esconder, suprimir quem realmente é, ou lutar por aceitação dentro de sua própria família, talvez seja difícil entender a profundidade desse sofrimento. Construir uma identidade que se alinhe às expectativas sociais pode até proporcionar algum conforto temporário, mas a que custo? Para muitos de nós, a vida foi uma constante batalha para manter distância da violência, da discriminação e das estruturas que perpetuam a desigualdade.

A consequência disso é evidente nos alarmantes índices de depressão, ansiedade e até suicídio entre a população LGBT, especialmente entre aqueles que não encontram acolhimento e suporte social adequados. A falta de políticas públicas específicas, somada à incapacidade de muitos profissionais de saúde e assistência social em lidar com a diversidade sexual e de gênero, agrava ainda mais essa realidade. Mesmo que esses números sejam subnotificados, eles revelam uma ferida social que precisa ser urgentemente tratada.

Resistência e resiliência: até que ficamos bons nisso!

Mas será mesmo?

Envelhecer sob a constante necessidade de resistência e autossuficiência é desgastante e, no fim, doentio. Essa autocobrança para ser independente o tempo todo, para manter-se distante da violência e alcançar alguma forma de aceitação familiar ou social, pode se estender por toda uma vida. E a quem recorrer, se até a família sanguínea muitas vezes se torna uma ameaça?

Que tipo de velhice estamos construindo quando percorremos um caminho marcado por iniquidade, violência e solidão?

Não pretendo generalizar, caro leitor e cara leitora, mas ao observar a população idosa LGBT, especialmente as pessoas mais pobres, percebo como elas estão sendo empurradas para as margens das políticas públicas. Aqueles que, ao longo da vida, tiveram menos acesso à educação e ao trabalho formal em condições seguras e acolhedoras, agora enfrentam uma velhice ainda mais vulnerável e invisibilizada, com agravos na saúde, sem garantia de aposentadoria, sem um lar confortável e uma rede de suporte social fragilizada.

E para essas pessoas, espera-se que continuem carregando o peso da frase que nomeia este texto: “É claro que esperam que eu me vire sozinho, sou o velho gay”.

Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Depto. de Gerontologia da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.

É preciso rever nossos acordos com o tempo

Por Diego Felix

Foto: Pexels

Às vésperas de completar 40 anos, me deparei com reflexões que me tiraram da zona de conforto, levando-me a um aprofundamento sobre uma questão intrínseca à vida: a velhice.

Não a velhice por uma perspectiva cronológica ou biológica, mas enquanto construção social, a mesma que Simone de Beauvoir apresenta em seu livro “A Velhice”: “nada deveria ser mais esperado e, no entanto, nada é mais imprevisto que a velhice”.

O início da inquietação

Permita-me, prezado leitor e prezada leitora, antes de compartilhar minhas inquietações, apresentar uma breve introdução de como isso se iniciou.

Na minha experiência, considerando as duas décadas que atuo profissionalmente com pessoas idosas e me dedico ao estudo sobre o envelhecimento humano, posso dizer com franqueza: “é preciso rever nossos acordos com o tempo”. Essa frase não é minha. Tomo-a emprestada do dramaturgo Ricardo Corrêa, autor e diretor do espetáculo “Bichados” – da Cia. Artera de Teatro.  Aliás, foi nesse espetáculo que minha “ficha caiu”.

“Bichados” conta a história de William, um homem gay às vésperas de completar 45 anos, que conduz a plateia por passagens interessantes da sua vida: sua relação com a sexualidade, sua família, o encontro com o homem que posteriormente seria seu marido, que o fez experimentar um verdadeiro amor, assim como vivenciar o luto na mesma intensidade, após sofrer um infarto.

Na história de William, a solidão, a invisibilidade social do luto e a discriminação são pontos que me tiraram totalmente do “prumo”. Ela conta também sobre o silenciamento que muitos de nós vivenciamos ao longo da vida, principalmente após os 40 anos, onde experimentamos uma dupla, tripla ou tantas quantas sejam necessárias, invisibilidades.

A invisibilidade e discriminação

São nas situações comuns à maioria das pessoas que nós, homens gays, experimentamos o gosto amargo do preconceito e da discriminação. Reproduções da sociedade tentam incessantemente invalidar nossos sentimentos e recorrentemente anular nossa existência, afinal, as estruturas sociais deslumbram e se organizam numa perspectiva heterossexual e cisgênera. Cabe a nós  caminhar sobre as fissuras dessa estrutura rígida do preconceito, tentando seguir na vida sendo quem somos.

Desafios ao envelhecer

A  prova disso é quando chegamos à velhice, seja ela aos 40, 50, 60 anos, percebemos mais uma vez que não nos encaixamos nas normatizações postas. Seja para atender um perfil esperado da velhice, ou nas características que ainda sustentam o estigma do gay padrão: musculoso, masculino e com inúmeros estereótipos que traduzem um perfil aceitável num mundo predominantemente machista, numa falsa ilusão de aceitação e privilégio.

Essa tentativa de sentir-se pertencente a um grupo social, a fim de ser acolhido e estabelecer relações baseadas em afinidades, é uma luta quase que diária para alguns homens gays, talvez a maioria, especialmente para as gerações que hoje estão com mais de 30 anos.

Desde o momento que identificamos nossa orientação sexual dissidente, existe uma cobrança pessoal para encontrarmos, mesmo que ilusoriamente, um ponto de segurança e conforto: ser bom em tudo que fazemos.

A necessidade de excelência

É uma forma de chamar atenção às qualidades que levamos, a fim de ofuscar nossa sexualidade e estabelecermos relações possíveis, nem sempre sinceras em sua completude. É a necessidade de ser o “melhor em tudo”, seja na busca de uma segurança financeira, ou minimamente conquistar relações que possam nos apoiar, considerando que nem sempre temos uma família que nos aceita e acolhe.

No final, estamos tão focados em garantir nossa existência e representatividade, buscando um futuro digno e sem discriminação, que nos sobra pouco tempo para refletirmos sobre o nosso envelhecimento. E esse desafio se soma a tantos outros, numa tentativa de nos mantermos íntegros e seguros, para no fim, desfrutarmos de uma velhice incerta, ou como nas palavras de Beauvoir, imprevista.

É preciso rever nossos acordos com o tempo e, com isso, avaliarmos atitudes que reproduzimos e talvez pouco ressoem com quem realmente somos.

Envelhecer para os homens gays, e estendo essa reflexão a toda comunidade LGBTQIA+, é como resistir a uma sociedade que diariamente tenta nos manter nas fissuras, sem ocupar espaços sociais e de representatividade que são nossos por direito.

Diego Felix Miguel, doutorando em Saúde Pública pela USP, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – Seção São Paulo e Gerente do Convita – serviço de referência para atendimento de pessoas idosas imigrantes e descendentes de italianos. Escreve a convite do Blog do Mílton Jung.

Use o seu Imposto de Renda para ajudar crianças e idosos, no Rio Grande do Sul

No Brasil, os contribuintes têm a possibilidade de destinar parte do Imposto de Renda (IR) para fundos de assistência a crianças e idosos, com um potencial de arrecadação de R$ 11 bilhões. No entanto, até o dia 8 de maio de 2024, apenas 0,7% desse montante foi efetivamente destinado, alcançando R$ 89 milhões. Desse total, 59% foram direcionados a instituições que atendem crianças e adolescentes, e 40,5% para entidades voltadas a idosos.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lidera a campanha “Se Renda à Infância” para incentivar essas destinações, com a colaboração de diversas entidades, incluindo a Receita Federal e a Associação dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon). O prazo para a declaração do IR encerra-se em 31 de maio, mas foi estendido até 31 de agosto para os residentes do Rio Grande do Sul devido à calamidade pública causada pelas recentes tragédias climáticas.

Importância da Destinação

O juiz auxiliar da Presidência do CNJ, Edinaldo César Santos Junior, reforça a importância dessa destinação para os Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente (FDCA) no Rio Grande do Sul. Isso é válido tanto para contribuintes com imposto a pagar quanto para aqueles com direito à restituição. Quem já entregou a declaração pode acessar novamente o site da Receita Federal e destinar parte dos impostos para esses fundos.

Cezar Miola, vice-presidente de Relações Político-Institucionais da Atricon, ressalta que essa colaboração não implica nenhum custo adicional para o contribuinte. “Parte dos tributos que iriam para os cofres da União é revertida em benefício direto às populações atingidas pelas inundações, agilizando e ampliando o acesso a serviços essenciais, sobretudo aos vulneráveis”, afirma Miola.

Desempenho dos Estados

O levantamento revela que o Rio Grande do Sul é o estado com maior percentual de destinação, com 1,94%, seguido por Paraná (1,71%) e Goiás (1,65%). No outro extremo, Amapá (0,09%), Pará (0,13%) e Distrito Federal (0,10%) apresentam os menores percentuais. Estados como São Paulo (0,57%) e Rio de Janeiro (0,17%), apesar de terem alta renda per capita, apresentam percentuais baixos de destinação.

Como Destinar

Destinar parte do IR para fundos de crianças e idosos é um gesto de solidariedade que não implica em custos adicionais para o contribuinte. Através dessa ação, é possível contribuir diretamente para melhorar a vida de muitas crianças e idosos, especialmente em um momento de grande necessidade no Rio Grande do Sul.

Para outras informações sobre a campanha “Se Renda à Infância” e como realizar a destinação, visite o site do CNJ: Campanha Se Renda à Infância.

Assim, ao destinar parte do seu IR, você pode transformar tributos em esperança e dignidade para os mais vulneráveis.

A Parada da Longevidade, em SP, convida você a olhar às diversas velhices

Diego Felix Miguel

Foto de Rene Asmussen

Por que falar de longevidade?

A pergunta deveria ser ao contrário: O por quê de não falar?

Penso que envelhecimento e velhice não sejam temas tão encorajadores para serem falados e refletidos socialmente em nosso cotidiano, sendo associados à ausência de beleza, doença, incapacidade e improdutividade. Talvez, por isso, negligenciamos esse aspecto que nos é tão caro: afinal, viver mais anos e usufruir da velhice é uma grande conquista social, apesar de ainda enfrentarmos tantos desafios que podem interferir diretamente nessa fase da vida.

O envelhecimento está em nós desde o nascimento e desejo fortemente que possamos vivê-lo por muitas décadas. Afinal, só deixaremos de envelhecer quando não mais vivermos.

Infelizmente, vivenciar o envelhecimento por muitos anos não é algo que depende apenas de nós. Vivenciamos ao longo da vida várias oportunidades que podem ou não favorecer esse processo, assim como, situações que podem afetá-lo diretamente, como é o caso da pobreza, violência e iniquidade.

A desigualdade social é um dos aspectos que mais preocupam a Organização Pan-Americana de Saúde – a OPAS, que estabeleceu a “Década do Envelhecimento Saudável nas Américas: 2021-2030” como forma de concentrar esforços do Estado e da sociedade, a fim de garantir que as pessoas vulnerabilizadas também tenham seus direitos garantidos para vivenciar uma velhice ativa, digna e saudável.

De acordo com o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo, em 2023, o município de São Paulo apresentou dados alarmantes sobre a média da expectativa de vida em bairros que são relativamente próximos, como é o caso de Jardim Paulista e Itaim Bibi, que estima 82 anos em contraponto à Anhanguera, que chega a 59 anos de idade.

Diante desses dados associados às regiões onde a violência e a pobreza são também desproporcionais, me pergunto: a quem cabe o direito de viver mais?

Sabemos que viver mais não é um triunfo meramente biológico, é também psicossocial, em que todos nós, direta ou indiretamente, somos responsáveis por esse contexto, enquanto cidadãos e cidadãs que vivem em sociedade.

É justamente para esse ponto que a OPAS chama atenção: precisamos ressignificar como vemos a velhice, romper com mitos e estereótipos que reforçam o preconceito e a discriminação em detrimento a idade e demais aspectos que podem nos colocar em condições de vulnerabilidades ainda maior.

Como será a velhice do outro?

A velhice é transversal — ou como dizemos nas Ciências Sociais, intersseccional — aos demais aspectos que compõem nossa identidade e nos colocam em lugares sociais específicos, permeados por oportunidades ou iniquidades.

Como será a velhice de pessoas negras numa sociedade racista? Elas, ao longo da vida, possuem as mesmas condições de acessos à saúde, educação e trabalho que pessoas brancas? Costumamos escutar e acolher suas percepções e vivências sobre esse assunto?

Qual lugar ocupam as mulheres idosas na sociedade? Elas tendem a se cuidar mais ao longo da vida, mas sabemos que também chegam na velhice com maiores complicações de saúde, principalmente com agravos crônicos. A sobrecarga do trabalho e a cobrança social que sofrem são extremamente perversas.

E as pessoas idosas LGBTQIA+? Como chegam na velhice? Quem são as pessoas que envelhecem com elas? Os serviços (e as pessoas que atuam nele) acolhem, respeitam e valorizam a diversidade sexual e de gênero? Quais são suas necessidades sociais e de saúde?

Pessoas idosas que vivem com demências ou com limitações funcionais ou cognitivas possuem acesso ao cuidado adequado? Suas famílias conseguem oferecer o melhor para essas pessoas nesse contexto?

Participe da Parada da Longevidade

Considerando a diversidade de envelhecimento e velhices, a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – Seção São Paulo, alinhada às diretrizes da OPAS, organizou a Parada da Longevidade, que acontecerá na Avenida Paulista, no dia 24 de março às 09h, em frente da FIESP.

É um evento para todas as pessoas de diferentes realidades etárias e socioculturais.

O objetivo é justamente esse: dar visibilidade aos diferentes contextos do envelhecimento que vivemos e das velhices possíveis, assim como, fortalecermos vínculos em uma rede gerontológica composta por diferentes sociedades e conselhos profissionais, serviços sem fins lucrativos voltados às pessoas idosas, gestores de políticas públicas voltadas ao envelhecimento e serviços especializados em atendimento à pessoa idosa.

A programação foi organizada a partir das palavras de ordem  do Relatório Mundial sobre o Idadismo: como pensar, sentir e agir a favor do envelhecimento ativo e saudável.

Informações e inscrições gratuitas aqui

Diego Felix Miguel, doutorando em Saúde Pública pela USP, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – Seção São Paulo e Gerente do Convita – serviço de referência para atendimento de pessoas idosas imigrantes e descendentes de italianos. Escreve a convite do Blog do Mílton Jung.

Conte Sua História de São Paulo: minha imagem na janela do metrô

Por Marcelo Vieira Pinto

Ouvinte da CBN

Foto de Pixabay

Essa história deve ser contada na primeira pessoa, não por prioridade, mas para expressar fielmente a realidade do sentimento. A generosa frieza da humanidade. Acordei lépido, depois de um sono, por minha consideração, longo, de cinco horas ininterruptas e o complemento posterior de mais três.

Um belo desjejum à base de frutas, sanduíche e o querido e esperado café, acompanhado de uma disposição incomum para a prática esportiva. O sentimento era de um senhor vigoroso, equilibrado e me lembro bem da atenção em manter o foco na minha pessoa.

Sai à rua em direção ao metrô Brooklin para cumprir um compromisso. O caminho se apresentava com uma energia colorida pelo sol forte, que esquentava o ambiente, mas o bem-estar interior se sobrepunha a qualquer pensamento negativo.

Entrei no espaço, comprei meu bilhete e caminhei em direção à plataforma. Sentia-me o melhor cidadão paulistano, admirando a simples educação popular nas escadas rolantes e o inesperado respeito ao entrar no vagão. Ambiente com lotação completa, o calor das pessoas era inevitável sentir, embora o ar-condicionado estivesse em perfeito funcionamento.

Subitamente, uma jovem se levanta me oferecendo seu assento. Sua expressão era de uma pessoa caridosa. Sinceramente, meu sentimento foi em direção oposta ao que eu sentia segundos atrás. Inesperadamente, tive a percepção de que transparecia a imagem de um frágil senhor, um idoso que carecia de um assento.

Agradeci, recusei e automaticamente olhei minha figura, que refletia na janela do veículo, e o esforço para encontrar aquele senhor vigoroso foi de certo modo desgastante. Passados alguns minutos, me desloquei para o centro do vagão, quando, acreditem, um senhor obeso, juro, bem obeso, se levanta para me ceder seu lugar.

Desculpem-me, mas é difícil demais andar em equilíbrio. Acho que vou comprar uma bengala para minha cabeça.

Ouça aqui o Conte Sua História de São Paulo

Marcelo Vieira Pinto é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Seja você também personagem da nossa cidade. Escreva seu texto agora e envie para contesuahistoria@cbn.com.br. Ouça outros capítulos da nossa cidade no podcast do Conte Sua História de São Paulo.

Dez Por Cento Mais: os velhos também fazem sexo!

Ilustração da capa do livro “Sexualidade na velhice”

Muitos de nós pensamos no futuro, seja no âmbito profissional seja no pessoal. Mas quantos de nós paramos para refletir sobre como será nossa vida sexual na maturidade? A verdade é que a maioria teme esse tema, visto que vivemos em uma sociedade que hipersexualiza a juventude e frequentemente marginaliza os desejos e necessidades dos mais velhos. A jornalista e escritora Tania Celidonio, por meio de suas pesquisas, derruba tabus e revela uma perspectiva surpreendente e inspiradora sobre a sexualidade na terceira idade. Ela foi entrevistada pelo programa Dez Por Cento Mais, no YouTube.

Tania tem uma longa trajetória no jornalismo, mas foi ao explorar as complexidades da sexualidade na terceira idade que encontrou novas paixões e desafios. Em uma pesquisa ampla, que começou com seu círculo pessoal e se expandiu através das redes sociais, ela coletou cerca de 250 depoimentos sobre o tema. Os relatos, ricos e diversos, revelam uma amplitude de sentimentos, desejos, dúvidas e certezas que muitos preferem esconder por trás de pseudônimos. A pesquisa deu origem ao livro  “Mistérios e aflições da sexualidade na velhice” (Terra Redonda).

O sexo além do desejo físico

Para começar, é preciso entender que a sexualidade não se limita ao desejo físico e ao ato em si. Conforme destacado pela psicóloga Simone Domingues, uma das apresentadoras do programa, a sexualidade envolve intimidade, parceria, entrega e afeto. Essa dimensão profunda e abrangente da sexualidade se torna ainda mais evidente com o passar dos anos, quando a conexão emocional pode se sobrepor ao desejo físico.

Além disso, a pesquisa de Tania revela que muitos idosos sentem alívio ao não ter mais a “obrigação” de desejar constantemente, e conseguem abraçar a intimidade sem o foco exclusivo no ato sexual. Esta é uma revelação esclarecedora para os mais jovens, mostrando que a sexualidade se transforma, mas não desaparece.

Por outro lado, a sociedade ainda carrega muitos preconceitos. Tania citou Simone de Beauvoir, que em 1970 observou que se os idosos demonstrassem os mesmos desejos e sentimentos que os jovens, seriam vistos com desdém ou ridicularizados. Esta percepção parece ainda ressoar em muitas sociedades contemporâneas. No entanto, a questão é: por quê? Por que a sociedade tem padrões tão diferentes para homens e mulheres à medida que envelhecem? 

O preconceito é ainda maior com mulheres

Para as mulheres, o cenário é ainda mais complexo. A menopausa pode trazer consigo uma série de desafios, desde a diminuição do desejo até questões físicas, como ressecamento. Ao contrário dos homens, cujas soluções para disfunção erétil são amplamente discutidas e medicadas, as mulheres enfrentam uma lacuna no tratamento e compreensão de suas necessidades sexuais durante o envelhecimento. 

Talvez o ponto mais revelador de toda a discussão seja o padrão social imposto sobre os idosos, especialmente as mulheres. No universo dos relacionamentos, enquanto homens mais velhos com parceiras mais jovens são muitas vezes vistos como aceitáveis, mulheres mais velhas que expressam atração por homens mais jovens enfrentam julgamentos mais duros. 

O que fica claro na entrevista é que, assim como em qualquer fase da vida, a sexualidade na terceira idade é multifacetada. Não há uma única “maneira correta” de vivenciá-la. O que é essencial é o respeito, a comunicação e a abertura para entender e aceitar as mudanças que ocorrem ao longo do tempo. É preciso desmistificar e normalizar as conversas sobre sexualidade na velhice. Afinal, como bem destacou a jornalista Abigail Costa, “sexualidade é algo tão natural para o ser humano”, e não deveríamos ter vergonha ou medo de discutir, compreender e abraçar essa verdade em todas as fases da vida.

Dica Dez Por Cento Mais

Tania Celidônio, convidada por Abigail Costa e Simone Domingues, deixou sua Dica Dez Por Cento Mais: 

“Envelhecer é difícil. Não vai ser fácil para ninguém. Eu acho que se a gente encarar com bom humor, além do realismo que vem junto fica mais fácil. Porque não é fácil segurar essa onda. A minha dica seria essa. E também apostar na diversidade, porque isso que eu falei, o grande barato para mim foi perceber que a sexualidade tem uma diversidade incrível e a gente pode aproveitar mesmo depois de velho”.

Assista à entrevista no YouTube

Um novo episódio do Dez Por Cento Mais pode ser assistido ao vivo todas as quartas-feiras, às oito da noite (horário de Brasília), no YouTube. O programa também está disponível em podcast, no Spotify. A apresentação e produção é da jornalista Abigail Costa e da psicóloga Simone Domingues.

Envelhecer com dignidade e amor: as reflexões inspiradas pela jornada do Sr. Duílio

Por Diego Felix Miguel

Seu Duilío Rossi em foto de arquivo pessoal

Homens e mulheres envelhecem de maneiras distintas, não  apenas por razões biológicas, mas devido à intersecção entre diversos fatores determinantes pela sociedade e cultura.

É conhecido que a velhice é feminina e cisgênera[1]: as mulheres idosas vivem mais que os homens; muitas são solteiras ou viúvas e estão mais propensas a participar de atividades em grupos, como  centros de convivência, onde a presença masculina é disputada, principalmente em oficinas como Dança de Salão.

Sob uma ótica sociocultural, as mulheres são condicionadas ao cuidado. Se cuidam mais para prover a assistência aos seus familiares e pessoas mais próximas. Isso não quer dizer que envelheçam em melhores condições, visto que acumulam funções ao longo de sua vida, entre trabalho formal, atividades domésticas e atenção à família, e pouco conseguem se dedicar à sua saúde. 

Um outro dado importante é sobre o preconceito do homem em integrar centros de convivência para pessoas idosas. Sem dúvida, envelhecer numa cultura machista, que posiciona o homem como principal responsável por prover o sustento da família e o incentiva a não se cuidar ou ser cuidado, o submete à velhice numa condição de maior vulnerabilidade, mais exposto a doenças incapacitantes e ao isolamento social.

Experiências pessoais e aprendizados no Convita

Nos últimos anos tenho me dedicado à gestão de um centro de convivência e de referência para pessoas idosas imigrantes italianas, o Convita – Patronato Assistencial Imigrantes Italianos. Esse serviço foca duas frentes: o suporte assistencial para pessoas idosas em situação de vulnerabilidade social e a promoção de saúde, com uma programação de atividades que favorecem o bem-estar físico, mental e social.

Com o retorno das atividades presenciais, após a pandemia de Covid-19, o centro de convivência se desenvolveu. Com o crescimento do número de participantes e atividades, tive a oportunidade de conhecer novas histórias que tem contribuído bastante para meu processo de aprofundamento e aprendizagem na área do envelhecimento.

No primeiro semestre deste ano, numa manhã ensolarada de uma segunda-feira, escutei uma conversa entre a equipe sobre um senhor que há poucos dias havia realizado o cadastro e as inscrições para participar dos cursos que oferecemos. O que me chamou atenção foi o entusiasmo dos comentários, dizendo que, em tão poucos dias de participação, ele estava se destacando pela educação e gentileza com que tratava todas as outras pessoas, além de provocar uma atenção especial das mulheres idosas que também frequentam o serviço, a maioria solteira ou viúva.

Decidi conhecer esse senhor e, antes mesmo de sermos apresentados, já o reconheci. Poucos minutos após minha curiosidade ser despertada, ouvimos uma batida na porta de nossa sala e ele pediu permissão para entrar. Era um homem alto, de pele e cabelos brancos, e suas roupas denunciavam a sua vaidade e autocuidado. 

Conheci o Sr. Duílio Rossi, que imediatamente chamou a atenção por sua linguagem culta e gentileza: pedindo licença e desculpas por interromper nossa conversa, tratando-nos por “senhor” e “senhora” e desejando-nos “um bom dia de trabalho”. Naquele momento, notei outro aspecto marcante de sua presença: o brilho em seu olhar e um sorriso que transbordava afeto.    

Desde então passei a reparar com mais refinamento sua postura, principalmente durante as atividades, onde vivia rodeado de idosas. Não associo isso apenas a um aspecto romântico ou sexual, mas à atenção e ao cuidado ao conversar e escutar. Nas interações, ele fazia questão de enfatizar as qualidades da outra pessoa e demonstrava interesse no assunto que estava sendo compartilhado.

A reintegração social do Sr. Duílio

O Sr. Duílio tem 82 anos, é descendente de italiano e conheceu o Convita a partir da indicação de sua filha, a Miriam, uma idosa de sessenta e poucos anos que é sexóloga. Pelo que percebi, ela foi a principal motivadora para que seu pai superasse o luto de 13 anos após a viuvez.

Durante anos ele se dedicou a ficar em casa, onde mora sozinho, mantendo a relação com a família e vizinhos, sem muitas oportunidades de pensar sua vida com novas perspectivas e projetos.

Em algumas semanas de intensa participação no centro de convivência, ele começou um novo relacionamento romântico, dedicando-se a cuidar e permitindo-se ser cuidado. Isso gerou uma significativa mudança nas relações entre as pessoas idosas que também participam das atividades. 

O assunto rapidamente tomou conta das conversas das pessoas idosas e não demorou muito para que outros casais começassem a flertar e a vivenciarem uma nova história.

Esse movimento gerou uma transformação em nosso serviço, uma ressignificação cultural, favorecendo que outras pessoas idosas pudessem compartilhar com muito mais naturalidade e segurança seus sentimentos, receios e desejos, ao viver uma nova fase da vida. Assim, percebemos novas demandas que ainda são desafios a serem superados.

Família, autonomia e a vivência da sexualidade na velhice 

É inconcebível que idosos, com autonomia preservada, peçam autorização da família para viver uma nova paixão, amor ou apenas buscar seu prazer sexual. Esse assunto foi um dos mais comentados quando o novo casal que se formou, que teve apoio da família, tornou pública sua relação. 

Muitas pessoas idosas se tornam reféns de uma convenção social, impedidas de exercerem sua sexualidade de forma livre, por conta do idadismo (estereótipo, preconceito e discriminação por conta da idade), de ideias e posturas conservadoras, baseadas em preceitos moralistas e religiosos. Esses contextos expõem essas pessoas a vulnerabilidades, como violência, doenças e isolamento, além de comprometer a sua autonomia, um dos aspectos relevantes do envelhecimento ativo.

Por isso, é importante falarmos e investirmos em ações que favoreçam a reflexão acerca dos desejos e relações que vivenciamos ao longo da vida, seja em nosso meio familiar, social ou profissional. Não se trata apenas de palestras ou de limitar o assunto à saúde biológica, mas sim, de aproximarmos e valorizarmos oportunidades de novas vivências românticas e sexuais livres de todo e qualquer preconceito, num processo que favoreça o acesso à informação e um diálogo respeitoso e acolhedor. 

Não sabemos ao certo qual o desfecho dessa relação romântica vivenciada pelo Sr. Duílio, pois reconhecemos que é uma questão privada do casal. No entanto, independentemente de quanto tempo dure, essa relação já transbordou e influenciou positivamente muitas pessoas, idosas ou não, promovendo novas percepções e reflexões sobre um tema que ainda é negligenciado. Mostra que é possível vivenciar a sexualidade, seja por meio de uma relação romântica ou sexual, permitindo-se sentir prazer e tudo associado a ele, promovendo saúde. 

[1] Pessoas que se identificam com o gênero atribuído no nascimento.

Diego Felix Migue é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e membro da Diretoria da SBGG-SP, gerente do Convita – Patronato Assistencial Imigrantes Italianos, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP.

Cidade prateada: um em cada cinco é 60+ em SP; e você está pronto para esta fase da vida?

Por Martin Henkel

O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ainda não apresentou o restante dos dados do Censo 2022 com um recorte, por exemplo, da população por faixa etária. Mas a SeniorLab Mercado & Consumo 60+ , que há quase dez anos atua exclusivamente neste segmento, mergulha nos números para projetar o cenário atual no Brasil.

Cruzamos dados do Censo IBGE total por cidades com dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que atualiza mensalmente a quantidade de pessoas vivas na sua base e encontramos o seguinte:

  • No Brasil, 17% da população é 60+
  • No Estado de SP, 21% é 60+
  • Na cidade de São Paulo, 20% é 60+
  • Da população 60+ da cidade de São Paulo, 59% são de mulheres
  • Da população total com 79 anos ou mais, as mulheres são 62%

Ao associar os números com a observação das pessoas interagindo na cidade fica mais fácil entender o motivo de vermos tantos grisalhos em todo o lugar e com comportamentos de consumo bem distintos dos 60+ de dez ou 20 anos atrás.

Esse consumidor que começa a ser mais disputado pelo mercado é um desafio para marcas, produtos e serviços que ainda estão entendendo e aprendendo a como se relacionar com o multivariado grupo etário que, segundo o levantamento realizado pela SeniorLab, teve uma renda total de R$ 1,3 tri no ano passado, no Brasil.

Relação de planejamento financeiro e felicidade

Na “Trilha da Longevidade Brasileira”, que consolida 29 anos da mais duradoura pesquisa de corte populacional sobre o tema no Brasil, conduzida pelo Instituto Moriguchi, um dos 14 platôs de importância para alcançar a vida longa, plena e feliz é a organização financeira

Desde manter um padrão de vida mais próximo possível da época que possuía os maiores rendimentos, passando pelos custos do envelhecimento no que diz respeito ao atendimento médico, hospitalar, medicamentos para controle de doenças comuns aos longevos e, por fim, o cuidado assistido. 

Perceber, pensar nisso, planejar-se e fazer reservas para esta fase é determinante no nível de felicidade que será alcançado.

Vale destacar que um estudo, em mais de 80 países, identificou que a sensação de felicidade das pessoas com 60 anos ou mais é bem superior a das pessoas com 30 ou 40 anos. 

A soma de toda sabedoria, do entendimento de como as coisas funcionam na vida, de ver seus filhos e netos crescendo nas suas carreiras e vidas acaba sendo a grande razão da vida. 

A nota de zero a dez que sua sensação de felicidade vai receber quando tiver seus 60, 70 anos, precisa começar a ser planejada agora. 

Conheça a Trilha da Longevidade Brasileira

Martin Henkel é  CEO da SeniorLab mercado & consumo 60+ e cofundador do Terra da Longevidade Produtos e Negócios. Escreveu este texto especialmente para o Blog do Mílton Jung.

Quem cuidará de nós?

Por Diego Felix Miguel

Foto de Georgy Druzhinin

Quantas vezes tivemos a oportunidade de refletir sobre como estamos envelhecendo? Ou ainda, sobre as condições que teremos na velhice? E aqui tomo a liberdade de problematizar um pouco mais, em não limitar essa reflexão a uma visão estritamente biológica.

Com quem chegaremos na velhice e será que essa ou essas pessoas estarão dispostas ou terão condições de cuidar de nós em caso de necessidade?

O aumento da expectativa de vida é uma conquista e talvez a maior evidência do quanto crescemos cientificamente e em estruturas socioculturais que foram fundamentais para a longevidade.

Relações e cuidados na velhice

Muitas mudanças aconteceram nos últimos anos e não necessariamente foram ruins, muito pelo contrário, comprovam que evoluímos e questionamos condicionamentos que reforçam a desigualdade nas relações de poder, o preconceito e a discriminação. 

As novas composições familiares que não atendem um padrão tradicional e heterossexual, o ingresso da mulher no mercado de trabalho, a migração dos filhos motivados por novas oportunidades de trabalho e estudo, são apenas alguns exemplos desse novo contexto social, que torna diferente o olhar e a vivência sobre o cuidado na velhice. 

Desigualdade social na velhice

Infelizmente, no Brasil, não conseguimos resolver um problema que nos submete a um cenário de insegurança e vulnerabilidade: a desigualdade social; aspecto que nos últimos anos têm preocupado a Organização Pan-americana de Saúde, por considerar que na velhice podem surgir demandas complexas que necessitem de cuidados de longa duração, seja em âmbito domiciliar, em serviços de saúde ou de assistência social.

Os cuidados de longa duração, de modo geral, são os cuidados que demandam uma atenção especializada ou de auxílio de outras pessoas – em caráter de cuidadores, atuando no controle de doenças crônicas, reabilitação, residência e demais assistências que garantam a independência, a autonomia e uma maior qualidade de vida na velhice.

Políticas públicas e família

Por outro lado, políticas públicas com foco nos cuidados de longa duração caminham lentamente, e muitas vezes, com discursos que reforçam uma ideia pejorativa sobre os serviços, atribuindo à família a responsabilidade do cuidado, desconsiderando sua composição, a intensidade das relações e os vínculos afetivos constituídos ao longo da vida entre seus membros. Como mencionado na Constituição Cidadã de 1988:

“Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores,

e os filhos maiores têm o dever de ajudar

e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de

amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação

na comunidade, defendendo sua dignidade e

bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

§ 1o Os programas de amparo aos idosos

serão executados preferencialmente em seus lares.”

Cuidados de longa duração

Um exemplo disso são as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) – que antes eram conhecidas por “asilos”, e que trazem em sua história um estigma associado ao abandono, pobreza, solidão e incapacidade.

Além dos aspectos culturais que nos distanciam desses serviços, ainda nos deparamos com fatores econômicos, pois são serviços caros por demandarem um cuidado especializado.

No Mapa das ILPI do Ministério Público de São Paulo, consta que existem cerca de 2257 instituições no estado de São Paulo que acolhem aproximadamente 42 mil pessoas idosas, porém somente 498 dessas instituições são filantrópicas – a maioria de caráter religioso e 48 instituições são públicas.

Desafios do cuidado domiciliar

Ao pensarmos no cuidado da pessoa idosa em casa, também enfrentamos outros desafios, e neste sentido, darei ênfase a dois deles: como estamos vivendo mais, já é uma realidade conhecermos pessoas idosas que cuidam de outras pessoas idosas. Sejam cônjuge ou filhos que cuidam de pais – e vice e versa. Sabemos que há poucas estruturas de apoio para essas pessoas, que muitas vezes sofrem por sobrecarga de atividades e estresse.

Por outro lado, aumentaram significativamente empresas e profissionais que se dedicam ao cuidado de pessoas idosas, porém além de envolver um custo que muitas famílias não possuem condições de arcar, ainda não há a regulamentação dessa profissão, assim como, uma estrutura formal mínima pedagógica que padronizem a formação profissional.

Nos últimos anos, as questões relacionadas ao cuidado a pessoas dependentes, principalmente de pessoas idosas, estão tomando uma maior notoriedade pública, muitas dessas, que emergiram em decorrência da pandemia de covid-19 onde revelou o Brasil como um país idadista, que não valoriza as pessoas mais velhas, em especial, as que demandam de cuidados de longa duração e que vivem em ILPI, que, ainda estão invisíveis paras as políticas públicas brasileiras, conforme aponta a Carta-manifesto “Quem vai cuidar de nós quando envelhecermos?”, lançada em maio de 2023, em menção ao Decreto nº 11.460 de 30 de março de 2023, que instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar a Política Nacional de Cuidados e o Plano Nacional de Cuidados, onde, de acordo com governo, serão consideradas as desigualdades sociais, com recortes relacionados a raça e classe social.

Engajamento e futuro da velhice

Pensar sobre quem cuidará de nós, caso tenhamos essa necessidade em algum momento da vida, é fundamental, assim como, nos engajarmos politicamente, enquanto sociedade civil, para garantir que num futuro próximo, possamos vivenciar a velhice de uma forma digna, com acesso garantido aos cuidados especializados.

Diego Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e membro da Diretoria da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo