Conte Sua História de São Paulo: meu pai construiu um “bangalô” para a família

Por Sandra Regina de Almeida Torres
Ouvinte da CBN

No Conte Sua História de São Paulo, a ouvinte da CBN Sandra Regina Torres fala desta gente que chega, que cresce e constrói a cidade com criatividade e perseverança:

Em 1960, minha mãe e minhas duas irmãs — uma de 8 anos e a outra ainda bebê — embarcaram na cabine de um caminhão Chevrolet. O motorista, sensibilizado, decidiu não deixá-las na carroceria junto aos outros passageiros, que incluíam meu pai e as inúmeras malas e sacos de pano. O destino era a capital de São Paulo. Minha mãe, exausta, cuidava das crianças e trocava as fraldas de pano da bebê.

Meu pai, que me contou essa história, não se queixava das dificuldades do trajeto. Preferia lembrar com orgulho das mudanças que percebia: o tom de verde da vegetação ficava mais viçoso à medida que se aproximavam da capital. Ele, marceneiro quase analfabeto funcional, reconhecia as árvores e madeiras pelos nomes.

O segundo momento que ele contava com orgulho foi ao chegarem ao centro da cidade: minha irmã bebê, até então apática, ficou encantada com os luminosos dos prédios, os semáforos e os faróis dos carros. A família nordestina, formada por um pai branco e uma mãe negra, ficou por um bom tempo admirando aquele cenário deslumbrante.

Trinta anos depois, meu pai construiu sozinho nossa casa própria de 20 m², a que chamava de “bangalô”, entre Vila Sônia e Taboão da Serra, acessado por uma pinguela sobre o rio Pirajussara, sem asfalto e com água de um poço cavado por ele. 

São Paulo, para meu pai, era como uma grande feira livre: “Aqui tem tudo o que você imaginar; é só procurar”.  Ele se encantava com a criatividade e as inovações. Um dia, voltou do centro animado porque os motores dos ônibus haviam sido movidos da frente para a traseira dos veículos, oferecendo mais conforto aos passageiros. Mesmo com um salário mínimo, encontrava soluções engenhosas para economizar — como consertar lâmpadas de filamento ou improvisar papel higiênico com folhas de jornal.

Ele também tinha um olhar artístico. Emoldurava recortes de jornais que recebíamos dos vizinhos: imagens do parque Ibirapuera decoravam a sala, enquanto a catedral da Sé era fixada no quarto.

Nunca se arrependeu de ter migrado. Orgulhava-se da decisão e repetia que faria tudo de novo.  Sensível aos mais carentes, parafraseava com frequência a boa música de Eduardo Gudin e Roberto Riberti que ele nem conhecia:Se eu fosse deus, a vida bem que melhorava, se eu fosse deus, daria aos que não têm nada”

Por fim, encerro esse texto lembrando que São Paulo, uma cidade que acolheu minha família, também acolhe exemplos como o Padre Júlio Lancelotti. Parabéns, São Paulo. Feliz aniversário!

Ouça o Conte Sua História de São Paulo

Sandra Regina de Almeida Torres é personagem do Conte Sua História de São Paulo. A sonorização é do Cláudio Antonio. Escreva você também o seu texto e envie para contesuahistoria@cbn.com.br. Para ouvir outros capítulos da nossa cidade, visite o meu blog miltonjung.com.br ou o podcast do Conte Sua História de São Paulo.

((os textos originais, enviados pelos ouvintes, são adaptados para leitura no rádio sem que se perca a essência da história))


O momento certo para começar, não existe

Por Simone Domingues

@simonedominguespsicologa

Foto de Tobi no Pexels

Assim que estiver tudo pronto eu começo!

Essa é uma daquelas frases rotineiras que costumamos dizer quando vamos nos engajar em um novo comportamento, tal como fazer uma dieta, iniciar uma atividade física ou começar um projeto profissional.

E vai começar pelo fim? 

Confesso, faço essa pergunta, curiosa por sua resposta. Afinal, se estiver tudo pronto, não há mais nada ou muito pouco que possa ser feito.

Permita-me a ousadia: gostaria de fazer mais uma pergunta. 

Se você deseja aprender um instrumento musical, se inscreveria em um curso ou para tocar na orquestra da sua cidade?

Por mais óbvio que isso pareça, muitas pessoas criam expectativas para mudanças de hábitos ou alcance de metas como se estes dependessem de fatores externos. Na realidade, iniciar um novo hábito ou desenvolver uma habilidade envolve dedicação e persistência. Leva tempo, causa frustração e desconforto. Envolve processos. Envolve dar um passo por vez. Envolve treinar, errar, recomeçar, falhar, errar de novo, aperfeiçoar. Isso significa progredir.

Numa sociedade imediatista e com baixa tolerância à frustração, ter paciência para progredir soa como falta de foco e de determinação. Sobram ideias de que é preciso ser absolutamente o melhor para poder progredir e, com o endosso promovido pelas redes sociais, ecoam-se expectativas de que todos os feitos devem ser infalíveis.

Padrões que gritam por ser, quando ainda nem estamos

Perdemos tempo em excesso refletindo como seria nossa vida se fossemos de um jeito ou de outro; se tivéssemos isso ou aquilo; a partir de comparações injustas, baseadas em recortes de vidas perfeitas estampadas em posts

Desejamos a perfeição. Não seria isso exatamente o sinônimo de estarmos prontos? Na sua ausência, colocamos lente de aumento em nossos erros ou faltas.  A autocrítica se eleva e procrastinamos, não por preguiça ou dificuldade de resolução, mas como uma estratégia para adiar a tomada de decisão ou o nosso engajamento, aprisionados ao perfeccionismo exagerado que nos enche de temor pelas falhas e possíveis julgamentos alheios; perfeccionismo que nos coloca em labirintos, enviesa o pensamento que surge com pouca lógica. 

Quantas vezes acreditamos que se perdermos peso, seremos mais felizes no amor ou na vida profissional? Quantas vezes adiamos a dieta porque seria melhor começar na segunda-feira e não na próxima refeição?

Não existe momento certo para começar. Não estamos prontos e talvez nunca estejamos, porque mudam-se as necessidades e a vida se encarrega de nos desafiar com novas oportunidades. Como diz Mário Sérgio Cortella: 

“Gente não nasce pronta e vai se gastando; gente nasce não-pronta e vai se fazendo”.

Saiba mais sobre saúde mental e comportamento assistindo ao canal 10porcentomais

Simone Domingues é Psicóloga especialista em Neuropsicologia, tem Pós-Doutorado em Neurociências pela Universidade de Lille/França, é uma das autoras do canal @dezporcentomais no Youtube. Escreveu este artigo a convite do Blog do Mílton Jung