O desafio de preservar a escrita de qualidade diante da tentação da IA

Imagem criada por DALL-E, via OpenAI.

Nesta semana, enquanto revisava arquivos guardados na memória do meu computador, deparei com dois textos que, apesar de publicados em momentos bastante distintos, dialogam de maneira surpreendente com o contexto atual em que vivemos. O primeiro, um artigo de Umberto Eco, publicado no jornal *La Nación*, da Argentina, em 1991. O segundo, um texto recente de Ruy Castro, que li na “Folha de São Paulo”, de 2023. Ambos os textos me levaram a refletir sobre um tema que tem estado cada vez mais presente em nossas discussões: a importância de exercitarmos a qualidade da escrita diante da ascensão da inteligência artificial.

No artigo de Umberto Eco, o filósofo, escritor e semiólogo italiano refletia sobre o temor que os sábios da Antiguidade tinham em relação à invenção da escrita e, posteriormente, dos livros. Eles acreditavam que esse novo instrumento poderia alterar o comportamento humano, limitando a capacidade de memória e de pensamento crítico. É curioso perceber que, mesmo tantos séculos depois, esses medos ainda ressoam, agora em um novo contexto. A inteligência artificial, com sua capacidade de gerar textos e ideias de forma quase automática, nos faz questionar: será que as máquinas poderão limitar ou até substituir a criatividade humana?

Já Ruy Castro, jornalista e escritor brasileiro, em seu texto mais recente, faz uma análise crítica e bem-humorada sobre o conceito de “escrever bem”. Para ele, ninguém realmente “escreve bem” de primeira. Escrever é, na verdade, um exercício de reescrita. É no processo de revisar, cortar excessos, eliminar palavras ou frases desnecessárias e clarificar a mensagem que reside o segredo de um bom texto. Castro nos lembra que a escrita é um ato de reflexão, que exige tempo, paciência e, acima de tudo, autocrítica.

Ao comparar essas duas leituras, fico impressionado com a atualidade das preocupações de Umberto Eco e a pertinência das observações de Ruy Castro. Eco nos alerta para o risco de confiarmos demais nas tecnologias que, embora úteis, podem nos afastar do processo criativo essencial para a produção do conhecimento humano. Por outro lado, Castro nos mostra que a boa escrita não é fruto de genialidade espontânea, mas de um trabalho árduo de refinamento e aprimoramento contínuo.

Nesse cenário, a inteligência artificial surge como uma ferramenta poderosa, capaz de produzir textos com uma velocidade e precisão impressionantes. No entanto, há uma preocupação legítima de que essa facilidade possa nos levar a perder a profundidade e a qualidade que caracterizam a escrita humana. Quando deixamos as máquinas fazerem o trabalho por nós, corremos o risco de nos distanciarmos do processo criativo, que envolve não só a reflexão e a dúvida, mas também a reescrita e, muitas vezes, a frustração de não alcançar imediatamente o resultado desejado.

Eco nos lembra que os livros prolongam a vida ao preservar a memória e o conhecimento. Mas esses livros foram escritos por mãos humanas, imbuídas de sentimentos, pensamentos e experiências únicas. A inteligência artificial, por mais sofisticada que seja, ainda não consegue capturar essa dimensão humana. Ela pode imitar estilos, reproduzir padrões, mas não substitui a alma que se revela em cada frase cuidadosamente escolhida, em cada ideia que emerge do conflito entre o que queremos dizer e o que conseguimos expressar.

Portanto, ao nos depararmos com o avanço da inteligência artificial, torna-se mais importante do que nunca exercitarmos a qualidade da nossa escrita. Devemos encarar a IA não como uma substituta, mas como uma ferramenta que pode nos ajudar a alcançar novos patamares de criatividade, desde que sejamos nós, seres humanos, a guiar o processo. A escrita é uma das formas mais íntimas de expressão do ser humano, não apenas para comunicar ideias, mas também para transmitir emoções, experiências e, em última análise, nossa própria humanidade.

Exercitar a escrita frente a ascensão da inteligência artificial é reafirmar nosso compromisso com o que nos torna únicos. É garantir que, mesmo em um mundo dominado por máquinas, a essência do que significa ser humano – com toda a sua complexidade e profundidade – continue a ser preservada, celebrada e transmitida às futuras gerações.

Assim, a lição de Ruy Castro se torna ainda mais relevante: reescrever é essencial. É preciso ter a coragem de revisar o que as máquinas produzem, de refinar e humanizar, garantindo que a palavra escrita continue sendo uma extensão do pensamento e da alma humana, e não apenas um conjunto de algoritmos friamente calculados. Porque, no fim, é a nossa capacidade de criar, refletir e expressar que define a verdadeira qualidade da escrita – e isso, nenhuma máquina pode substituir. 

Rádio na Era do Blog: Eu foco, tu focas, por Ruy Castro

 

Na fusão de mídias, confundiu-se muita coisa. A línguagem, entre elas. Tem texto de rádio escrito como se fosse para jornal; tem texto na internet lido na televisão; tem jornalão redigido como folhetim. Copia-se de um e se cola no outro, sem que se pare para pensar a necessidade do público de cada uma das mídias. Além disso, há expressões que usamos pelo hábito. Sem reflexão. Sem noção. Foram sobre algumas dessas que o jornalista e escritor Ruy Castro escreveu, neste sábado, na Folha. Um alerta para redatores de rádio, cada vez em menor número, e para redatores de blog, que não param de crescer.


Eu foco, tu focas, ele foca

RIO DE JANEIRO – Já tratei do assunto nesta coluna, mas, como diria o Cony, ninguém tomou providências. Continuamos a chamar um filme de “longa”, mesmo que ele tenha a rotineira hora e meia de projeção -o que, somando os trailers, os comerciais e o tempo que se gasta indo lá fora comprar pipoca, perfaz uma sessão ideal de duas horas. Então, por que “longa”?

Deve ser para distingui-lo dos “curtas”, que têm 12 ou 15 minutos. Mas quantos curtas você vê por ano a ponto de obrigarem um filme normal a ser chamado de longa? Longas, até outro dia, eram “E o Vento Levou”, “Os 10 Mandamentos”, “Ben-Hur” e “Lawrence da Arábia”, que duravam para lá de quatro horas. Se, hoje, qualquer filme é um longa, o que seriam aqueles queridos mamutes?

Ou, quando se trata de filmes do passado -digamos, “A Malvada”, com Bette Davis, ou “Barnabé, Tu És Meu”, com Oscarito-, lê-se às vezes que eles foram gravados assim ou assado. Só que os filmes do passado não eram gravados. Eram filmados. Quem grava imagens é a televisão, e o cinema, pelo menos o anterior a 1990, sempre dependeu de película, laboratório, revelação e outras práticas ancestrais.
Falando em gravar, não perdemos a mania de escrever que “Fulano entrou em estúdio para gravar seu novo CD”. Mas onde queriam que ele o gravasse? Na rua, do outro lado da calçada? “Entrar em estúdio para gravar” é o mesmo que “apostar todas as fichas”, “correr atrás do prejuízo” ou “dar nó em pingo d’água”. É escrever sem ter de pensar. Uma palavra puxa outra, como uma locomotiva que arrasta vagões vazios.

Mas minha grande birra é com o verbo focar. Quando leio, por exemplo, que “Ronaldo foca voltar à seleção”, conjugo imediatamente eu foco, tu focas, ele foca, e imagino o Fenômeno batendo as nadadeiras. Com todo o respeito.


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