Conte Sua História de São Paulo 465 anos: lembranças de uma cidade que o Alzheimer insiste em tirar de mim

 

Por Mário Curcio
Ouvinte da CBN

 

 

No Conte Sua História de São Paulo as lembranças de Sidnea Rodrigues Curcio, escritas por Mário Curcio:

 

Já contei minha história antes, mas como tenho o Mal de Alzheimer, dei-me o direito de esquecer para poder contar outra vez, agora sob o ponto de vista de quem convive comigo no dia a dia.

 

Cheguei a São Paulo na metade dos anos 1950, recém-casada, para trabalhar numa escola aqui na zona sul. Logo surgiu a possibilidade de pegar uma classe e comecei a trabalhar. Pouco depois disso apareceu uma oportunidade no ensino municipal. Fui das primeiras professoras da rede municipal.

 

Sempre morei aqui em Santo Amaro, na zona siul. Não só andei de bonde, mas também fiz a última viagem de bonde da cidade, ao lado do então prefeito Faria Lima. Também acompanhei, aqui em Santo Amaro, a grande migração dos nordestinos. Num primeiro momento, eles se concentravam numa travessa da Avenida João Dias, perto da atual Catedral da Fé, aquela grande igreja Universal, próximo da da ponte João Dias. Eles eram determinados a trabalhar e ajudaram a erguer nossa cidade.

 

Já contei aqui também que vi o artista Julio Guerra erguendo a estátua do Borba Gato no quintal de sua casa, pertinho da 11ª Delegacia de Polícia, que continua ali na rua Anchieta. Hoje passo pela estátua mas minha doença não me deixa reconhecer o Bandeirante — virou apenas um homenzarrão de botinas e com uma baita espingarda na mão.  O Teatro Paulo Eiró também não diz muita coisa para mim.

 

O mais triste dessa doença é quando olho para a escola municipal Linneu Prestes. Ali eu dei aula por mais de 10 anos e por tantos outros fui assistente da diretora Dorothi, já falecida. Foram tantos alunos, tantas colegas de ensino, mas mal consigo recordar o nome da escola. Atualmente, eu caminho ali dentro em dia de eleição, mas não reconheço mais o corredor onde ficava minha sala, a horta, a secretaria, apesar de tudo estar muito parecido como era 35 anos atrás.

 

Para entender o que acontece com quem tem essa doença, imagine que seu cérebro é uma memória de computador cheia de pastas, cada uma com recordações de diferentes épocas de sua vida, mas todas interconectadas. E de uma hora para outra essas conexões entre uma e outra começam a falhar e, pior que isso, as pastas começam a se apagar também. É isso o que acontece com a gente.

 

Vim de Rio Claro, no interior, há muito tempo, mas vivi a maior parte de minha vida em São Paulo, sempre ao lado de meu marido, o João. Moramos aqui no Jardim Hípico, um pequeno condomínio ao lado da Granja Julieta. Vi vários vizinhos partindo daqui para sempre. Eu continuo aqui, já não tão firme. Duro mesmo é ter vivido tanta coisa boa e não ter mais esses fatos vivos na memória para poder contar. 

 

Sidnea Rodrigues Curcio é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Venha participar desta série em homenagem aos 465 anos da nossa cidade: escreva seu texto e envie para contesuahistoria@cbn.com.br.

Reminiscências – De minha mãe

 

Por Julio Tannus

 

… Aos 94 anos de idade:

 

Comecei a vida estudando e acabei estudando para viver.
Aquele que não sabe que não sabe: é um tolo, evita-o. Aquele que não sabe e sabe que não sabe é simples: ensina-lhe. Aquele que sabe e não sabe que sabe: está dormindo, acorda-o. Aquele que sabe e sabe que sabe: é sóbrio, segue-o.

 

Somos todos estudantes na escola da vida.

 

O sorriso custa menos que a eletricidade e dá mais luz.

 

A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas deve ser vivida olhando-se para frente.

 

A vida é como uma bicicleta, você cai se parar de pedalar.

 

Se você quiser algum lugar ao sol, precisa saber enfrentar algumas queimaduras.

 

Quem sabe muitas vezes não diz. E quem diz muitas vezes não sabe.

 

Somos feitos de carne, mas temos que viver como se fossemos de ferro.

 

Quem viaja na garupa não dirige a rédea.

 

Agir sem pensar é como atirar sem fazer pontaria.

 

Colha a alegria de agora para a saudade futura.

 

Hino à Paraty:
Paraty quanta saudade.
Paraíso a beira-mar.
Permita Deus que eu não morra, sem para lá eu voltar.

 


Julio Tannus é consultor em Estudos e Pesquisa Aplicada e co-autor do livro “Teoria e Prática da Pesquisa Aplicada” (Editora Elsevier). Às terças-feiras, escreve no Blog do Mílton Jung

Paraty … quantas saudades você me traz !

 

Por Julio Tannus

 

 

É parte da letra de uma música que cantávamos há muitos anos, décadas de 40/50, quando acordados víamos o sol nascer por detrás do mar alto em Paraty.

 

Ainda menino, vivia entre a cidade e a roça, com avô por parte de mãe fazendeiro, grande produtor de cachaça – as famosas Branca do Peroca e Azulada do Peroca – e avô por parte de pai sírio-libanês, principal negociante da cidade.

 

E aí chegam as lembranças. A leitura, o cinema aos domingos, a maré cheia limpando toda a cidade, a pescaria na noite de lua cheia, a cata de caranguejos no mangue quando roncava trovoada. Y otras cositas más!

 

A Leitura – além dos clássicos, lembro-me de versos e histórias contadas. Um provérbio “Quem compra o que não precisa, vende o que precisa”. Um ditado “Raposa na governança, não há frango em segurança”. Ao pé do ouvido: “Quem caminha descalço não deve plantar espinhos”; “A primeira ilusão do homem foi a chupeta”; “Nossas mentes são como paraquedas, só funcionam bem quando abertos”; “Quem não leva tombo não aprende a andar”. Não é a toa que a Flip – Festa Literária Internacional de Paraty tem tudo a ver com a cidade.

 

O Cinema – era a janela para o mundo. Sempre aos domingos, assistíamos ao noticiário pós-Segunda Grande Guerra, além é claro do Zorro, E o Vento Levou, Branca de Neve e os Sete Anões. O seu Pedro, dono do cinema, ficava na porta de saída auscultando a pulsação dos presentes para encomendar filmes que agradassem aos gostos de todos.

 

A Maré Cheia – a sabedoria dos portugueses construiu a cidade de tal maneira que a maré alta cobria as ruas da cidade, lavando-as e levando toda a sujeira para alto mar. Até que um prefeito chegou a conclusão que “Paraty não é nenhuma Veneza”, e então construiu um dique de pedras para acabar com “essa coisa absurda”. A maré continua firme e forte, mas o dito prefeito conseguiu transformar a saudável praia da cidade em um lago de sujeira.

 

A Pescaria – saíamos de canoa tarde da noite de lua cheia para a pesca com anzol. Os peixes eram tantos que o simples toque do remo emitindo sons levava peixes para dentro da canoa. No arrastão de rede na Praia do Sono experimentava as delícias de uma massagem inigualável: deitado na proa da canoa carregada de peixes vivos até a borda.

 

Os Caranguejos – eram a fonte de dinheiro para compra de picolés, marias-moles, bolas de gude, gibis e outras guloseimas mais.

 

E hoje vejo Paraty com seu caráter nuclear ainda presente, intocável, fazendo parte dessa nossa pós-modernidade. Foi lá que encontrei minha companheira de sempre, e em sua homenagem escrevi esses versos:

 

Uma Ode a Sonia amiga

 

Oh! Sonia querida
Hoje não tem alegria, só tristeza.
Você que alegrava meu silencio com seu olhar;
Você que tirava minha solidão com sua presença;
Você que conquistava meu coração com sua coragem;
Você que carregava a tristeza de tantos com sua sabedoria;
Você que iluminava a escuridão de todos com seu pensamento;
Você que diminuía a dor de muitos com sua generosidade;
Você perdeu seu corpo, mas ganhou o olhar de todos nós;
Oh! Sonia querida
Hoje não tem alegria, só tristeza…

 

Julio Tannus é consultor em estudos e pesquisa aplicada, co-autor do livro “Teoria e Prática da Pesquisa Aplicada” (Editora Elsevier). Escreve às terças-feiras, no Blog do Mílton Jung