Por Maria Lucia Solla
Ouça o texto “De impunidade” na voz da autora

Meu filho acaba de ser assaltado, sob mira de armas e ameaça de lhe tirarem, num piscar de olhos, a vida.
Teu filho, nossos filhos foram ou serão assaltados mais de uma vez, com certeza, se tiverem a graça de saírem da experiência com vida.
Não sou pacifista nem belicosa, mas quero justiça e punição exemplar para começarmos a sanar a doença virulenta que corrói esta sociedade desgovernada. Não é hora para gentileza e rapapés. O basta à loucura, e à violência desenfreada, precisa ser abrupto para que se possa mudar a direção.
Meu filho trabalha; sempre trabalhou, e muito. É capaz, é bom filho, bom amigo, excelente profissional, e tem uma garra que vi em poucos, nesta vida minha. Não basta. Nada basta!
Dirigentes, legisladores e pastores dos rebanhos desta republiqueta de bananas, de dólares nas cuecas e em Bíblias ditas sagradas, largaram a direção do barco, há muito tempo, e se sentaram à beira do caminho, sob a sombra das poucas árvores que escaparam de sua ganância desmedida, e estão contando notas e moedas de toda espécie e de toda proveniência, exatamente como os marginais que estão agora contando o dinheiro que meu filho transportava e que seria destinado à folha de pagamento de seres humanos que, como meu filho, trabalham pelo dinheiro que deveriam receber hoje.
Não sei, e nem ele ainda sabe o que vai fazer a seguir. Daqui do assento 10 C do avião da Gol, com destino a Brasília, seguro as lágrimas e tento domar meu coração, que dá pinotes circenses dentro do meu peito, que suporta a duras penas, e aliviado por profundos suspiros, a avalanche de emoções que toma conta de mim.
Faço uma prece, pensando um trilhão de coisas ao mesmo tempo. Entro em curto-circuito. Seguro meu queixo para não bater os dentes e chamar atenção.
Insisto dizendo que a ação para estancar a hemorragia de nossa sociedade precisa ser drástica e imediata. Intervenção de vida ou morte.
É preciso extirpar o tecido doente, antes que o corpo inteiro sucumba. Não adianta mais verborragiar na mesa do bar para se deliciar com o som magnífico da própria voz.
É preciso devolver a vida aos nossos filhos.
É preciso devolver-lhes a esperança e a alegria de viver.
É preciso agir; por você, por mim, pelos teus filhos e pelos meus.
Jogar na jaula de leões famintos e dar de comer às ariranhas, o criminoso reincidente.
Cansei. Incendiei. Ensandeci!
Alguém me ajuda, por favor! Perdi o sorriso, e a leveza bailarina que trazia comigo transformou-se num monstro pesado e horrendo.
Os dedos de uma de minhas mãos já não bastam para contar as vezes em que eu e meus filhos fomos atacados por seres humanos; nossos semelhantes. Perdi a conta de quantas vezes nos roubaram, desrespeitaram; riram de nós.
Chega!
Acredito que somos a face material de Deus, mas é preciso que nos unamos para que ele se manifeste; para que se faça, definitivamente a Luz. Agora, como é possível gerar Luz se nos acostumamos à treva, ao medo, ao desrespeito, à traição. À mentira desavergonhada.
Há tempo demais remamos, desesperados, pela Vida, num barco furado que faz água sem parar.
Chego à Brasília e ouço de minha amiga Cláudia que sua casa fora assaltada, que amarraram seu marido, filho e jardineiro. Machucaram seu filho e lhes roubaram computadores, instrumentos de trabalho, e tudo o que puderam carregar; numa dança regida por ameaças às suas vidas.
Acordo na manhã seguinte e, ainda à mesa do café da manhã, Cláudia, a nora da minha Cláudia desce as escadas, assustada. Desta vez era ela quem trazia o coração aos pinotes. Recebera um telefonema de seu pai que tivera a fazenda invadida por bandidos. Ele, diabético e hipertenso, foi machucado no corpo, na alma e na dignidade, que acabou em frangalhos. Fizeram-lhe cortes na cabeça, a coronhadas, e roubaram e carregaram o que puderam. Pensam vocês que os ataques foram feitos em nome da fome? Não, foi em nome da ganância e do desrespeito que campeiam livres e soltos por todos os cantos deste país, e que viraram moda, seguindo o exemplo de regentes de nossas orquestras sociais.
O primeiro violino rouba, mata, corrompe e desrespeita, e os outros seguem-lhe os acordes.
Depois de tudo isso, nosso pequeno grupo de bons amigos conseguiu manter cabeças erguidas e aproveitar a companhia uns dos outros; mas seguramente jamais seremos os mesmos. Não saímos dessas experiências, piores, mas nossas consciências esbofeteadas, abriram ainda mais seus olhos. Queremos justiça e educação. Não estamos interessados no desenvolvimento desenfreado que disputa classificação com países distantes. Queremos nosso próprio modelo. Queremos crianças que saibam que galinhas e ovos não nascem em bandejinhas de isopor, embalados em plástico. Queremos proteger o solo onde pisamos. Queremos menos prédios e menos carros, menos coisas compradas e mais amizades e amores conquistados.
Só humanos tem direito a humanidade. Só quem respeita os direitos do próximo tem direito a ter os seus, respeitados.
O que é que você acha de tudo isso?
Chega, ou ainda tem fôlego para mais?
Chega, ou ainda há tempo e espaço, neste curto espaço de tempo que é a vida?
Você ainda tem paciência para prefeito levando propina na cara dura, e para político comprando voto com o teu dinheiro e com o meu?
Você ainda suporta político sem vergonha na cara, reinaugurando obra com a cara suja de lama da campanha política prematura, para manter a boca na botija?
Não ficou, ainda, claro que tudo isso é feito à custa de sangue e lágrima dos teus filhos e dos meus?
Pense nisso, ou não, e até a semana que vem.
Maria Lucia Solla é terapeuta, professora de língua estrangeira e ministra curso de comunicação e expressão. Aos domingos, escreve no Blog do Mílton Jung.
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