Por Maria Lucia Solla

Ouça este texto na voz e sonorizado pela autora
Nunca fui de ter medo, e olha que já tive motivo de sobra; mas hoje tenho. Não sei se é medo, medo, mas é uma cosquinha forte no plexo sollar e no umbilical, sabe como é, que não dá moleza. Medo do nosso afastamento da natureza e da sua reação em cadeia. Medo da cadeia dos prédios que se erguem atrás, na frente, do meu lado esquerdo e do direito. Medo do formigueiro da cidade e do politiqueiro que depaupera o campo. A maioria não pisar na terra e não ver o nascer nem o pôr-do-sol, e disso não sentir falta, me dá medo.
Vivemos em caixas, por enquanto fixas, empilhadas e divididas em pequenas caixas onde se subdivide a família. Saímos dela para entrarmos numa caixa, por enquanto limitadamente móvel, que nos leva até um estacionamento abaixo do solo; e entramos numa outra caixa com maior mobilidade que a anterior. Vrumm, saímos dali dentro dela, pimpantes sob o efeito de café, e depois de passar ali muito tempo, olhando no relógio e bufando, desviando de motoqueiros que camicazeiam pelo caminho, já suados e com pouca energia para tocar o resto do dia, estacionamos noutro sub-solo, descemos da caixa, entramos noutra caixa de média mobilidade e subimos até chegar a mais uma caixa fixa. Ali, antes de começar a jornada, engolimos um punhado de pílulas que supostamente repõem a energia perdida e suprem a falta do sol, da chuva, da lua, da terra, do diálogo, do amor, do amar e do afago.
Não se faz mais casa com janela para o jardim, com porta de entrada alta e larga para receber alta e largamente parentes e amigos. Horta é coisa do passado que nem é remoto. Passado remoto é o tempo de juventude dos meus avós, quando se colocavam cadeiras na calçada e se sentava ali para socializar com vizinhos ou falar da vida alheia. As senhoras ofereciam biscoitos recém saídos do forno, e os senhores, as notícias do jornal da manhã. Hoje socializamos e lemos o jornal virtualmente, alheios ao que se passa debaixo do próprio nariz, enfiando e tirando a mão, distraídos, de saquinhos de biscoitos com data de validade estendida. E proliferam os hoteis-fazenda, disneilândias da terra perdida.
Quando noutro dia disse a um amigo que não checo e-mails no iPhone, achei que fosse sacar um crucifixo na minha direção. Já não nos garantem o direito de nos desligarmos da rede, que tudo sabe, tudo grava, tudo vê. Tenho saudade de conversar olho no olho e tenho medo de sentir cada dia mais medo. Uma saudade medonha e um medo tamanho que nem preciso buscar; vêm a mim servidos na mesa, cobertos de triste, triste tristeza.
Maria Lucia Solla é terapeuta e professora de língua estrangeira. Aos domingos, escreve no Blog do Mílton Jung