O encontro de Alois Alzheimer e Karl Popper

Dr Renan Domingues

@renandominguesneurologia

“Várias vezes ao dia, ela diz:

Eu perdi a mim mesma’.”

Alois Alzheimer, sobre sua paciente Auguste Deter,

o primeiro caso descrito da Doença de Alzheimer

“Se uma teoria lhe parece ser a única possível,

tome isso como um sinal de que você não entendeu

nem a teoria nem o problema que ela pretendia resolver”

Karl Popper, filósofo da ciência

Alois Alzheimer (1864–1915) foi um médico psiquiatra e neurologista alemão que contribuiu decisivamente para os primórdios da neurociência moderna. Em 1906, durante uma conferência, apresentou o caso de Auguste Deter, uma paciente com perda progressiva de memória, desorientação, dificuldades de linguagem e comportamento, além de um declínio cognitivo que avançava sem trégua. Após o falecimento de Auguste, Alzheimer analisou seu cérebro e descobriu três alterações patológicas inéditas até então: placas fora das células, denominadas amiloides; depósitos dentro dos neurônios, conhecidos como emaranhados neurofibrilares; e uma perda neuronal generalizada. As alterações descritas por ele foram consideradas responsáveis pelo quadro de demência observado e, posteriormente, a doença passou a levar seu nome.

Mais tarde, descobriu-se que as placas amiloides são compostas por uma proteína anormal, a beta amiloide 42, que parece ter um papel central nos estágios iniciais da Doença de Alzheimer. O acúmulo dessa substância no cérebro parece iniciar uma sequência de eventos patológicos, a chamada cascata amiloide, que inclui a formação dos emaranhados neurofibrilares, levando à morte neuronal e, com o tempo, à atrofia cerebral. Esse acúmulo da beta amiloide 42 pode ocorrer em função de mutações genéticas que aumentam sua produção, ou por falhas nos seus mecanismos naturais de eliminação.

Com base na teoria da cascata amiloide, recentemente desenvolveram-se anticorpos monoclonais capazes de remover a beta amiloide 42 acumulada. E de fato, os estudos mostraram uma redução eficaz das placas amiloide com estes medicamentos. A lógica parecia infalível: remover a causa, deter a doença. Mas a clínica frustrou a expectativa e os benefícios cognitivos para os pacientes foram modestos, quase sempre abaixo do impacto esperado.

É nesse ponto que o conhecimento iniciado por Alois Alzheimer se encontra com a filosofia de Karl Popper (1902–1994). Um dos maiores pensadores da ciência no século XX, Popper argumentava que o conhecimento científico não avança por confirmações, mas sim por tentativas de refutação. Uma teoria só é científica se ela é testável. Se ela resiste a esses testes, ela é provisoriamente aceita, mas jamais considerada definitiva. A ciência, para Popper, é feita de hipóteses ousadas que precisam ser colocadas à prova, sempre com a consciência de que toda explicação é temporária.

Aplicando esse olhar à teoria da cascata amiloide, a constatação de que os pacientes não melhoram, mesmo após a remoção da proteína anormal, poderia ser interpretada como uma refutação da hipótese. Mas Popper adverte: “A ciência será sempre uma busca e jamais uma descoberta. É uma viagem, nunca uma chegada. O conhecimento é uma aventura em aberto.” Em outras palavras: calma! A ausência de melhora clínica não encerra a questão, pode apenas indicar que chegamos tarde demais. Talvez o acúmulo de beta amiloide 42 ocorra décadas antes dos primeiros sintomas, e sua remoção, uma vez iniciada a cascata degenerativa, seja insuficiente para reverter os danos. Ou talvez existam outros processos igualmente importantes em ação, como a inflamação, o papel de outras proteínas e fatores ainda desconhecidos.

A lição de Popper permanece atual: a certeza é inimiga do pensamento científico. A verdade não é algo que se possui, mas algo que se persegue com humildade e abertura ao erro. Se estamos convencidos de que a teoria da cascata amiloide é a única explicação possível, talvez já tenhamos caído na armadilha. E como sair, diante dos dados que agora desafiam aquilo em que acreditamos com convicção?

É justamente quando temos certeza demais que, como Auguste Deter, corremos o risco de nos perder. Porque lucidez, no fim das contas, não é saber exatamente onde estamos, mas é reconhecer o que não sabemos e, ao mesmo tempo, formular as perguntas certas para mais adiante estarmos um pouco menos perdidos.

Renan Domingues é neurologista e doutor pela Universidade de São Paulo (USP), doutorado pela Universidade do Alabama em Birmingham, EUA, e pós-doutorado pela Universidade de Lille, França. Escreve a convite do Blog do Mílton Jung

Humanidade e medicina: uma jornada literária em ‘Homem Médico’ de Fernando Nobre

A literatura e a medicina sempre renderam excelentes leituras. Desde Machado de Assis, em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “O Alienista”, até Joaquim Manuel de Macedo, médico não-praticante que escreveu “A Moreninha”, onde um dos protagonistas é estudante de medicina e a personagem principal sofre de uma doença rara.

A relação entre esses dois temas vai muito além. Em tempos mais modernos, fui marcado pela escrita de Drauzio Varella em “Estação Carandiru”. A história não-ficcional é intensa e a escrita é primordial. Um texto enxuto e rico, que sempre considerei jornalismo literário, mesmo com a medicina sendo a especialidade do autor.

Há alguns anos, aproveitei as férias para ler “Quando Nietzsche Chorou”, de Irvin D. Yalom, autor de “Mentiras no Divã”. Yalom, psiquiatra, esteve comigo nesta viagem, também, mas nas mãos da minha mulher. Foi ela  que já havia me apresentado “O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu”, do neurologista e químico Oliver Sacks.

Essas leituras sempre me intrigaram pela qualidade dos textos e pela impressionante pesquisa dos autores, especialmente aqueles que se aventuraram pelo romance. Costurar vivências com histórias ficcionais e elaborar um enredo onde sintomas, diagnósticos, doenças e curas surgem em meio à construção de personagens exige um talento extraordinário.

Diante disso, coragem foi a primeira virtude que vi no trabalho do Dr. Fernando Nobre, que lançou recentemente “Homem Médico” (Editora Novo Século). O livro não é autobiográfico, mas certamente encontraremos passagens inspiradas em suas experiências. Só ele pode revelar o que viveu, soube ou criou no cotidiano de Reinaldo, o protagonista, um médico dedicado à profissão desde a juventude, que enfrenta situações de poder e privilégio capazes de influenciar as atitudes humanas. Reinaldo encara dilemas, mesmo com sentimentos puros como o amor, lembrando-se sempre da lição da aula inaugural da medicina:

— “Não poderão orientar os bons hábitos sem que os tenham. Dizerem sobre os males dos vícios se os praticarem. Serem indulgentes se não o forem. Pregarem a resiliência se não forem tolerantes e aceitarem os males que a vida lhe imporá”, disse o orador.

Quem conhece Dr. Fernando sabe de suas reflexões sobre a medicina e seus profissionais; já ouviram dele a necessidade de ver o paciente além do diagnóstico; e compartilham sua crítica àqueles que não enxergam a pessoa além da doença. Seus pacientes também sabem disso, na prática. Ainda assim não temos indícios suficientes que revelem onde está o Fernando, o criador, na figura de Reinaldo, a criatura.

Além de coragem, o romance de Fernando Nobre revela outras virtudes como prudência, ao refletir sobre as decisões éticas e morais dos médicos; justiça, ao promover a ideia de uma medicina igualitária e inclusiva; e empatia, ao humanizar a prática médica e incentivar uma conexão genuína com os pacientes. 

A relação de Fernando Nobre com os livros rendeu-lhe o Prêmio Jabuti, na categoria Ciências de Saúde, em 2006, com “Tratado de Cardiologia”, em que o conhecimento técnico da profissão era o foco. Já “Homem Médico” é mais um exemplo de como a interseção entre literatura e medicina pode render um livro de qualidade e virtudes.

Fernando Nobre lança o livro “Homem Médico” que une coração, ciência e conhecimento.

Dr. Fernando Nobre, cardiologista e mestre na arte da comunicação, é a personificação do médico que todos almejamos ter. Convicto de que o conhecimento quando compartilhado pode salvar vidas, ele excede o papel tradicional do médico ao esclarecer e educar, fazendo da linguagem um instrumento de cura. Seu talento para transmitir informações de saúde de maneira compreensível tem o poder de prevenir doenças e de transformar o cenário médico como um todo. É o que chamo de médico comunicador!

No consultório, Nobre transforma complexidades médicas em diálogos claros, fortalecendo o vínculo entre médico e paciente e aumentando significativamente a eficácia do tratamento. Na CBN Ribeirão Preto, onde apresenta o quadro CBN Saúde, sua voz ganha novas dimensões e se espraia pelos diversos rincões alcançados pelas ondas do rádio. Nos livros, usa de sua escrita qualificada para traduzir a complexidade da medicina em palavras que encantam e informam. Foi um dos editores do “Tratado de Cardiologia SOCESP”, que ganhou o mais prestigiado prêmio de literatura do Brasil: o Jabuti, na categoria “melhor livro de ciências da saúde”, em 2006.

Agora, com “Homem Médico” (Novo Século), Dr. Nobre se aventura ainda mais profundo no tecido da existência humana. Mais do que um relato, o livro é uma odisseia que celebra a resiliência, a empatia e os valores éticos que formam a espinha dorsal da medicina. Acompanhamos a jornada de Dr. Reinaldo, um médico cuja vida e prática são um espelho da própria alma da medicina – cheia de desafios, mas também repleta de triunfos silenciosos.

A escolha de Dr. Reinaldo de tratar pessoas e não doenças ressoa com um apelo por uma medicina mais compassiva, que vê cada paciente como um universo único de necessidades e histórias. Através da narrativa de Fernando Nobre, somos convidados a entender que a medicina é tanto uma arte quanto uma ciência – um equilíbrio delicado que poucos conseguem sustentar com tanta graça.

Dr Fernando Nobre, seu personagem Dr Reinaldo e o livro esperam você na Livraria da Vila, do Shopping Eldorado, nesta quinta-feira (dia 21 de março), a partir das 18h30.

Mundo Corporativo: José Marcelo de Oliveira, do Hospital Oswaldo Cruz, fala do desafio de ser inovador aos 125 anos

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“Essencial é trazer a visão do cliente para dentro. Essa visão de cliente é o que desempata os dilemas e as discussões e o que alinha os interesses de uma discussão que muitas vezes é interna e não está sendo endereçada na perspectiva do paciente”.  

Dr José Marcelo de Oliveira, Hospital Oswaldo Cruz

O corpo clínico que oferece qualidade no atendimento e a cultura aberta para que o conhecimento seja compartilhado e a inovação se expresse. São dois dos elementos que permitiram que o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, chegasse aos 125 anos de fundação, a despeito de ter enfrentado duas grandes guerras mundiais e duas pandemias de alta periculosidade —- a última bem conhecida de todos nós, a da Covid-19. Essa é a opinião do Dr José Marcelo de Oliveira que assumiu o cargo de diretor-presidente da instituição, em junho do ano passado.

Em entrevista ao Mundo Corporativo, Jota, como costuma ser chamado pelos colegas,  explica que a cultura aberta se realiza a partir de ferramentas colaborativas que permitem a coleta de ideias de qualquer um dos 3.500 profissionais e cerca de 4 mil médicos diante de temas ou desafios que surgem na instituição. Os colaboradores oferecem soluções que são analisadas pelos gestores e classificadas pelo próprio grupo, que participou da elaboração das propostas, e selecionará aquelas que serão implementadas na prática

“A gente usa essas ferramentas no nosso dia a dia para manter, mesmo com essa tradição dos 125 anos, esse time conectado”

Uma dessas soluções surgiu na pandemia, quando no auge da demanda de respiradores criou-se uma forma de ampliar o número desses equipamentos, que foram inicialmente construídos em impressoras 3D até que se chegasse a versão final do produto. Foram desenvolvidos mais de 300 desses respiradores no hospital e o código que permitia sua construção foi aberto e compartilhado a todas as instituições, grupos ou pessoas interessadas em levar a ideia à frente.

A cultura da qualidade e segurança para o paciente também é fomentada na instituição e precisa ter o engajamento dos diversos grupos de profissionais que atuam dentro do hospital, não apenas do corpo clínico, destaca José Marcelo de Oliveira: 

“Todos os membros dessa organização são profissionais de saúde, mesmo sendo da área financeira, da área de TI, de suprimento, etc e tal. Porque isso coloca uma postura de serviço. Porque o nosso modelo é um serviço de alta complexidade em função da vida das pessoas”.

A crise sanitária que se iniciou em 2020 obrigou a aceleração de outras tantas soluções. Mais do que isso, exigiu adaptação e agilidade no aprendizado diante de uma situação nova para a comunidade médica. O setor que avalia as tecnologias em saúde e busca o conhecimento que vem sendo trabalhado em todo o mundo passou a estruturar dados para que as tomadas de decisão fossem em curto prazo e no dia a dia da pandemia. 

A saúde mental dos profissionais também foi impactada, o que levou o hospital Oswaldo Cruz a criar programas de cuidadores mentais, que passaram por treinamento para que os colaboradores de qualquer grupo de trabalho se capacitassem a fazer um diagnóstico e a ajudar o colaborador que emitisse algum sinal de sofrimento. 

Para José Marcelo de Oliveira, os avanços tecnológicos virão no sentido de colaborar com a gestão da jornada do paciente, a partir de plataformas que facilitarão o acesso para agendamento e consulta de resultados de exames até o monitoramento de sintomas em um quadro pós-operatório — neste caso, melhorando a relação custo-benefício do lado da sustentabilidade:

“Antecipar o cuidado quer dizer que você vai gastar menos, o paciente vai ficar menos tempo internado, vai sair com menos intervenção e com menos sequela, eventualmente. E vai estar pleno para sua vida no convívio das doenças crônicas. O futuro da medicina será cuidar de doenças crônicas”.

Assista à entrevista completa com o Dr José Marcelo de Oliveira, diretor-presidente do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, ao Mundo Corporativo, em que também falou de como a instituição está implantando medidas pautadas pela diretrizes ESG:

O Mundo Corporativo tem a colaboração de Renato Barcellos, Bruno Teixeira, Rafael Furugen e Priscila Gubiotti.

Mundo Corporativo, 20 anos: o 5G será uma disrupção na internet das coisas médicas, diz Fernando Paiva

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“O 5g para o ecossistema de saúde, quando a gente pensa em monitoramento remoto, seja de paciente, vai ser totalmente transformador”. 

Fernando Paiva

Uma central de comando que monitora à distância a saúde dos moradores da cidade; que usa as câmeras em áreas públicas não apenas para alertar para riscos na segurança, mas que sejam capazes de identificar, através do reconhecimento facial, que os dados captados de uma pessoa demonstram desvios de padrão e enviem a ela a mensagem de que deve procurar atendimento médico. Ficção científica? No nosso imaginário, com certeza. No campo da tecnologia, nem tanto. Hoje, já existe inteligência suficiente para implantar um sistema semelhante a esse que foi descrito por Fernando Paiva, no programa Mundo Corporativo.

Como a tecnologia influenciará o atendimento aos pacientes e contribuirá com a qualidade de vida dos brasileiros foi o tema escolhido pelo Mundo Corporativo para a estreia desta temporada que marca os 20 anos do programa.

Fernando não é médico por formação. É engenheiro, estudou economia, e administração de empresas; é apaixonado pela tecnologia de informação — talvez resultado das aulas de programação que teve quando ainda estava com apenas 13 anos. Hoje, faz mestrado em internet das coisas na área médica (IoMT), na Faculdade de Medicina da USP:

“Cheguei a um momento da vida que eu gostaria de gerar mais impacto social, que traria realmente algum resultado na vida das pessoas. E a área da saúde é apaixonante porque você sabe que no final do dia, quando você vai dormir, aquele trabalho que você realizou, de maneira direta ou indireta, está salvando uma vida, contribuindo com a longevidade”.

Entusiasmado com a chegada da tecnologia 5G ao país, Fernando identifica uma série de oportunidades que devem surgir nesse mercado; e chama atenção dos empreendedores para a necessidade de se enxergar o ecossistema de saúde no Brasil para entender melhor a jornada do paciente, que se inicia muito antes dele passar por laboratórios, clínicas e hospitais:

“Essa jornada se inicia dentro e fora do ambiente da clínica hospitalar. Quando você está fazendo um tratamento preditivo ou um acompanhamento preventivo, você já está inserido no ecossistema de ‘health care’’.

Se a cidade que monitora a segurança da saúde das pessoas é realidade ainda distante dos nossos olhos, no Brasil – o que ainda exigirá um debate técnico e ético – , existem outras mudanças que logo poderão ser percebidas com a oferta do 5G. A começar pela velocidade e constância na transmissão de dados e informações que pode agilizar o atendimento do paciente ou otimizar a telemedicina, experiência que passou a fazer parte da vida dos pacientes durante a pandemia.  O ‘home care’ – que permite tratamento fora de uma unidade de saúde especializada e oferece ao paciente o conforto de estar em sua própria casa e ao lado da família – será um dos sistemas mais beneficiados. O paciente poderá ser monitorado em tempo real e intervenções poderão ser feitas muito mais rapidamente.

“O 5G será uma disrupção”

Para que empreendedores e investidores entendam melhor como a internet das coisas médicas pode se transformar em oportunidade, além de conhecer o ecossistema da saúde e a jornada do paciente, Fernando Paiva deixa as seguintes sugestões;

  • Faça um mergulho profundo em tecnologia, porque elas são muito dinâmicas e transformadoras. É preciso conhecer o hardware, o software e a infraestutura tecnológica; isso é fundamental para o empreendedor.
  • Se você tem uma base muito forte em tecnologia, busque um consultoria especializada em saúde, converse com médicos e profissionais de saúde; dialogue com o meio para ter um ‘banho de loja’;
  • O ecossistema de saúde brasileiro tem suas peculiaridades e é extremamente conservador; não basta ter bilhões de dólares na conta para convencer que a sua solução é a melhor: é preciso falar a linguagem do setor.

Assista à entrevista completa com Fernando Paiva no Mundo Corporativo

O Mundo Corporativo pode ser assistido, ao vivo, às quartas-feira, às 11 horas da manhã, na canal da CBN no Youtube, no Facebook e no site http://www.cbn.com.br. O programa vai ao ar aos sábados, às 8h15, no Jornal da CBN. E tem a colaboração de Bruno Teixeira, Débora Gonçalves, Rafael Furugen e Renato Barcellos.

Observações de um sesamóide quebrado

Foto: Pexels

Um fratura nos minúsculos sesamóides, dois ossinhos tão ridículos quanto necessários do dedão, me proporcionou uma série de experiências baseadas em observações e agitou a semana que prometia ser de pasmaceira no noticiário e entediada no cotidiano. A começar pela prova de quanto o corpo humano pode ser frágil e o ser humano, dependente. 

Com a necessária imobilização do local fraturado, perde-se o movimento de uma das mãos e se restringe uma série de atividades para as quais damos pouca importância mas que podem se transformar em desafios que exigem malabarismo e súplicas de solidariedade. Tente amarrar o cadarço do sapato com uma só mão ou abotoar o punho da manga da camisa sem a mão do lado oposto – sim, eu sei, a humanidade tem coisas mais importantes com que se preocupar. 

Eu também, tenho. Trabalhar, por exemplo.

Por isso me espantaram dois dos profissionais de saúde que me atenderam nesses dias. O primeiro insistia que eu aceitasse o atestado médico me dispensando por uma semana. O outro, depois de saber que eu seguia dando expediente, concluiu: “então você é o dono”. Nem do meu nariz! Que, aliás, tentei coçar à noite e arranhei com a órtese de mão que estou “vestindo” em substituição ao gesso desproporcional que o hospital me obrigou a colocar por ser o procedimento mais barato.

Observei também a reação dos amigos e parentes diante do incidente. Foi reveladora de como temos dificuldades de encontrar a forma mais apropriada de solidariedade. Um, antes de eu terminar minha triste história – e eu só queria ter o direito de externalizar minha dor -, começou a falar dos acidentes que ele sofreu. Todos muito piores do que o meu. Sai da conversa arrasado: os casos dele eram insuperáveis. 

Teve o que exercitou a empatia, sempre recomendável nas relações humanas. Ao explicar que havia quebrado o sesamóide, ele logo se uniu a mim para dizer que é a “pior coisa que podia acontecer”. Ao deixar a conversa passei a cogitar a morte no próximo tombo que levar.

Um terceiro lamentou meu azar de ter caído quando faltavam apenas três degraus para chegar ao chão. Teria sido melhor que eu caísse da parte mais alta, então? 

Experiência pior foi o que os exames laboratoriais me proporcionaram. Nem tanto pelo exame em si, nem pelo atendimento recebido – todos os funcionários eram muito simpáticos. Enquanto esperava as imagens da tomografia computadorizada feita em equipamentos ultramodernos, me vi na posição de observador de um diálogo do período jurássico, protagonizado por dois clientes na sala de espera. 

Após a TV anunciar que o governo reduziria o tempo para a terceira dose da vacina contra Covid, o senhor, que parecia mais velho do que eu,  balbuciou algo para a moça, que parecia mais jovem do que eu. Foi a senha para o início de uma conversa que me faz saber que ambos tinham contraído a doença e tomado as duas doses da vacina. Daí pra frente foi uma sequência de absurdos. Ela reclamou que ninguém sabe o que está fazendo porque a orientação sobre número de doses e tempo de intervalo muda a todo momento: “eu vou esperar uns sete meses antes da terceira dose pra ver o que vai acontecer com quem tomou”. Ele contra-atacou: “conheço uma monte de gente que passou mal, eu não vou tomar o reforço. Até já peguei Covid!”.

No segundo episódio da conversa, os dois passaram a relatar sequelas deixadas pela doença. E o senhor, do alto de sua sabedoria, recomendou a ela um chá sei-lá-do-que que tem o mesmo “princípio ativo” de um remédio que está sendo desenvolvido na Alemanha para conter os males deixados pela Covid-19. A moça que havia revelado descrença na ciência que desenvolve vacinas, arregalou os olhos e, antes de se despedir, comentou: “se esse chá funciona mesmo, será uma revolução”. Pegou os exames, despediu-se e foi embora batendo firme os saltos no piso, levando a tiracolo a crença na sabedoria popular e o negacionismo à ciência.

Confesso meu desejo de ter intervindo na conversa ao menos para saber o nome do chá milagroso que resolve o que conhecemos por Covid longa. Preferi resguardar-me em minha própria ignorância. E resignei-me ao papel de observador, apesar de estar convencido de que se eu prestasse mais atenção na minha vida do que na dos outros, talvez tivesse percebido que havia um degrau no meio do caminho. E meus sesamóides estariam intactos.

Psiquiatra defende o uso da expressão automorte em lugar de suicídio, palavra que remete a ideia de crime

Foto de Daniel Reche no Pexels

Gol contra em Portugal não é gol contra. É autogolo. Palavra bem mais apropriada para explicar o ato de colocar a bola dentro das próprias redes. Ato jamais intencional, —- ao menos não em condições normais de pressão, temperatura e caráter. — como a expressão usada no Brasil pode dar a entender Foi o que pensou Carlos Francisco, torcedor do Boa Vista, de Portugal, quando leu texto em jornal lusitano do erro cometido por um dos zagueiros do time da cidade do Porto. Registre-se: torcedor por linhas tortas, já que admira o time português apenas pela camisa preta e branca que se assemelha com a do Botafogo do Rio, esse sim uma paixão. 

Carlos Francisco, além de gostar de futebol, é médico, psiquiatra. Depara com uma série de transtornos, desequilíbrios e fragilidades do ser humano.  Nos casos mais dramáticos, assiste pacientes com tendências a cometerem violências contra si mesmo, dispostos a deixar a vida como solução para dificuldades e sofrimentos pessoais. 

Chamamos isso de suicídio. Não apenas nós. As certificações médicas usam a expressão que, consta, foi registrada inicialmente em obra do médico inglês Thomas Browne, Religio Medici (1643), publicada em Londres. Foi ele quem criou em grego o neologismo  αυτοθόηος — autofónos, que se mata a si mesmo. Quando a obra foi traduzida para o inglês registrou-se a palavra suicide. 

Hoje, psiquiatras e profissionais de outras especialidades médicas e comportamentais, têm refletido sobre essa nomenclatura que remete a um ato criminoso — da mesma forma que homicídio, feminicídio, parricídio ou infanticídio. Dr. Carlos faz parte desse grupo e se inspirou no futebol português para defender o uso de expressão que considera mais adequada para identificar a ação que leva uma pessoa a atentar contra a própria vida: automorte

Na entrevista que Dr Luis Fernando Correia, Cássia Godoy e eu fizemos nesta manhã no quadro “Saúde em Foco”, no Jornal da CBN, o médico Carlos Francisco, mestre e doutor em psiquiatria pela Unicamp, e integrante da Associação Brasileira de Neuropsiquiatria, explicou que a troca de nomenclatura se justifica mesmo se levarmos em consideração as definições de suicídio publicadas na Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial da Saúde. A CID —- lembra de já ter visto esta sigla em uma receita médica? —- é a base para identificar tendências e estatísticas de saúde em todo o mundo que contém cerca de 55 mil códigos únicos para as diversas causas de lesões, doenças e mortes. 

De acordo com Carlos Francisco, nas doenças que são relacionadas ao suicídio já se usa expressões como automutilação e autolesão. Um sinal de que é possível avançar no caminho de, em algum momento, adotar-se automorte em detrimento de suicídio, palavra estigmatizada e com uma caráter de criminalização:

“A gente tem de pensar no estigma terrível que é usar essa palavra Imagine alguém na família que teve uma pessoa que cometeu o suicídio: “ele é de uma família de um suicida”. Ou o próprio paciente que tentou se matar e não conseguiu consumar o ato: ele é potencialmente suicida. O paciente se sente como se fosse um criminoso”.

O prefixo ‘auto’, defendido pelo doutor Carlos Francisco, tem origem na palavra grega autos e também exprime a noção de próprio, de si próprio, por si próprio. Mais fácil assim de compreender mesmo no senso comum. Além disso, colabora com outro aspecto no tratamento da doença. O fato de se entender que a causa pode ser única, própria, individual, como chamou atenção, o  Dr Luis Fernando:

“Da mesma forma que não se deve generalizar o termo, também não se deve generalizar uma causa. Infelizmente, existe uma generalização da doença mental por trás da tentativa do suicídio ou da automorte”.

A banalização de debates sobre saúde mental pode limitar o diagnóstico de pacientes que sejam identificados com tendências de se matar. Faz esquecer que cada pessoa que cometeu ou tentou cometer o suicídio tem suas particularidades. Carlos Francisco ressalta ainda que, a despeito da discussão sobre o nome mais apropriado a se dar para este comportamento, o foco tem que ser o tratamento. E a principal instância de diagnóstico é a família. Nem medicina, nem psicologia, nem religião substituem a confiança afetiva que se tem com aqueles que nos cercam, desde, é lógico, que você conviva em uma ambiente favorável. Se a família consegue diagnosticar o problema é mais fácil encaminhar o paciente para o tratamento. 

Mudar o nome de uma doença em busca de torná-lo mais apropriado para a situação costuma ser processo demorado, mas não inédito. Um dos exemplos mais conhecidos da história da medicina é o do uso da expressão histeria, que podemos encontrar em textos que falam de Hipócrates e estudos psicanalíticos de Sigmund Freud —- apenas para ficarmos em dois dos grandes nomes da humanidade. Por acreditar-se que sua causa é resultado de disfunção uterina deu-se o nome grego hysterá que significa útero. Somente nos anos de 1990, a comunicada médica e a Organização Mundial da Saúde passaram a identificar a doença como transtornos dissociativos, tirando-lhe o caráter puramente feminino.

Ouça o Saúde em Foco, da CBN

“Dou conforto na passagem e não tormento”

Dra. Isadora Jochims

reumatologista, artista visual

Conheça a história da Dra Isadora Jochims publicada na revista Vogue

Guerra / Não estou em uma guerra /

Cuido de vidas, não ceifo /

Dou conforto na passagem / E não tormento /

Não sou movida a ódio / Mas a amor e afeto /

Não quero ganhar / Quero empate /

Minhas bombas são de infusão / Elas seguram almas /

Seus barulhos são de alerta / E não de explosão e morte /

Não sou um soldado /

Minha vida vale / Não sou um número /

Sou a ponte / Para o outro lado /

Não julgo / Não quero saber seu passado /

Apenas da sua vida /

Agora / O ato / A cura /

Não tenho armas / Nem balas /

Tenho a ciência / O conhecimento das medicinas /

Das prevenções / Do cuidado /

As vacinas /

Estou na linha de frente / E não escondido em uma trincheira /

Na linha da frente / Da vida e da morte /

Não obedeço ordens / Tenho autonomia /

Penso / Existo /

Trato precocemente a loucura / Da disputa e do poder /

Por isso não esqueça / Não estamos em uma guerra! /

A vida é mais do que perder / E ganhar /

Nem tudo vale! /

Me paramento / Se paramente / De amor /

Para a esperança enfim / Renascer em nós!”

Conheça a história da Dra Isadora Jochims publicada na revista Vogue

As inovações de 2020 pela revista TIMES

Por Carlos Magno Gibrail

Augmedics vision foi escolhida uma das 100 melhores invenções de 2020
Augmedics vision foi escolhida uma das 100 melhores invenções de 2020

O WHOW! Festival de Inovação registrou dentre seus tópicos de dezembro o estudo da TIMES. A revista americana anualmente seleciona os inventos que fazem o mundo melhor, mais inteligente e até mais divertido. Com esse objetivo levanta contribuições de seus editores ao redor do mundo, ao mesmo tempo que dispõe de um processo de inscrição online. Considerando a originalidade, a criatividade, a eficiência, a ambição e o impacto, relacionou 100 invenções. Nós escolhemos cinco para compartilhar com você:

Visão de Super-Heróis para médicos – Nissan Elimelech, CEO da Augmedics, inspirado provavelmente nos super-heróis imaginou como seria importante se os cirurgiões pudessem ter uma visão de Raio-X. 

“O Xvision, um fone de ouvido que usa realidade aumentada para transformar a tomografia computadorizada em uma visualização 3-D pode sobrepor a imagem 3-D da coluna de um paciente sobre seu corpo, permitindo que os cirurgiões vejam o que está sob a pele sem desviar o olhar da mesa de operação”. 

Aprovado pelo FDA Food and Drug Administration dos Estados Unidos , em dezembro de 2019, o dispositivo já está em uso nos hospitais americanos. 

Solução auditiva confortável – parte dos deficientes auditivos não usam os aparelhos de amplificação que melhoram sua audição. O problema é que os altos e baixos tornam difícil acompanhar conversas e geram desconforto. 

“O Earlens, um dispositivo, anula totalmente o amplificador, e usa uma lente minúscula que fica próxima ao tímpano. Um microfone alojado no processador auricular do dispositivo capta sons, que um algoritmo converte em vibrações que são transmitidas ao tímpano. Em vez de aumentar o som, o dispositivo Earlens recria o efeito das ondas sonoras”. 

Por ora, para os mais abastados, pois o Earlens custa US$ 6.000, por ouvido.

Casa de abelhas inteligente – Segundo Einstein, sem as abelhas a terra se extinguiria em quatro anos. Sem a polinização não haveria plantas, animais e pessoas. Ainda assim, 40% das abelhas morrem anualmente por doenças, pesticidas e mudanças climáticas.

“A Beewise, uma colmeia movida a inteligência artificial, usando robótica de precisão, e visão computacional, pode defender as abelhas dos pesticidas, das mudanças climáticas e melhorar o desempenho na polinização, dobrando a produção de mel, e diminuindo a mortalidade — utilizando a tecnologia inteligente”. 

Ao custo de US$15 mensais para cada casa de abelhas, hospedando 2 milhões de abelhas e monitorando os insetos 24hs diárias.

Hidratante em função do tipo climático – produtos para a pele em função do clima onde você mora. Ulli Haslacher dona da Pour Moi, ao mudar de Viena para o sul da California sentiu reação na pele e com base nessa experiência lançou produtos que atendem a diferenças climáticas. 

“Eles se ajustam a fatores como umidade, temperatura e altitude”.

Tênis de corrida sustentável – A Allbirds desenvolveu o Tree Dasher, um tênis feito de eucalipto, lã merino, óleo de mamona e cana-de-açúcar, que melhora o desempenho e tem uma economia de carbono 1/3 menor do que o tênis comum. Ideal para quem se preocupa com o meio ambiente e não com o preço. Custa US$ 125.

Diante de tanta inovação, faço aqui meu destaque especial. Se o Covid-19 fez grandes estragos na saúde e na economia neste ano de 2020, ao menos os avanços na ciência e tecnologia compareceram de forma vital, principalmente na área de pesquisa que se apresentou agilmente nas vacinas desenvolvidas em tempo recorde.

Carlos Magno Gibrail é consultor, autor do livro “Arquitetura do Varejo”, mestre em Administração, Organização e Recursos Humanos. Escreve no Blog do Mílton Jung.