Algumas frases atravessam os séculos e parecem ganhar vida nova a cada vez que são pronunciadas. “Si vis pacem, para bellum” — “se queres a paz, prepara-te para a guerra” — é uma delas. Wálter Fanganiello Maierovitch a toma como ponto de partida em “O Mercado da Morte: conexões e realidades” e a conduz até o presente, quando já não soa como advertência, mas como justificativa para uma engrenagem global que transforma guerras em negócios.
A opinião do autor, meu amigo de décadas, é direta: o que se convencionou chamar de “indústria de defesa” nada mais é do que a indústria da guerra, abastecida tanto por Estados quanto por traficantes, mercenários e organizações criminosas. Ao longo do livro, desfilam personagens emblemáticos, como Sarkis Soghanalian, o “Mercador da Morte”, e grupos como o Wagner, que na África trocam armas por diamantes. A fronteira entre interesses de Estado e crime organizado se dilui, revelando um mercado em que tudo se compra e se vende, inclusive vidas.
Outro eixo forte da obra é a espionagem. Maierovitch descreve como a “inteligência de Estado” se tornou prática oficializada, mas muitas vezes serve de cortina para assassinatos seletivos e negociações obscuras. O Mossad, a CIA, a Abin — cada qual aparece como peça de um tabuleiro no qual soberania e direitos humanos são frequentemente atropelados.
O livro não poupa as instituições internacionais. Meu colega do quadro “Justiça e Cidadania”, do Jornal da CBN, insiste que a primeira vítima das guerras é o Direito Internacional Público. O Tribunal Penal Internacional e a Corte Internacional de Justiça aparecem como instâncias frágeis, incapazes de conter crimes de guerra ou genocídios. Em vez de freio, funcionam como palco simbólico, em que ordens de prisão são ignoradas e Estados seguem agindo impunes.
Maierovitch traz ainda para o centro da narrativa os conflitos contemporâneos — Rússia e Ucrânia, Israel e Hamas, a escalada com o Irã — tratados como laboratórios do “mercado da morte”. Drones, sistemas de defesa, armas nucleares, propaganda: tudo é testado em campo, e o lucro das empresas cresce na mesma proporção da destruição.
A “Coda” final sintetiza a visão impetuosa do autor. Citando Lampedusa, ele lembra que é preciso mudar tudo para que tudo permaneça como está. O que vale para a política italiana de O Leopardo serve também para o mercado da guerra: mudam-se os atores — gattopardos, leões, chacais ou hienas —, mas a engrenagem continua a mesma. O exemplo do Haiti, onde grupos armados dominam a capital, funciona como alerta de que não se trata apenas de conflitos entre Estados, mas de colapsos sociais que a comunidade internacional se mostra incapaz de conter.
“O Mercado da Morte” é um livro que incomoda, porque mostra que a paz armada é, no fundo, um grande negócio. A leitura sugere que a indignação é o mínimo que nos cabe diante de um sistema que se perpetua à luz do dia. E Maierovitch nos entrega todo esse conteúdo embalado em um texto escrito com esmero. Não me surpreendo: o autor já foi agraciado com o Prêmio Jabuti, o mais tradicional prêmio literário do Brasil, concedido pela Câmara Brasileira do Livro, com a obra “Máfia, poder e antimáfia — Um olhar pessoal sobre uma longa e sangrenta história”.
Participe do lançamento de “O Mercado da Morte”.
O livro “O Mercado da Morte: conexões e realidades” (Editora Unesp) será lançado no “Encontro com os escritores”, promovido pela Universidade do Livro, nesta sexta-feira, dia 26 de setembro, às 19h, na Biblioteca Mário de Andrade, na rua da Consolação, 74, centro de São Paulo. Para participar, faça aqui a sua inscrição, de graça. Eu terei o privilégio de mediar esta conversa com Wálter Fanganiello Maierovitch.
Foi um gesto rápido, quase instintivo. No último fim de semana, durante o US Open, o tenista polonês Kamil Majchrzak decidiu coroar uma vitória de virada presenteando um garoto, chamado Brock, que estava na plateia, com o chapéu que usara na partida. O menino, nas primeiras fileiras, esticou a mão, mas um adulto avançou antes dele e pegou o boné.
O vídeo do momento se espalhou como pólvora. O homem foi identificado como Piotr Szczerek, CEO da empresa polonesa Drogbruk. Bastaram alguns segundos de exposição para que ele se tornasse um dos personagens mais criticados da internet.
Pressionado, Szczerek pediu desculpas públicas, admitindo o erro e explicando que acreditava que o boné era para seus filhos. Devolveu o chapéu, enviou presentes para Brock e publicou uma retratação. O caso parecia resolvido — mas estava apenas começando.
A fúria da internet
A viralização do vídeo acendeu uma reação coletiva. Milhares de comentários, mensagens e avaliações negativas tomaram as redes sociais. Porém, num detalhe que passou despercebido, parte dessa fúria foi mal direcionada: os “justiceiros digitais” confundiram a Drogbruk, empresa de Szczerek, com a Drog-Bruk (com hífen) — outra companhia de pavimentação polonesa, sem relação alguma com o episódio.
O dono da Drog-Bruk, Roman Szkaradek, acordou no dia seguinte ao jogo com mensagens de estranhos o chamando de “ladrão de chapéu”. Em poucas horas, seus perfis pessoais e os canais da empresa foram inundados com ataques, xingamentos e até ameaças.
“Sou um empreendedor honesto. Construí minha marca por mais de uma década, e, em dois dias, ela foi destruída”, disse Szkaradek ao New York Times.
O bombardeio de avaliações negativas derrubou a reputação online da Drog-Bruk para 1,2 estrelas. Telefone e redes sociais ficaram incontroláveis. Mesmo explicando que não tinha qualquer ligação com o episódio, Roman viu suas tentativas de defesa apenas multiplicarem as ofensas.
Troca de identidades
O equívoco se deu por um detalhe quase imperceptível: Drogbruk e Drog-Bruk são nomes parecidos, separados apenas por um hífen, mas pertencem a empresas distintas, com sedes a mais de 160 quilômetros de distância uma da outra.
Enquanto Piotr Szczerek tentou contornar o erro e reparar o dano com o garoto, Roman Szkaradek segue tentando salvar sua própria reputação — atingida por algo que não fez.
Um especialista ouvido pelo NYT resume bem o fenômeno:
“A internet adora um pouco de caos. E adora ainda mais punir”, afirma Felipe Thomaz, professor da Universidade de Oxford.
O preço do tribunal digital
O episódio evidencia como a reação coletiva nas redes sociais pode atropelar fatos e transformar inocentes em vilões. Um gesto impensado de um adulto virou um incêndio virtual que consumiu duas reputações: a de quem errou — e se desculpou — e a de quem nunca sequer esteve lá.
O garoto Brock, por sua vez, recebeu o chapéu de volta, presentes do tenista e, provavelmente, um aprendizado precoce sobre a velocidade com que a internet transforma histórias simples em tempestades globais.
Até este momento não se tem registro de que os “justiceiros virtuais” tivessem assumido o erro dos ataques indevidos.
Com as férias escolares, um programa comum entre as famílias nesse período é ir a restaurantes e, normalmente, estes oferecem em uma sessão do cardápio opções direcionadas ao público infantil, geralmente chamando essa parte de menu kids.
Repercutiu na mídia o caso da estadunidense Vanessa, que pediu um dos pratos ofertados no cardápio infantil do hotel em que estava hospedada. Em postagem na sua conta do TikTok, ela relatou que a garota que levou o pedido até o quarto, ao chegar, à perguntou onde estava a criança.
Afirmou a hóspede que pediu o prato infantil pois gostava da estética das porções preparadas para crianças no Japão e não via problema em um adulto escolher as opções do cardápio kids.
No caso de Vanessa, ocorreu apenas a reação da funcionária do hotel, entretanto, na sessão de comentários, uma usuária relatou sua experiência com cardápio infantil, na qual o restaurante se negou a vender um prato do menu kids para a sua filha de 13 anos, que preferia os pratos para crianças.
Alguns restaurantes determinam qual a idade permitida para o consumo dos itens do cardápio infantil, porém ela pode variar. De acordo com o artigo 2° do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8069, promulgada em 1990, “considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.
Tendo em vista a idade legal para ser considerado criança, os restaurantes podem proibir a venda de pratos determinados pelo cardápio kids para os consumidores que tiverem doze anos completos ou mais?
O Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8078, promulgada em 1990, considera a conduta descrita anteriormente como prática abusiva, pois o restaurante não pode se negar a vender qualquer produto que seja ofertado a quem se disponha a pagar, muito menos baseado em usos e costumes, conforme dispõe a lei:
Art 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
II – recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes;
IX – recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais.
Acerca do tema, as passagens do livro Código de Defesa do Consumidor Interpretado elucidam a aplicação das normas:
“Como já visto, a oferta vincula o fornecedor e integra o contrato. Logo, um anúncio, um panfleto, ou mesmo a exibição em uma prateleira. Constituem formas de ofertas que vinculam o fornecedor e outorgam ao consumidor o direito de aceitação (e o consequente direito de realização do negócio), independentemente de qualquer outro aspecto.
Deste modo, o dispositivo, em primeiro lugar, proíbe a recusa de venda com fundamento em pretextos discriminatórios de qualquer espécie. Traduz, portanto, a aplicação do preceito isonômico em sede de relações de consumo”. (SERRANO; ALVES, 2018, p. 200) “A recusa de venda de bens ou a prestação de serviços foi alçada à condição de prática abusiva.
Nesse ponto, a finalidade do dispositivo está em sintonia com os propósitos da Lei Antitruste e com a Lei de Crimes contra a Economia Popular. O fornecedor, possuindo mercadoria em estoque, não pode recusar-se a vendê-la a quem disponha a comprá-la mediante pronto pagamento. O dispositivo, no entanto, ressalva os casos de intermediação regulados em lei especial, como algumas espécies de corretagem”. (SERRANO; ALVES, 2018, p. 202).
Sendo assim, observando os dispositivos legais e a interpretação dos autores, concluímos que o restaurante não pode negar a venda de itens do cardápio infantil nem ao adolescente que tenha acabado de completar 12 anos, ou ao adulto com mais de 40 anos que não está com tanta fome, por exemplo, pois, a partir do momento que o fornecedor oferta algo no cardápio, ele deve vender para quem estiver disposto a pagar.
Rodolfo Estevam Correa Gibrail é estudante de Direito e estagiário da Defensoria Pública de SP
Por Caroline Burle, Mariana Chaimovich e Thaís Zappelini
Ilustração criada pelo Dall-E
Apesar dos crescentes esforços em favor da igualdade de gênero, a disparidade salarial entre homens e mulheres ainda é uma incômoda realidade. Na classificação do Fórum Econômico Mundial, no relatório “Desigualdade de gênero de 2023”, o Brasil ocupa a 57ª posição dentre os países pesquisados, com um score de 0,726 — atrás de vizinhos como Bolívia, Suriname, Colômbia, Argentina e Peru. O ranking vai de 0 a 1: quanto mais perto de 1, mais próximo o país está da igualdade de gênero.
Esse contexto muitas vezes é agravado pelo nascimento dos filhos. Depois de se tornarem mães, as mulheres têm seus salários e participação no mercado de trabalho reduzidos. Os impactos da maternidade continuam a reverberar depois do nascimento da criança, de maneira que, mesmo após 10 anos, os salários das mães não retornam ao patamar pré-nascimento (GONÇALVEZ; PETTERINI. 2023).
A problemática do trabalho de cuidado feminino ainda é um grande desafio para a permanência das mulheres no mercado de trabalho, e tem consequências em suas escolhas de carreira, pessoais e financeiras. Segundo o IBGE (2023), a diferença de remuneração entre homens e mulheres voltou a subir no país e atingiu 22% no fim de 2022. As mulheres brasileiras recebem, em média, 78% do que ganham os homens.
Além disso, há o fenômeno teto de vidro nas organizações brasileiras: as mulheres até conseguem se colocar no mercado de trabalho, mas não ascendem para cargos de comando das empresas. Exemplo disso são os dados apresentados pelo levantamento “Panorama Mulheres 2023”, realizado pelo Talenses Group em parceria com o Insper, mostrando que as mulheres representam somente 17% dos CEOs do país.
Diversos fatores interconectados dificultam uma mudança. Muitas organizações têm estruturas culturais e sistemas de liderança historicamente dominados por homens, o que pode resultar em preconceitos inconscientes ou explícitos contra mulheres. Esses vieses influenciam promoções e seleções para cargos de alto escalão. As mulheres frequentemente enfrentam desigualdades de oportunidades ao longo de suas carreiras, incluindo menor acesso a mentorias, networking, assim como a treinamento de liderança.
Para abordar o fenômeno do teto de vidro de forma eficaz é necessário um esforço conjunto de organizações, governos e sociedade. Isso inclui a implementação de políticas de igualdade de gênero, programas de desenvolvimento de liderança para mulheres, mudanças culturais nas empresas, bem como o reconhecimento e combate às desigualdades econômicas e raciais que podem agravar essa questão. Diversidade e inclusão devem ser prioridades para impulsionar o sucesso das organizações em um mundo cada vez mais global e diversificado.
Pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV, 2016) verificou que, após 24 meses do retorno da licença-maternidade, 50% das mulheres simplesmente saem do mercado de trabalho. A maior parte das demissões ocorre sem justa causa e por iniciativa do empregador. Estudos mais recentes seguem apontando índices alarmantes: levantamento mostra que 56% das profissionais entrevistadas já foram desligadas ou conhecem outra mulher que foi demitida após a licença-maternidade (Empregos.com, 2023).
As gestantes e as mães, sobretudo com filhos pequenos, invariavelmente sofrem com recusa de promoções, perda de oportunidades de carreira e até mesmo demissões injustas. Isso é, muitas vezes, resultado de equivocados estereótipos de que mães não são comprometidas com suas funções. Para promover uma percepção mais inclusiva da maternidade no mercado de trabalho, é crucial que haja ações e iniciativas por parte do poder público e do terceiro setor, além de mudanças nas empresas.
Algumas ações já estão sendo feitas, como a transformação paulatina da cultura corporativa. Isso envolve educação e sensibilização sobre a discriminação de gênero e maternidade no local de trabalho. Campanhas de conscientização podem ajudar a combater estereótipos. A flexibilidade no trabalho, também. Outra ação importante são os programas de desenvolvimento profissional de liderança e mentorias específicos para mulheres que são mães.
Além disso, é necessário tratar da “economia do cuidado” de forma mais ampla, com maior compartilhamento de direitos e deveres entre homens e mulheres. Regulamentar a licença-paternidade de forma obrigatória e remunerada, e equipará-la à licença-maternidade, é essencial para garantir o direito das crianças de terem pais presentes e participativos desde o início das suas vidas, assim como trazer inúmeros benefícios à sociedade.
A Constituição prevê a licença-paternidade em seu art. 7º, XIX, mas reservou sua regulamentação à lei ordinária. O que tem permanecido em nosso contexto é o prazo de somente cinco dias para o gozo da licença, estipulado pela CLT e Art. 10, § 1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Sem uma licença parental para que homens e mulheres possam cuidar dos filhos, será muito difícil mudar o cenário atual.
O mesmo texto constitucional que estabeleceu provisoriamente cinco dias para a licença-paternidade determinou, de maneira definitiva, o prazo de 120 dias para a licença a ser usufruída pelas mães. Este prazo é 24 vezes superior ao estabelecido para a licença-paternidade. Não há dúvidas das necessidades fisiológicas e psicológicas de mães, que precisam estar ao lado de seus filhos recém-nascidos durante esse período. No entanto, a criação de vínculos afetivos com os pais nos primeiros meses de vida da criança impacta seu desenvolvimento cognitivo e emocional, além de estar relacionada ao bem-estar da família como um todo.
A transformação cultural de compartilhamento da responsabilidade do cuidado entre homens e mulheres, assim como a redução da descriminação feminina no trabalho, será proporcional à redução da diferença entre a duração das licenças parentais. Um modelo progressivo de aumento da duração da licença pode ser importante para promover, com sucesso, a adaptação necessária dos impactos no orçamento assim como a transformação cultural.
Quando se fala de paternidade ativa, se discute que uma licença-paternidade é imprescindível para dar essa oportunidade aos homens, pois a maioria deles quer participar de forma mais efetiva da rotina familiar, não só sendo provedor. Além disso, a licença-paternidade é necessária para atingir-se a equidade de gênero. Trata-se, portanto, de um conjunto de iniciativas que precisam ser conectadas para expandir, de forma positiva, essas políticas públicas e mudanças legislativas que precisam avançar no Brasil.
Caroline Burle é executiva com mais de 15 anos de experiência, especialista em governança multissetorial e advocacy. Ela mantém um compromisso com iniciativas de Diversidade, Equidade e Inclusão. Possui mestrado em Governo Aberto pela UNESP.É co-fundadora da ONG LiBertha.org.
Mariana Chaimovich é advogada, legal advisor no ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário), Doutora pelo Instituto de Relações Internacionais da USP e Mestra em Direito Internacional pela mesma instituição.
Thaís Duarte Zappelini é advogada, consultora de Relações Governamentais no ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário), pós-doutoranda no Lemann Center for Brazilian Studies (University of Illinois, Urbana-Champaign), Doutora e Mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).
O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, está prestes a tomar uma decisão crucial sobre a autorização da quebra de sigilo bancário e fiscal do ex-presidente Jair Bolsonaro e da ex-primeira dama Michelle Bolsonaro. O pedido foi feito pela Polícia Federal após uma operação que investiga a venda de joias com dinheiro vivo no exterior.
O jurista e ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior, em entrevista ao Jornal da CBN, ressaltou que o comportamento de um grupo em torno do ex-presidente, que estaria envolvido em práticas de fake news e comprometimento das urnas eletrônicas, poderia justificar a prisão preventiva — tema que ganhou maior projeção, na sexta-feira, a partir do cerco da Polícia Federal a ex-assessores e pessoas do circulo pessoal de Bolsonaro. Além disso, mencionou a importância de se seguir o rastro do dinheiro para entender onde ele foi depositado e se há tentativas de impedir a produção de provas.
Reale Junior destacou a necessidade de quebrar o sigilo bancário e fiscal para seguir o dinheiro e explicou que a utilização de dinheiro em espécie nas negociações pode dificultar o processo de investigação. Ele apontou que a busca por ocultar valores e bens, além das trocas de e-mails mencionadas na entrevista, justifica a quebra de sigilo para obter informações relevantes.
O ex-ministro da Justiça também abordou a pressão sobre a empresa americana envolvida na exportação das joias, levantando questões sobre sua ciência da ilegalidade e o rigor das fiscalizações nos Estados Unidos.
Quanto ao ato em defesa da democracia ocorrido há um ano no Brasil, em 11 de Agosto, o jurista afirmou que essa movimentação foi crucial para alertar a sociedade sobre os riscos que o país enfrentava nas mãos do então presidente Jair Bolsonaro. Reale Jr foi um dos líderes daquele movimento e salientou a ampla manifestação da sociedade civil e a participação de diversos setores, incluindo sindicatos, estudantes, bancários e empresários, que se uniram para reagir contra o que consideravam um golpe.
A entrevista com Miguel Reale Júnior evidencia a importância do desenrolar da investigação das joias e do papel do Supremo Tribunal Federal em tomar decisões fundamentais para o desdobramento do caso. A quebra de sigilo bancário e fiscal emerge como um passo crucial para a compreensão dos fluxos financeiros envolvidos nas transações das joias e possíveis tentativas de obstrução das investigações.
“Empresas que tem mais mulheres, e mais mulheres na liderança tem 30% a mais de lucro e têm mais chance de sair de uma crise”.
Cláudia Securato, advogada
“Filha única” de uma família de quatro irmãos, com uma pai “complicado” – seja lá o que isso possa significar -, e sem jamais ter acatado a ideia de que cuidar da casa é coisa de mulher. Cláudia Securato levou à advocacia o legado desse desafio que se impôs em criança. Hoje, lidera um escritório que é predominantemente feminino e se dedica a estudar o tema da igualdade de gênero – ela é sócia do Securato & Abdul Ahad Advogados. Foi esse o foco de seu mestrado de Direito na FGV, em São Paulo, e o assunto da nossa conversa no Mundo Corporativo, da CBN. Que fique claro, Cláudia está à frente de tantas outras causas jurídicas quantas forem possíveis e interessantes, assim como jamais imaginou ser advogada de uma “nota só”. Porém, especialmente depois da maternidade entendeu que havia a necessidade de ajudar às pessoas a se conscientizarem da existência das diferenças de tratamento e da importância de combatê-las:
“Eu vi mulheres brilhantes desistindo de tudo, desistindo exatamente por sentir as discriminações, por sentir os assédios, por sentir as microagressões, por sentir que não iam conseguir lidar com essa desigualdade”.
O desrespeito não aparece necessariamente no salário que homens e mulheres com funções e responsabilidades iguais recebem. Nesse caso, a folha de pagamento da empresa deixa explícita a desigualdade. A discriminação é menos perceptível no cotidiano do trabalho, no comportamento que as pessoas dedicam, na falta de espaço para a fala da mulher e nas promoções que são realizadas. A maternidade, por exemplo, segue sendo uma barreira para muitas profissionais, especialmente as com menos escolaridade. De acordo com o IBGE, 40% das mulheres com 14 anos ou mais de estudo não têm filhos; enquanto apenas 20% das mulheres com três anos de estudo não têm filhos. A medida que têm mais conhecimento, essas mulheres preferem deixar a maternidade de lado para seguirem crescendo profissionalmente.
Outro ponto que aflige às mulheres, de acordo com Cláudia, são os assédios sexual e moral, que mesmo coibidos por lei não deixam de se realizar nos ambientes de trabalho. Apesar de haver jurisprudência na punição a esses atos, ela diz que são centenas de juízes e desembargadores que podem dar decisões completamente diferentes conforme a queixa — centenas de juízes e desembargadores homens, faço questão de lembrar, para deixar evidente como os vieses, inconscientes ou não, pesam nessas decisões, em prejuízo às mulheres.
“Sem dúvida, existe viés de gênero e nas decisões judiciais existe inclusive um protocolo de julgamento com perspectiva de gênero que é uma recomendação do CNJ – Conselho Nacional de Justiça para que os juízes magistrados entendam e olhem com outras lentes as questões que envolvem raça, gênero, diversidade religiosa e todas as outras questões que a gente vem tratando por aí. Então, existe sim um movimento para isso, mas também não é uma obrigação. O CNJ recomenda que exista uma tela, um olho para igualdade de gênero e para raça nos julgamentos”.
O Governo Lula apresentou no dia 8 de Maio projeto de lei que reforça o direito a igualdade salarial entre homens e mulheres e pune o empregador com multa equivalente a dez vezes o maior salário desembolsado pelas empresas. Multa que dobra diante da reincidência. Cláudia, no entanto, alerta: esse valor vai para o cofre da União e não para a mulher discriminada. Mesmo considerando que esse dinheiro deverá ser usado nos programas de amparo ao trabalho, ela defende que parte desse valor beneficie a mulher que foi vítima da desigualdade. A despeito de melhorias que a legislação precisa, Cláudia vê de forma positiva a criação, por exemplo, de um grupo de trabalho no governo, com participação da sociedade civil, que poderá avançar nos aspectos que ainda impedem que a igualdade de gênero se realize.
Alguns números que surgiram na nossa conversa e gostaria de compartilhar com você:
O Fórum Econômico Mundial identificou que existe uma diferença salarial entre homens e mulheres de 40%, no mundo;
As mulheres levarão 70 anos para alcançar a igualdade salarial, conforme estudo da Universidade de Coimbra com a OIT — a Organização Internacional do Trabalho
Um estudo global diz que empresas que têm mais mulheres e mais mulheres na liderança têm 30% a mais de lucro e tem mais chance de sair de uma crise (sim, eu já escrevi isso lá no alto, mas repito para não esquecer)
E se nada disso o convence da necessidade de juntos lutarmos por essa igualdade, pense no dinheiro que seu negócio está perdendo: mulheres são 54% da força de trabalho no Brasil e são grandes consumidoras;
Algumas dicas de como eu e você podemos participar desta transformação:
Olhe as pessoas que estão trabalhando com você
Entenda o sentimento delas no ambiente de trabalho
Exercite a escuta ativa (talvez você não tenha percebido, mas há microagressões se realizando aí na sua empresa)
Conscientize-se da necessidade de mudar este cenário
“Endereçar o tema! Eu acho que a conscientização é mais importante. A pessoa que está preocupada com isso, ela tem muito mais chance de acertar do que a pessoa que tá achando que isso é desnecessário, que a gente já tá em 2023 e não precisa mais falar disso, que as mulheres já chegaram lá. Não é verdade!”
Para saber mais, assista agora à entrevista completa do Mundo Corporativo que tem as participações do Renato Barcellos, do Bruno Teixeira, da Priscila Gubiotti e do Rafael Furugen:
Foto: Russell Watkins/Department for International Development/UK
“Só percebemos a importância da nossa voz
quando somos silenciados”
Malala Yousafzai
Em outubro de 2012, uma garota paquistanesa de apenas 15 anos foi baleada na cabeça após sair da escola. O motivo? Ela lutava para que as meninas e mulheres de seu país, que sofria a influência do Talibã, pudessem estudar. A história de Malala ficou conhecida em todo o mundo, mas, infelizmente, com a tomada de Cabul pelo grupo extremista nos últimos dias, crianças e mulheres parecem viver um pesadelo.
Durante o regime do Talibã no Afeganistão, entre 1996 e 2001, além da proibição de algumas atividades, como leitura de determinados livros e acesso à internet, o uso da burca passou a ser obrigatório e o direito de trabalhar, estudar ou receber assistência médica foi negado às mulheres, que não mais podiam sair sozinhas sem a presença de um homem para acompanhá-las.
Ao longo da história da humanidade, as mulheres enfrentaram situações de perseguição, exclusão e humilhação em diversos contextos. Na Idade Média, por exemplo, muitas foram mortas queimadas, acusadas de feitiçaria ou bruxaria porque questionavam o sistema tradicional da época. Na renascença, podiam trabalhar, mas havia uma desvalorização de sua inclusão, com salários inferiores aos dos homens.
O próprio Darwin foi responsável por difundir a ideia, errônea e sem nenhum embasamento científico, de que as mulheres seriam inferiores aos homens, tanto nas questões mentais como físicas. Isso possibilitou o surgimento de uma teoria popular que afirmava que se as mulheres fossem expostas à educação superior, sofreriam danos físicos e emocionais que colocariam em risco as condições biológicas necessárias para a maternidade. Essa crença era tão forte, que até o século XIX, mulheres não eram aceitas em Universidades, mesmo na Europa ou nas Américas.
Assim como Malala, algumas mulheres também lutaram para conquistar a mesma liberdade dos homens. Olympe de Gouges, na época da Revolução Francesa, propôs a Declaração de Direitos da Mulher. Foi guilhotinada em 1793. Na Inglaterra, Mary Wallstone Craft publicou, em 1792, o artigo “Reivindicação dos direitos da mulher”, solicitando a participação política das mulheres e o acesso irrestrito à educação formal.
Diante da possibilidade de privação à liberdade e a todos os direitos das mulheres do Afeganistão, temos um sentimento de impotência que nos assola.
Vozes que são silenciadas. Esperanças destroçadas.
Enquanto pessoas correm tentando sobreviver em meio à fuga do inferno, infelizmente, alguns ainda insistem em ecoar gritos pedindo ditaduras. Cada um tem as suas prioridades…
Que nossas vozes extrapolem as fronteiras e possam representá-las. Que as nossas ações possam ser aquilo que as fortaleça. Para que não caiamos na indiferença ao seu clamor oprimido e façamos valer a máxima: “mexeu com uma, mexeu com todas”.
Simone Domingues é Psicóloga especialista em Neuropsicologia, tem Pós-Doutorado em Neurociências pela Universidade de Lille/França, é uma das autoras do canal @dezporcentomais no Youtube. Escreveu este artigo a convite do Blog do Mílton Jung
Reprodução do vídeo da entrevista com Gilmar Mendes no Jornal da CBN
Que Gilmar Mendes não gosta de Marco Aurélio de Mello —- e vice-versa —- qualquer rábula sabe bem. O próprio Mello, que aposentou a toga, na hora de se despedir definiu a relação com Mendes como sendo uma convivência judicante .. e apenas judicante. Aos demais falou em convivência fraterna. A despeito disso, na entrevista desta segunda-feira, ao Jornal da CBN, o agora decano do STF Gilmar Mendes foi bastante comedido nas palavras de despedida ao dizer apenas que desejava felicidades a Marco Aurelio.
Nos 22 minutos de entrevista, Gilmar Mendes, falando de Portugal, mediu palavras, mas não deixou de dar seus recados. Ficou claro que não esqueceu ainda seus confrontos com o ex-PGR Rodrigo Janot —- com quem travou embates verbalmente violentos na época da Lava Jato. Por outro lado, foi ameno ao comentar sobre o fato de o atual procurador, Augusto Aras, ser bastante sintonizado com o presidente Jair Bolsonaro.
Sobre Bolsonaro, com quem diz dialogar, Gilmar Mendes entende que o presidente não é um risco à democracia, apesar das constantes críticas ao STF, ao Senado e outras instituições. Para ele o presidente fala para os convertidos.
O problema —- e aí não é mais Gilmar falando, sou eu comentando —- é que ao manter esse discurso bélico a ponto de dizer que ou tem voto impresso ou não tem eleição, o presidente incita os convertidos. Nesse ponto parece que Gilmar concorda:
“É notório que muitos dos adeptos do presidente estão usando esta questão (do voto impresso) para incitar tumultos”.
Justiça seja feita, se há um ponto em que Gilmar Mendes discorda abertamente do presidente Bolsonaro é quanto a tentativa de reviver o voto impresso. Lembrou até de cenas absurdas, nos colégios eleitorais onde ocorriam a apuração, de fiscais de partido engolindo cédulas para que o voto não fosse registrado na ata. Diante da insistência do presidente—- sem provas —- de que as eleições têm fraude, Gilmar disse na entrevista:
“(a notícia de fraude no voto digital) é tão consistente quanto a mensagem que diz que o homem não foi à lua”
Cássia Godoy e eu tratamos de outros temas com Gilmar Mendes que você comapnha na gravação disponível aqui no blog. Destaco só mais uma antes de encerrar: quando falamos da pressão das Forças Armadas contra a CPI da Covid, que investiga militares com patente suspeitos de envolvimento de irregularidades, Gilmar também deixou seu recado:
“Não é função das Forças Armadas fazer ameaças à CPI ou ao Parlamento”
Na mesma semana que a maior e mais longeva democracia do mundo era atacada por bárbaros que, seguindo as ordens de seu grande líder, invadiram de forma violenta o Capitólio, bem distante de lá, aqui no Hemisfério Sul, um grupo de cidadãos ocupava seu espaço no Palácio Legislativo Vereador José Ananias Vasconcelos —- o título de palácio soa exagerado diante do tamanho do imóvel que abriga a Câmara Municipal de Santana de Acaraú, apesar de sua fachada em pedras escuras que destoam do padrão na cidade, mas segue o protocolo político no Brasil em que as casas que recebem os três poderes tendem a ser assim reconhecidas.
Santana de Acaraú fica ao Norte do estado do Ceará, distante 228 quilômetros da capital, Fortaleza, e bem mais próxima de Sobral. Por lá moram cerca de 30 mil pessoas que, em novembro do ano passado elegeram o prefeito e seus 13 vereadores —- todos já empossados e trabalhando. Foi na sessão de sexta-feira, dia 8, único dia da semana em que o parlamento se reúne, provavelmente para não atrapalhar as funções profissionais que os vereadores seguem exercendo, quatro cidadãos santanenses se apresentaram na Casa e pediram direito a fala.
De máscara —- não para se esconder; para cumprir o protocolo sanitário —- o professor da rede pública Paulo Roberto, escolhido para falar em nome do grupo, foi ao púlpito, sacou do bolso um roteiro feito em papel e usou da arma mais poderosa que ele e seus colegas têm à disposição: a palavra. Sim, foi com palavras ponderadas ao mesmo tempo que firmes, respeitosas mas sem serem subservientes, que ele apresentou aos parlamentares o movimento cidadão que planejavam implantar desde o fim das eleições em novembro.
Inspirados no Adote um Vereador, criado em 2008 na cidade de São Paulo, os santanenses —- 16 deles até aqui —- se reuniram e assumiram o compromisso de fiscalizar os vereadores desta legislatura que se inicia em 2021 e vai até 2024. A intenção é que, coletivamente, monitorem os projetos apresentados, discutidos e aprovados, cobrem a presença efetiva dos parlamentares nas sessões em plenário e nas reuniões das comissões permanentes, observem se os vereadores estão exercendo seu principal papel, que é o de fiscalizar o Executivo ou estão apenas se beneficiando do próprio; e fiquem de olho se o dinheiro do Legislativo está sendo usado ou abusado. Aplaudido pelos vereadores ao fim da fala, o grupo ouviu mensagens de apoio e colaboração com o trabalho que estão iniciando.
Foi um encontro amistoso, como se espera continue sendo a relação entre os legisladores e seus representantes. Moderação é uma das quatro virtudes que Platão entende que devem ser harmônicas para que a justiça seja alcançada. Aos integrantes do Adote, em Santana de Acaraú — os que estão com o grupo desde o início e os que ameaçam juntar-se a ele —, caberá exercitar as outras três virtudes da mesma forma, para que superem os obstáculos que virão —- tenham certeza, eles sempre aparecem. Coragem, sabedoria e a própria justiça também serão necessárias para o momento em que o interesse fiscalizador do grupo entrar em choque com os interesses paroquiais de vereadores.
Digo isso, porque a reação inicialmente positiva dos parlamentares não deve iludir os integrantes do Adote —- nem em Santana de Acaraú nem em qualquer outro canto deste país. A medida que se começa a expor a maneira como os temas de interesse da cidade são debatidos e votados, as intenções que movem as escolhas feitas pelos vereadores e, principalmente, como eles se comportam no exercício da função, haverá de surgir represálias, críticas e tentativas de divisão. É do jogo político, no qual os profissionais da política conhecem bem as regras e as artimanhas. Nós cidadãos estamos em processo de aprendizado.
Uma questão que poderia ser debatida na cidade do interior do Ceará —- e levada a todos os demais municípios —- é o vencimento dos parlamentares que por lá beira os 7 mil reais, levando a Câmara a gastar cerca de 96 mil reais por mês somente com a folha de pagamento dos vereadores, conforme levantamento publicado no site da casa. Esse valor está muito acima da média salarial da cidade e supera o PIB per capita do município, que é de R$ 6.550,00, de acordo com dados do IBGE. Se o assunto vai para a pauta ou não, é uma decisão dos cidadãos santanenses, mas é um bom exemplo de como nem sempre os interesses pelo que é melhor para a cidade e as pretensões dos parlamentares estarão sintonizados nessa jornada.
Moderação, coragem, sabedoria e justiça serão virtudes a serem praticadas diariamente para que a política — não aquela só feita por partidos e poderosos — se realize em comunidade. A presença do cidadão na “praça pública” que deve ser a Câmara Municipal sinaliza que podemos exercitar a política de uma forma diferente, distante da intolerância que tem dividido o Brasil e resultou na violência contra a democracia americana. O Adote um Vereador em Santana de Acaraú é um sopro de esperança a todos que acreditamos na ideia de que o homem não se basta a si mesmo, está destinado a viver em sociedade, porque somos animais políticos por natureza —- como nos ensinou Aristóteles.
Nós já sabemos para que serve o vereador, não sabemos? Ok, não custa lembrar: criar leis, fiscalizar o Executivo e promover discussões que levem a melhoria da sua cidade. Para cumprir esses compromissos que assume no momento em que toma posse —- eu diria até antes, pois se vai pedir o seu voto está subentendido que ele se comprometera em exercer corretamente a função para a qual foi escolhido pelo cidadão —- é necessário que algumas regras e limites sejam levados em consideração: todos devidamente escritos na lei.
Nem todo projeto de lei cabe ao vereador —- mesmo que todos os projetos de lei municipal tenham de ser aprovados pela maioria deles para se transformar em lei. Assim como nem todas as leis cabem ao município — mesmo que muitas delas impactem o cotidiano do cidadão.
Por exemplo, há regras que são federais e outras estaduais. Lei de trânsito é uma delas: se a União decide que todos temos de usar cinto de segurança para dirigir automóvel, não pode o prefeito e a Câmara Municipal votarem projeto de lei que libera os moradores a circularem de carro sem o cinto.
Outro fator limitante para as ideais defendidas pelo vereador é que os projetos de lei devem indicar a fonte de receita para arcar com os custos do que foi aprovado. Ou seja, não cabe ao vereador isentar setores da economia de pagamento de impostos ou obrigar a prefeitura a contratar funcionários.
Apesar disto ser sabido e alertado, reportagem de O Globo, publicada no domingo, mostra que os vereadores de Rio e São Paulo têm passado dos limites: 267 leis aprovadas nas câmaras municipais foram declaradas inconstitucionais desde 2009 —- 177 no Rio e 90 em São Paulo.
Para ter ideia: na capital paulista, o órgão Especial do Tribunal de Justiça considerou inconstitucional uma lei de 2015 que proibia veículos particulares de fazerem transporte de passageiro por meio de aplicativos; na capital fluminense, foi derrubada nos tribunais a lei que proibia cobrança de pedágio para taxistas.
O que é interessante saber disso tudo para que se tenha um olhar crítico mais apurado sobre o trabalho e o caráter do vereador:
Primeiro, que o projeto de lei para chegar ao plenário e ser votado passa pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Municipal. Ali, todos esses projetos que são claramente inconstitucionais deveriam ser barrados para evitar que se perca tempo e dinheiro com a discussão e ainda pressionar os tribunais com mais processos. O problema é que a comissão não cumpre sua função: os projetos passam para atender interesses de um ou outro vereador.
Segundo, que a Câmara mesmo que seja alertada no meio do caminho de que o projeto é inconstitucional também aprova alguns projetos como troca de favor: eu aprovo o seu projeto e você aprova o meu.
Terceiro, e mais importante: o próprio vereador que apresentou o projeto que será considerado inconstitucional, muitas vezes, sabe que é inconstitucional. Então por que apresenta? Pra jogar para a galera. É isso mesmo. Sabe que ao apresentar o projeto vai agradar determinado grupo que poderá ajudá-lo na eleição seguinte. Mesmo que depois a lei seja vetada pelo prefeito ou derrubada nos tribunais, ele mantém o discurso: eu fiz por vocês, eles é que são contra vocês.
É assim que a banda toca. Portanto, o cidadão tem de estar atento para essas manobras e antes de bater palma para algum candidato que está prometendo mundos e fundos, é bom saber se ele tem todo esse poder que acreditar ter.