Dr Renan Domingues

“Várias vezes ao dia, ela diz:
Eu perdi a mim mesma’.”
Alois Alzheimer, sobre sua paciente Auguste Deter,
o primeiro caso descrito da Doença de Alzheimer
“Se uma teoria lhe parece ser a única possível,
tome isso como um sinal de que você não entendeu
nem a teoria nem o problema que ela pretendia resolver”
Karl Popper, filósofo da ciência
Alois Alzheimer (1864–1915) foi um médico psiquiatra e neurologista alemão que contribuiu decisivamente para os primórdios da neurociência moderna. Em 1906, durante uma conferência, apresentou o caso de Auguste Deter, uma paciente com perda progressiva de memória, desorientação, dificuldades de linguagem e comportamento, além de um declínio cognitivo que avançava sem trégua. Após o falecimento de Auguste, Alzheimer analisou seu cérebro e descobriu três alterações patológicas inéditas até então: placas fora das células, denominadas amiloides; depósitos dentro dos neurônios, conhecidos como emaranhados neurofibrilares; e uma perda neuronal generalizada. As alterações descritas por ele foram consideradas responsáveis pelo quadro de demência observado e, posteriormente, a doença passou a levar seu nome.
Mais tarde, descobriu-se que as placas amiloides são compostas por uma proteína anormal, a beta amiloide 42, que parece ter um papel central nos estágios iniciais da Doença de Alzheimer. O acúmulo dessa substância no cérebro parece iniciar uma sequência de eventos patológicos, a chamada cascata amiloide, que inclui a formação dos emaranhados neurofibrilares, levando à morte neuronal e, com o tempo, à atrofia cerebral. Esse acúmulo da beta amiloide 42 pode ocorrer em função de mutações genéticas que aumentam sua produção, ou por falhas nos seus mecanismos naturais de eliminação.
Com base na teoria da cascata amiloide, recentemente desenvolveram-se anticorpos monoclonais capazes de remover a beta amiloide 42 acumulada. E de fato, os estudos mostraram uma redução eficaz das placas amiloide com estes medicamentos. A lógica parecia infalível: remover a causa, deter a doença. Mas a clínica frustrou a expectativa e os benefícios cognitivos para os pacientes foram modestos, quase sempre abaixo do impacto esperado.
É nesse ponto que o conhecimento iniciado por Alois Alzheimer se encontra com a filosofia de Karl Popper (1902–1994). Um dos maiores pensadores da ciência no século XX, Popper argumentava que o conhecimento científico não avança por confirmações, mas sim por tentativas de refutação. Uma teoria só é científica se ela é testável. Se ela resiste a esses testes, ela é provisoriamente aceita, mas jamais considerada definitiva. A ciência, para Popper, é feita de hipóteses ousadas que precisam ser colocadas à prova, sempre com a consciência de que toda explicação é temporária.
Aplicando esse olhar à teoria da cascata amiloide, a constatação de que os pacientes não melhoram, mesmo após a remoção da proteína anormal, poderia ser interpretada como uma refutação da hipótese. Mas Popper adverte: “A ciência será sempre uma busca e jamais uma descoberta. É uma viagem, nunca uma chegada. O conhecimento é uma aventura em aberto.” Em outras palavras: calma! A ausência de melhora clínica não encerra a questão, pode apenas indicar que chegamos tarde demais. Talvez o acúmulo de beta amiloide 42 ocorra décadas antes dos primeiros sintomas, e sua remoção, uma vez iniciada a cascata degenerativa, seja insuficiente para reverter os danos. Ou talvez existam outros processos igualmente importantes em ação, como a inflamação, o papel de outras proteínas e fatores ainda desconhecidos.
A lição de Popper permanece atual: a certeza é inimiga do pensamento científico. A verdade não é algo que se possui, mas algo que se persegue com humildade e abertura ao erro. Se estamos convencidos de que a teoria da cascata amiloide é a única explicação possível, talvez já tenhamos caído na armadilha. E como sair, diante dos dados que agora desafiam aquilo em que acreditamos com convicção?
É justamente quando temos certeza demais que, como Auguste Deter, corremos o risco de nos perder. Porque lucidez, no fim das contas, não é saber exatamente onde estamos, mas é reconhecer o que não sabemos e, ao mesmo tempo, formular as perguntas certas para mais adiante estarmos um pouco menos perdidos.
Renan Domingues é neurologista e doutor pela Universidade de São Paulo (USP), doutorado pela Universidade do Alabama em Birmingham, EUA, e pós-doutorado pela Universidade de Lille, França. Escreve a convite do Blog do Mílton Jung







