A sociedade brasileira está envelhecendo em ritmo acelerado, e um fenômeno demográfico notável aponta para a feminilização da velhice: as mulheres representam a maior parte da população idosa, com 72% dos centenários sendo do sexo feminino. A tendência, no entanto, vem acompanhada de desafios como sobrecarga de trabalho, responsabilidade como cuidadora familiar e, muitas vezes, menor renda. Esse panorama do envelhecimento e a importância das escolhas individuais para uma vida longeva com qualidade são o foco da entrevista com Cláudia Franco, criadora de conteúdo digital, atleta, mentora, modelo 60+ e empresária, no programa Dez Por Cento Mais, no YouTube, apresentado pela psicóloga e jornalista Abigail Costa.
O confronto com o “Anti-Envelhecimento”
Cláudia Franco, que começou a compartilhar suas reflexões no Instagram ao se aproximar dos 60 anos, confronta a resistência social em aceitar a velhice, muitas vezes mascarada em elogios como “você não parece a idade que tem”. Para ela, essa mentalidade reflete um preconceito incutido na sociedade:
“Eu nunca vi o envelhecer como algo ruim. É o que eu estou me tornando, eu estou me transformando, o ser humano está em transformação desde quando nasce.”
A especialista defende o movimento pró-envelhecimento (pro-aging), em oposição ao termo anti-aging (anti-envelhecimento) frequentemente usado pela indústria.
“Eu sou avessa a esse termo, porque a gente tem que combater aquilo que é ruim, por exemplo, uma doença. Quando a gente fala anti-aging, a gente está combatendo o nosso envelhecimento, um processo natural do ser humano.”
O objetivo do autocuidado, explica, não deve ser o de esconder ou eliminar as marcas da idade, mas sim de garantir a saúde e a preservação da característica individual. A motivação por trás das escolhas de aparência é o ponto central. Por exemplo, cada um define se quer pintar o cabelo ou não, o importante é o seu propósito: “Essa corrida para permanecer com a cara de jovem, isso me incomoda, porque eu acho que é sofrimento. Não tem pior coisa na vida do que você estar desconfortável dentro da própria pele“, afirma.
A lição de casa da maturidade
A maturidade, segundo Cláudia Franco, traz consigo uma grande liberdade por desvincular o indivíduo da necessidade de se adequar a padrões.
“Eu não preciso estar ali encaixada em nenhum padrão, isso é a maior liberdade que uma mulher pode ter. Sabe, você ser feliz e segura com o que você é.”
No entanto, essa liberdade exige um compromisso ativo com a própria longevidade. A entrevistada destaca a importância de o indivíduo buscar autonomia — física, mental e financeira — para evitar a dependência de terceiros. Esse preparo é fundamental, visto que a fase da velhice pode ser a mais longa da vida.
“Eu posso ser longeva, mas não significa que eu vou ser saudável, eu posso ser longeva e estar na cama. Eu quero viver esses meus 20, 30, quem sabe, 40 anos, mas eu quero viver com saúde.”
Cláudia Franco, ao relatar sua própria mudança de vida de São Paulo para o litoral, exemplifica a “faxina” necessária: simplificar a vida, desapegar-se e se preparar financeiramente. Ela ressalta que a maturidade não é uma fase de descanso, mas sim de troca de demandas, mantendo-se em atividade constante.
“Não é uma fase que a gente vai parar e descansar, a gente vai trocar as demandas. A gente não pode parar, porque eu vejo que tem alguém que fala: ‘ah, se parar enferruja’. E é verdade, se você para seu corpo recente.”
A menção do envelhecimento como tema de redação na mais recente edição do ENEM trouxe a discussão para perto de gerações mais jovens, reforçando a urgência em pensar o futuro. Contudo, Cláudia Franco observa que grande parte dos jovens não está ativamente se preparando para envelhecer, enquanto uma parcela dos 50+ já despertou para a necessidade de manter o “veículo funcionando” por décadas à frente. Ao final, ela deixou uma mensagem sobre empatia e acolhimento:
“Quando a gente acolhe o envelhecimento do outro, consegue entender o nosso próprio. Envelhecer está na moda.”
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Quero te fazer um convite para iniciarmos essa conversa.
Feche os olhos por alguns instantes e reflita:
Quem você gostaria de levar com você na sua velhice?
Confesso que, no meu caso, a resposta não seria singular, e sim plural.
Lembrei de Spinoza, filósofo holandês que nos ensina sobre os afetos, essas transformações que ocorrem em nós, boas ou ruins, quando estamos em contato com outras pessoas e com o mundo. Afeto é justamente isso: o ato de afetar e ser afetado, registras em nós as marcas deixadas pelas experiências.
Ao pensar nisso, vários nomes vieram à mente. Memórias que relaxaram meu rosto e abriram um riso fácil, despretensioso. São vocês que nortearam meus pensamentos e que, em minha imaginação, gostaria de ter comigo daqui a 20 ou 30 anos.
Mas será que é assim que a vida funciona?
A vida nos ensina constantemente com os imprevistos e incertezas. Até lá, será que essas pessoas permanecerão ao meu lado? Continuarão sendo capazes de me fazer sorrir apenas por existirem nas minhas lembranças?
Não sei. Talvez seja pouco provável. Afinal, a vida não é linear. tudo se transforma, novas relações surgem, vivências inéditas nos atravessam.
Somos afetados o tempo todo. Descobrimos afinidades inesperadas, criamos laços que antes nem imaginávamos. Nesse curso imprevisível da longevidade, somos também ressignificados.
Com certeza essas pessoas estarão comigo de alguma maneira, seja presencialmente na minha vida ou nos afetos que se eternizaram no curso da vida, sejam eles positivos ou negativos.
Às vezes penso que os afetos são eternos, mas isso não significa que mantenham a mesma intensidade. O importante é não nos fecharmos ao novo, às experiências que, no passado, talvez não estivéssemos prontos para viver, mas que podem se tornar significativas o suficiente para permanecerem vivas até nossos últimos dias.
Os amores e os afetos que vivenciamos são diferentes, possuem intensidades distintas. Podem coexistir ao longo das décadas. Amar uma pessoa não anula a possibilidade de amar outra. Que garantia temos de permanecer com as mesmas pessoas até a velhice?
Pois é. Muitas perguntas, poucas respostas.
Como princípio básico, vale, então, considerar: mantenha sua rede afetiva nutrida de bons encontros e memórias, e esteja aberto a ressignificar as possibilidades de afeto conforme cada experiência. Não desperdice os vínculos que são verdadeiramente significativos para sua vida, eles podem, sim, ser eternos.
E você? Quem levaria para a sua velhice?
Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Departamento de Gerontologia da SBGG-SP. Mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung
“Não é o outro falar de nós, é nós falarmos sobre a nossa existência”
Diego Félix Miguel
Uma geração de lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans, travestis e transgêneros chegou à velhice carregando marcas de rompimentos familiares, da epidemia de HIV/Aids e de um sistema de saúde que muitas vezes as afasta, em vez de acolher. Nesse cruzamento entre idade, gênero, orientação sexual e desigualdade, estão as velhices LGBT+, tema tratado por Diego Félix Miguel, doutorando em saúde pública e presidente do departamento de gerontologia da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, em entrevista à jornalista e psicóloga Abigail Costa, no programa Dez Por Cento Mais.
Velhices plurais, vulnerabilidades acumuladas
Diego propõe que o ponto de partida seja enxergar o envelhecimento como conquista coletiva. “Eu acredito que nós precisamos pensar na longevidade como uma grande conquista”, afirma. O aumento da expectativa de vida está ligado a avanços científicos, tecnológicos e ao acesso à informação. Essa conquista, porém, não é distribuída da mesma forma para todas as pessoas.
Ele lembra que desigualdades atravessam a vida inteira: raça, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, classe social. “Quando falamos de velhices, nós estamos falando de pluralidade”, resume. A ideia de “velhices”, no plural, tenta corrigir a imagem homogênea da pessoa idosa e expõe grupos que chegam à longevidade sob maior risco de violência, violação de direitos e isolamento.
Ao tratar especificamente das velhices LGBT+, Diego volta no tempo. Ele lembra que o movimento ganhou mais visibilidade a partir dos anos 1960, quando parte da população LGBT começou a se colocar publicamente. Esse gesto teve custo alto: “Muitas pessoas romperam vínculos familiares, porque, ao invés de receberem conforto e segurança, encontravam violência”, explica.
Longe de suas famílias de origem, essas pessoas formaram redes afetivas também conhecidas por famílias de escolha. O alicerce dessa rede, porém, foi abalado nas décadas de 1980 e 1990, com a epidemia de HIV/Aids. “As pessoas sobreviventes desse episódio são as que chegaram na velhice hoje”, diz Diego. Muitas perderam amigos, companheiras e companheiros, e envelhecem com redes de apoio fragilizadas.
Idadismo, saúde e medo de buscar cuidado
Além da história marcada por perdas e exclusões, essas pessoas enfrentam um obstáculo que atinge toda a população idosa, mas com impacto específico sobre quem é LGBT+: o idadismo, o preconceito baseado na idade. “Um dos aspectos que o idadismo traz é a invisibilidade da sexualidade e do gênero na velhice”, aponta.
Na prática, isso significa ver a pessoa idosa como alguém sem desejo, sem vida sexual, sem identidade de gênero que mereça atenção. Se esse apagamento já pesa sobre idosos em geral, o efeito se agrava quando se trata de uma mulher lésbica, de um homem gay, de uma pessoa trans ou travesti.
Diego cita pesquisas que mostram um padrão preocupante: “Muitas pessoas LGBT deixam de frequentar os serviços de saúde, de fazer exames preventivos ou acompanhamento médico, justamente por medo de sofrerem violência”. Esse medo nasce de experiências anteriores, em que não foram tratadas pelo nome social, tiveram sua identidade de gênero desconsiderada ou ouviram comentários discriminatórios.
Quando finalmente procuram ajuda, costumam esperar até o limite da dor ou da doença. E ainda correm o risco de enfrentar um atendimento violento, explícito ou sutil. Diego descreve situações em instituições de longa permanência para idosos em que o acolhimento é condicionado à ideia de que a pessoa LGBT precisa “se encaixar” em uma norma que nega quem ela é. Em alguns casos, pessoas trans são pressionadas a destransicionar para serem aceitas pela instituição. “Isso é perverso, é violento, é sutil, é silencioso e dói tanto quanto uma violência física”, resume.
Segurança, trabalho e renda: o impacto da exclusão
A discussão sobre saúde se mistura com outra camada de vulnerabilidade: a segurança financeira. Muitos idosos LGBT viveram na informalidade. Diego lembra que a escola, para uma parte das pessoas trans, era um ambiente hostil; o mercado formal de trabalho, pouco acessível; a discriminação, recorrente.
O resultado aparece agora, na velhice, em trajetórias marcadas por baixa renda, aposentadorias insuficientes ou inexistentes e dependência de redes de apoio que nem sempre existem. “São pessoas que sobreviveram a múltiplos processos de violência e demandam um cuidado maior em saúde mental”, explica. Depressão, pensamentos suicidas e isolamento social surgem como sinais de alerta.
Diego reforça que o isolamento é um fator central para a perda de autonomia e independência na velhice, o oposto do que se busca quando se fala em envelhecimento ativo: viver com dignidade, com possibilidade de decisão e com apoio adequado depois da aposentadoria.
Ambientes seguros e o papel dos profissionais
Uma parte importante da conversa passa pela formação de profissionais e pelo modo como eles se apresentam aos pacientes. Do preenchimento de um formulário à maneira de fazer perguntas, detalhes revelam se aquele espaço é acolhedor ou excludente.
Diego destaca um ponto simples, mas decisivo: abandonar perguntas que presumem heterossexualidade, como “qual é o nome do seu marido?” ao atender uma mulher. Para ele, o cuidado começa ao abrir espaço para que a própria pessoa nomeie sua realidade. Quando o serviço se mostra preparado para isso, a percepção muda. “Quando pessoas idosas LGBT chegam em um ambiente e percebem que há profissionais assumidamente LGBT, elas se sentem mais confortáveis e confiantes”, observa.
Em alguns países, profissionais aliados exibem símbolos, como a bandeira do arco-íris, para indicar que aquele consultório é um espaço sem discriminação. O objetivo não é criar um rótulo, mas sinalizar que a conversa sobre gênero e sexualidade pode acontecer sem medo.
Isso, porém, não elimina o risco de reforçar estereótipos. Diego alerta que, na tentativa de “fazer o certo”, serviços podem criar soluções que, na prática, segregam — como reservar um “quartinho” específico para uma idosa trans dentro de uma instituição, em vez de garantir o direito de ela viver no espaço das mulheres, em condições de igualdade.
Representatividade e a recusa da neutralidade
A presença de pesquisadores e profissionais LGBT na produção de conhecimento sobre velhices LGBT é outro eixo que Diego considera decisivo. “Não é o outro falar de nós, é nós falarmos sobre a nossa existência”, afirma.
Ele menciona o movimento de pessoas trans que reivindicam o direito de estudar e pesquisar suas próprias experiências de envelhecimento. A defesa é direta: políticas públicas, práticas de cuidado e pesquisas ganham outra profundidade quando formuladas por quem vive na pele as consequências do preconceito.
Nesse contexto, Diego rejeita a ideia de neutralidade como valor. A referência a Paulo Freire ajuda a organizar o raciocínio. “A neutralidade nada mais é do que a covardia de não se ter um posicionamento”, diz. Silenciar diante da discriminação não elimina o conflito; apenas cede espaço para que a estrutura de poder vigente siga intacta.
Ele lembra que já existem projetos de lei no Congresso voltados à criação de uma política nacional para pessoas idosas LGBT+, com foco na integração entre SUS (Sistema Único de Saúde) e SUAS (Sistema Único de Sistemas Sociais) e na qualificação dos serviços que já atendem a população idosa. A ampliação do acesso à educação, inclusive por meio de cotas, também é citada como caminho para que pessoas LGBT ocupem universidades, campos de pesquisa e espaços de decisão.
A dica Dez Por Cento Mais
Na parte final da entrevista, Diego volta a um ponto que atravessa toda a conversa: a importância de transformar gênero e sexualidade em temas que possam ser tratados em família, sem segredo nem tabu. “Vale muito a pena perguntar sobre a vivência dessas pessoas, escutar mais e supor menos”, recomenda.
Ele relata casos de alunos que, após suas aulas, perceberam que nunca tinham perguntado a um irmão gay como ele se sente nos lugares que frequenta, quais medos carrega, de que mudanças precisa para se sentir seguro. A sugestão de Diego é simples e direta: trazer esse assunto para a mesa, inclusive em um almoço de domingo.
Para as famílias que têm filhos, filhas, netos ou netas LGBT+, o recado é claro: a escuta pode ser ponto de partida para uma velhice com mais dignidade, menos isolamento e menos medo. E, para profissionais de saúde e para a sociedade em geral, a entrevista funciona como um convite à responsabilidade: reconhecer as velhices LGBT+ como parte legítima da população idosa e ajustar práticas, protocolos e políticas a essa realidade.
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Viver mais e viver melhor depende de escolhas que começam cedo e seguem por toda a vida: cuidar do corpo, da cabeça, das relações e do bolso. Essa é a defesa de Mariza Tavares, jornalista e escritora, autora de A Vida Depois dos 60 – Prepare-se para criar a sua melhor versão (Best Seller), que propõe olhar para a longevidade como projeto contínuo, sem romantização e sem fatalismo. Em conversa com Abigail Costa, jornalista e psicóloga, no programa Dez Por Cento Mais, no YouTube, Mariza lembra que “a longevidade é uma construção da vida inteira.”
A autora propõe que a longevidade seja encarada como a soma de diferentes “reservas” acumuladas ao longo da vida. A financeira, alimentada por pequenos aportes feitos desde cedo, quando “o tempo conspira a nosso favor”. A física, cultivada por meio do movimento contínuo e da manutenção da força muscular. A mental e a social, fortalecidas pelas conexões que sustentam o ânimo e estimulam o autocuidado. Mariza destaca que estudos de décadas apontam a qualidade das relações como fator decisivo para envelhecer melhor e sintetiza a ideia com uma imagem pessoal: “Dentro de mim eu tenho todas as idades.”
O alerta é direto: adiar decisões tem seu custo, mas começar tarde não impede ganhos. “Mesmo pessoas com um estado fragilizado se recuperam em força muscular com o devido treino.” O verdadeiro risco, segundo Mariza, está em se render aos estigmas: “O mais triste é a gente introjetar aquela coisa de que ‘eu tô muito velho para isso’.”
Trabalho, aposentadoria e combate ao etarismo
A transição do trabalho pago para outras formas de atuação pede preparo, não improviso. Mariza critica a pouca atenção das empresas ao tema e defende políticas que retenham e adaptem funções para profissionais mais velhos. “Nós temos que ser militantes da velhice”, diz, ao apontar microagressões e estereótipos que afastam pessoas 60+ de oportunidades — especialmente mulheres, alvo precoce do idadismo.
A aposentadoria sem projeto pessoal tende a abrir espaço para vazio e isolamento. A saída, segundo ela, está em redes de convivência, mentoria intergeracional e flexibilidade: “Eu posso usar o meu repertório para ensinar.”
Afeto, sexualidade e novas combinações de vida
Mariza propõe tratar sexualidade na maturidade sem tabu, inclusive nas consultas médicas. O foco é ampliar repertório e comunicação entre parceiros, não reduzir a vida íntima a desempenho. “Sexualidade nos acompanha até o final da existência.” Também reconhece arranjos de vida em que muitas mulheres 60+ escolhem autonomia, amizade e viagens em grupo, sem abrir mão de bem-estar para “ter alguém” a qualquer custo.
No fechamento, ela oferece um pequeno ajuste de rota: “10% a mais de confiança em si mesmo.” Pode virar bússola prática: “Vou me divertir 10% mais, vou namorar 10% mais, vou celebrar a vida 10% mais.”
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“Desejo não envelhece.” A afirmação do Dr. Fabrício Oliveira poderia ser apenas uma provocação retórica se não viesse sustentada por mais de uma década de trabalho clínico com pessoas idosas e pela escuta atenta a histórias muitas vezes silenciadas dentro de casa. No programa Dez Por Cento Mais, apresentado por Abigail Costa, no YouTube, o psicólogo e gerontologista defendeu com firmeza que envelhecer não significa perder vontade, nem identidade.
A entrevista trata de um tema ainda cercado por preconceitos: a sexualidade na maturidade. “As pessoas confundem sexualidade com ato sexual. Sexualidade é afeto, é toque, é desejo, é companheirismo. E isso não tem prazo de validade”, disse Fabrício, que, desde 2010, atua no universo do envelhecimento com foco no bem-estar emocional, psicológico e relacional dos idosos.
“Eu só atendo idosos”
A decisão de se especializar no público idoso nasceu de um encontro entre a sensibilidade clínica e a demanda reprimida. Tudo começou com um trabalho de conclusão de curso que virou referência acadêmica. Depois, veio uma reportagem de televisão que repercutiu de forma inesperada. “Os idosos começaram a me procurar porque se sentiram representados. Eles diziam: ‘doutor, eu tenho vontade de reencontrar o primeiro amor, mas os meus filhos acham isso uma bobagem’”.
Fabrício entendeu que não bastava escutar. Era preciso acolher, orientar e também educar as famílias. Por isso, passou a oferecer atendimento domiciliar. “O idoso vai muito ao médico. Psicólogo? Só se for alguém que vá até ele. No consultório ele não aparece”, explicou. A visita à casa do paciente, segundo ele, abre espaço não só para a escuta terapêutica, mas também para a reorganização do ambiente doméstico — desde a retirada de tapetes até conversas com os filhos que, sem perceber, reforçam o etarismo.
Miss Longevidade e o protagonismo invisível
Se os consultórios ainda são pouco acessados, as passarelas podem ser caminhos de transformação. Foi assim que surgiu o projeto Miss e Mister Longevidade, idealizado por Fabrício em João Pessoa e já realizado em várias cidades da Paraíba. “A mulher passa o ano pensando no vestido. A neta vai à escola e diz: ‘minha avó é Miss’. Isso muda tudo.”
Mais do que promover autoestima, o concurso combate um estigma estrutural: a exclusão social da velhice. “A maior violência contra o idoso no Brasil não é a financeira. É a psicológica”, alertou. E parte dela começa na infância, quando se ouve frases como “cuidado com o velho do saco” ou se vê bruxas velhas como vilãs em contos infantis. Para ele, mudar isso exige uma presença ativa: “O idoso precisa ser protagonista. Quando ele afirma sua identidade, a família pensa duas vezes antes de zombar da idade ou fazer comentários discriminatórios”.
A velhice como escolha de vida
Perguntado sobre o que espera da própria velhice, Fabrício respondeu sem rodeios: “Eu não quero ser um velho cheio de manias. Mania afasta. Eu quero ser o velho legal, que abre a casa para os amigos, que está de boa”. Ele aposta na leveza como estratégia de convivência e qualidade de vida. E reforça: “Envelhecer é natural. O que não é natural é se isolar, deixar de viver, parar de amar”.
Ao fim da conversa, deixa uma sugestão simples, mas poderosa: “Acorde, olhe no espelho e diga: hoje eu envelheci mais um dia. E que bom que estou vivo”. Para ele, aceitar o processo com naturalidade e presença é a chave para viver bem — e melhor — os anos que virão.
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“(…) então toma, quero ver amor se aguenta pentada com a quarentona.”*
Há dias em que silencio. Talvez para conter um desconforto que me acompanha desde cedo – o mesmo que muitas pessoas sentem ao serem caladas por estereótipos, preconceitos e discriminação, apenas por existirem.
Lembro de quando, aos cinco anos, beijei um coleguinha na escola. O olhar reprovador da professora me fez sentir diferente, deslocado, como se houvesse algo errado comigo. Não havia maldade no gesto, mas ali aprendi que meu afeto era um problema. Esse sentimento se intensificou na adolescência, quando qualquer deslize poderia resultar em violência, dentro e fora de casa. Para muitas pessoas LGBTQIA+, o lar, que deveria ser um espaço seguro, é também um lugar de medo.
A sexualidade sempre ocupou esse espaço de desconforto, especialmente para quem desafia normas sociais. Com o tempo, percebi que esse silenciamento retorna de forma ainda mais perversa na velhice, por meio do idadismo. Como se pessoas idosas perdessem o direito ao desejo e ao prazer, e a sociedade insistisse em vê-las como pessoas assexuais.
A relação entre idade e sexualidade ganha nuances ainda mais instigantes quando analisada sob a perspectiva de gênero. Enquanto os homens idosos, apesar dos tabus, ainda desfrutam de certos privilégios, as mulheres idosas seguem invisibilizadas e silenciadas, sendo socialmente pressionadas a reprimir sua vivência afetiva e sexual. Um exemplo marcante desse cenário ocorreu em 2006, quando uma mulher idosa revelou, no encerramento de um episódio da novela Páginas da Vida, que vivenciou seu primeiro orgasmo aos 68 anos, sozinha, ouvindo músicas de Roberto Carlos. Foi só ao compartilhar sua descoberta com amigas que percebeu: pela primeira vez, havia experimentado o prazer feminino – um testemunho poderoso de que a sexualidade pode ser vivenciada em qualquer fase da vida.
Estudar a sexualidade na velhice, para além da biologia, é compreender como o desejo de muitas pessoas é marginalizado. Passei a refletir mais sobre isso ouvindo funk e rap — especialmente artistas mulheres cisgêneras e pessoas transexuais e travestis. Quando deixei de lado os estereótipos e uma visão conservadora sobre o tema, enxerguei performances como as de Valesca Popozuda, Anitta, Tati Quebra Barraco, Linn da Quebrada e Jup do Bairro como atos de liberdade.
Muitas dessas letras subvertem papéis de poder, colocando o desejo feminino e dissidente no centro. Expandem o prazer para além da genitália, rompem com o falocentrismo e desafiam a estrutura machista das relações.
A sociedade molda a sexualidade por meio do poder, restringindo papéis e controlando corpos e prazeres.
Não por acaso, dezenas de mulheres idosas que conheci nesses 20 anos atuando na Gerontologia, me disseram que só descobriram o prazer sexual após a viuvez – e que, na velhice, são julgadas por vivê-lo livremente, seja com um parceiro ou parceira sexual, ou sozinhas, por meio da masturbação.
Talvez isso não faça sentido para quem lê agora. Talvez gere estranhamento. E tudo bem. O ponto é provocar a pergunta: serei uma pessoa idosa livre para amar? E se, além de ser julgado por desejar, eu for punido por isso? Já vimos isso acontecer.
São inúmeros relatos de familiares e profissionais que julgam os desejos e as práticas sexuais das pessoas idosas como doença, promiscuidade – este último, mais um termo baseado em uma visão higienista e moral da sexualidade.
No fim da década de 2000, fomos alarmados pelo aumento considerável de infecções sexualmente transmissíveis entre pessoas idosas. Em vez de promover acolhimento e informação, muitos discursos as culpabilizaram, como se a responsabilidade fosse apenas delas.
E nós? Qual é o nosso papel nesse contexto — como sociedade, familiares e profissionais? A questão não se resume ao uso de preservativo, mas a forma como lidamos com a sexualidade da outra pessoa – especialmente das mais velhas. Estamos dispostos a ouvir, acolher e criar espaços seguros para que possam expressar suas dúvidas, desejos e vontades?
Só assim, a vergonha e o tabu darão lugar à liberdade – a liberdade de desejar e sentir prazer, em qualquer idade. Porque desejo não tem prazo de validade, e o prazer não pode ser um privilégio da juventude.
Meus sinceros agradecimentos a essas mulheres do funk e do rap, que, por meio do confronto, da resistência e da luta, nos oferecem reflexões preciosas sobre autonomia e independência – aspectos essenciais para um envelhecimento ativo e saudável.
*Trecho da música “Pentada++” de Lia Clark (part. Tati Quebra Barraco e Valesca Popozuda), letra de Renato Messas
Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Depto. de Gerontologia da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.
O título deste texto é um ditado Iorubá que escolhi para iniciar uma reflexão sobre envelhecimento, velhice e política. Utilizá-lo valoriza a sabedoria ancestral, fundamental para os temas que proponho discutir neste momento.
Confesso que, de início, tive dificuldade em entender completamente o significado desse ditado. Conversei com pessoas amigas para esclarecer melhor sua profundidade. Não pretendo ser didático em relação à Exu, já que não tenho o conhecimento necessário. Contudo, o pouco que li sobre essa entidade, despertou em mim grande curiosidade e fascínio.
Voltando ao título, este ditado nos convida a pensar sobre o tempo de maneira diferente, sugerindo que o presente pode afetar não apenas o futuro, mas também o passado. Não se trata de ficção científica, mas de honrar a história daquelas pessoas que vieram antes de nós. O compromisso com o passado e o futuro deve sempre buscar o desenvolvimento social, científico e humano.
Todas as pessoas que vieram antes de nós, seja pelos bons ou maus exemplos, moldaram o presente em que vivemos. Como reagimos a este momento é o que faz a diferença. É a pedra que podemos ou não atirar.
Envelhecimento, velhice e política: pedra ou cadeira?
As decisões que tomamos hoje influenciam diretamente como viveremos no futuro e revelam o quanto aprendemos com o passado. Que histórias honramos e qual futuro queremos construir? Nossas escolhas afetam questões como violência, desigualdade social e a privação de direitos básicos, que agravam a vulnerabilidade de muitos.
Quando falo de decisões, não me refiro apenas ao voto ou à política eleitoral, mas ao nosso compromisso político-social diário, nas relações pessoais, profissionais e até nas redes sociais. O envelhecimento, assim como gênero, raça, classe social e tantos outros aspectos que nos diferenciam, formam nossa identidade, e, em uma sociedade machista, racista e idadista, essas condições nos tornam mais vulneráveis.
Estamos na “Década do Envelhecimento Saudável nas Américas – 2021-2030”, e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) nos alerta sobre os desafios do envelhecimento populacional para uma sociedade que não se preparou para vivenciar essa transição. A proposta não desmerece a velhice, mas valoriza a longevidade, afinal, viver mais é uma grande conquista.
A OPAS apresenta que é possível acolher as velhices em sua diversidade, com a participação social de todas as pessoas, em suas diferentes identidades, realidades e contextos, de forma representativa, para a construção de políticas públicas voltadas às demandas sociais reais. Mas, para isso, é preciso empenho, solidariedade e empatia.
Devemos refletir: estamos prontos para atirar a pedra certeira, que trará mudanças, ou preferimos repousar na cadeira da hipocrisia, ignorando as lições que o passado nos ofereceu?
Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e presidente do Depto. de Gerontologia da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.
Prezado leitor, escrevo essas linhas informando que sou fã da Madonna, mas que esse texto não é exatamente sobre isso, e sim, sobre reflexões que nos últimos dias me tiraram o sono, no sentido literal da palavra. Portanto, tento conter meu lado apaixonado pela artista, e me debruço sobre pensamentos a cerca do envelhecimento e velhice que me inquietam. Boa leitura!
Reprodução do X
No show de encerramento da turnê *Celebration*, em 4 de maio de 2024, em Copacabana, Madonna celebrou seus 40 anos de carreira. A diva do pop não pisava no Brasil há 12 anos, e o clima pré-show no Rio de Janeiro era de réveillon, com programas especiais, documentários e entrevistas aumentando a curiosidade sobre o que viria.
Mesmo acompanhando pela televisão, era possível sentir a energia e a emoção dos fãs. Entre discos de vinil e objetos raros, todos compartilhavam histórias com carinho e devoção. Mas uma pergunta ecoava: de onde vinha essa admiração?
Cada resposta era única, mas uma, em particular, me perturbou. Um rapaz de cerca de 35 anos disse: “Ela é uma mãe para mim.” Como poderia alguém atribuir a uma artista um título tão romantizado e nobre quanto “mãe”?
Seu semblante emocionado me prendeu à tela, atento à sua história. Ele contou que Madonna fez parte de sua adolescência e, por meio de sua poética, apresentou-lhe um mundo onde ele poderia ser ele mesmo, sem medo de ser feliz. Sua declaração me inquietou profundamente. Passei a noite ansioso para assistir ao show, mesmo que pela TV.
A fala sobre o sentimento materno daquele rapaz ainda estava latente em mim na manhã seguinte.
Vou reescrever o trecho “O show, a velhice e a minha história” com base nas observações feitas anteriormente, visando torná-lo mais conciso, mas mantendo a lógica e a estrutura do pensamento.
O show de Madonna, a velhice e a minha história
Na noite de sábado, o show começou, e ao me deparar com Madonna envelhecida e com movimentos corporais mais contidos do que em outras oportunidades, fui confrontado com meu próprio processo de envelhecimento. Por alguns minutos, meus pensamentos se desviaram do show para outra questão: quando conheci Madonna?
Minha memória é vaga, mas acredito que foi aos três ou quatro anos, quando vi a capa azul-marinho do disco de vinil com uma mulher loira de perfil, demonstrando no rosto uma sensação gostosa de brisa leve e fria numa noite de calor. A combinação de cores e sua postura esbanjavam elegância.
Lembro-me de adorar ouvir o refrão “true blue, baby I love you” e de sentir vontade de dançar celebrando a energia incrível de “where’s the party, I want to free my soul”. Perdi-me nessas lembranças, e após 35 anos, compreendi que na minha primeira infância, mesmo sem entender inglês, eu só queria ter uma alma livre, como se já sentisse as dificuldades que viriam por ser quem sou.
Naquela época, Madonna já parecia velha — pelo menos na perspectiva de uma criança de três ou quatro anos — mas continuou embalando hits e videoclipes que, na minha adolescência, mostraram a possibilidade de ser quem sou, sem medo. Posso dizer que compartilho o mesmo sentimento materno que aquele rapaz expressou na entrevista.
Madonna me encorajou a ser forte, resiliente e resistente diante das ameaças do mundo, mesmo com as incertezas que permeiam essa fase da vida tão importante, quando precisamos de apoio sincero e incondicional das pessoas que integram nossa família sanguínea. Contudo, nem sempre temos esse apoio na intensidade que precisamos para nos sentir protegidos e aceitos.
Somos filhas de Madonna
Madonna tem personificado uma alma materna, especialmente ao defender corajosamente as minorias sociais—pessoas frequentemente vulneráveis, marginalizadas e até mesmo ameaçadas de morte. Sua escolha de abraçar, acolher e apoiar se destaca em contraste com muitas famílias consanguíneas que falham em transcender barreiras socioculturais e acabam se voltando contra seus próprios membros.
A dedicação da cantora às suas lutas destaca o envelhecimento e a velhice de grupos frequentemente invisibilizados pelo machismo, racismo, LGBTfobia e conservadorismo social. Em seu show em Copacabana, que refletiu sua biografia no repertório, Madonna se apresentou como uma mulher que desafia os papéis impostos, lutando por igualdade de poder, justiça social, liberdade sexual, e contra a violência e o feminicídio.
Além disso, ela traz visibilidade para questões críticas, como a violência contra mulheres trans e travestis, cujo envelhecimento é frequentemente marcado por hostilidade ou é tragicamente cortado pela morte precoce. Vivemos em um país que lidera estatísticas de violência contra a comunidade LGBTQIA+, onde pessoas trans têm uma expectativa de vida reduzida. Madonna uniu sua voz à de milhares durante a crise da AIDS nos anos 80 e 90, desafiando a marginalização e promovendo acesso a tratamentos.
Importante também é seu posicionamento contra o idadismo, ao insistir em viver plenamente em uma sociedade que muitas vezes tenta suprimir os idosos. Seja por suas escolhas estéticas ou por suas habilidades físicas adaptadas à idade, ela quebra estereótipos sobre o que idosos podem e devem fazer—como uma mulher de 65 anos que não teme expressar sua sexualidade e desejos abertamente.
Madonna nos apresenta a uma Velhice Libertária, frequentemente oculta porque desafia convenções sociais confortáveis, mas restritivas. Esta perspectiva de velhice, rica em autonomia e diversidade, alimenta minha paixão pela Gerontologia, uma ciência que nos incentiva a reconhecer a diversidade para além de nossa compreensão habitual e a questionar as zonas de conforto que limitam a expressão plena da vida.
Diego Felix Miguel, doutorando em Saúde Pública pela USP, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – Seção São Paulo e Gerente do Convita – serviço de referência para atendimento de pessoas idosas imigrantes e descendentes de italianos. Escreve a convite do Blog do Mílton Jung.
O Dia Internacional de Luta contra a AIDS, celebrado em 1º de dezembro e instituído em 1988 pela Organização das Nações Unidas, visa aumentar a visibilidade das demandas de pessoas que vivem com HIV, contribuir para a desmistificação e promover uma compreensão mais aprofundada da infecção na sociedade, tratando-a como uma questão de saúde pública.
A intersecção do idadismo, que é o preconceito e discriminação pela idade, com a sorofobia, que é a aversão contra pessoas vivendo com HIV, representa um dos grandes desafios enfrentados por profissionais que atuam com idosos e se empenham em reforçar as boas práticas em Geriatria e Gerontologia.
Quando levamos em conta aspectos diversos que formam nossa identidade, como gênero, raça, cor, orientação sexual e etnia, torna-se evidente a iniquidade no acesso a informações e orientações eficazes sobre prevenção e tratamento digno disponíveis para todos.
A desigualdade social agrava a vulnerabilidade e expõe as pessoas idosas a várias formas de violência. Entre elas, destaca-se a solidão e a falta de uma rede de apoio que permita compartilhar, com confidencialidade, desejos e práticas sexuais sem o medo de julgamento ou de exposição vexatória em redes sociais, o que perpetua a ideia ultrapassada de uma velhice assexuada, heteronormativa e conservadora.
Por isso, esclareço o título deste artigo: “Quem acolhe as pessoas idosas que vivem com HIV?”.
A palavra “acolher” aqui não deve ser entendida como um reforço do estereótipo de que pessoas com HIV sejam dependentes e necessitem de ajuda, mas sim que a ciência mostra diariamente o quanto é possível gerir a doença e manter uma vida saudável e ativa com o tratamento adequado.
Acolhimento, neste contexto, significa o quanto estamos dispostos a eliminar preconceitos. Sabemos que qualquer pessoa sexualmente ativa pode estar sujeita a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e isso não está associado à promiscuidade, mas à necessidade de repensar os ‘juízos de valores’ baseados em visões conservadoras.
No que diz respeito a autocuidado e prevenção, o importante não é o número de parceiros(as) sexuais, mas sim como cada um cuida de si, os métodos de prevenção escolhidos e, fundamentalmente, um processo de autoconhecimento.
Devemos também atualizar nossa abordagem. O preservativo é apenas uma das várias opções de prevenção disponíveis.
Refletir sobre o impacto traumático de imagens de pessoas com infecções avançadas é crucial; abordagens que geram medo apenas reforçam estigmas e culpabilizam, perpetuando preconceitos e discriminações enraizados em nossa percepção do que é aceitável na intimidade e prazer entre pessoas.
A sorofobia cria uma desigualdade de poder ao ignorarmos a confidencialidade e ao nos fecharmos para novas realidades e práticas sexuais. Enxergar as ISTs de maneira estigmatizante apenas fortalece a noção de culpa em indivíduos que são, na realidade, vítimas de um sistema injusto.
É essencial estarmos abertos para entender a sexualidade em toda a sua complexidade, incluindo estratégias de prevenção atualizadas como a Profilaxia Pré-exposição (PrEP), Profilaxia Pós-exposição (PEP) e a Prevenção Combinada, que engloba a redução de riscos, todas disponibilizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Além disso, é importante ressaltar que pessoas que vivem com HIV têm acesso a tratamentos eficazes que garantem sua qualidade de vida e, quando estão com carga viral indetectável, não transmitem o vírus através de práticas sexuais.
O debate sobre o HIV não deve ser limitado aos profissionais de saúde ou gestores de políticas públicas; é um tema pertinente a todos nós, cidadãos que formamos a sociedade, e devemos participar ativamente dessa luta, unindo-nos contra a sorofobia.
Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e membro da Diretoria da SBGG-SP, gerente do Convita – Patronato Assistencial Imigrantes Italianos, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve a convite do blog
Ilustração da capa do livro “Sexualidade na velhice”
Muitos de nós pensamos no futuro, seja no âmbito profissional seja no pessoal. Mas quantos de nós paramos para refletir sobre como será nossa vida sexual na maturidade? A verdade é que a maioria teme esse tema, visto que vivemos em uma sociedade que hipersexualiza a juventude e frequentemente marginaliza os desejos e necessidades dos mais velhos. A jornalista e escritora Tania Celidonio, por meio de suas pesquisas, derruba tabus e revela uma perspectiva surpreendente e inspiradora sobre a sexualidade na terceira idade. Ela foi entrevistada pelo programa Dez Por Cento Mais, no YouTube.
Tania tem uma longa trajetória no jornalismo, mas foi ao explorar as complexidades da sexualidade na terceira idade que encontrou novas paixões e desafios. Em uma pesquisa ampla, que começou com seu círculo pessoal e se expandiu através das redes sociais, ela coletou cerca de 250 depoimentos sobre o tema. Os relatos, ricos e diversos, revelam uma amplitude de sentimentos, desejos, dúvidas e certezas que muitos preferem esconder por trás de pseudônimos. A pesquisa deu origem ao livro “Mistérios e aflições da sexualidade na velhice” (Terra Redonda).
O sexo além do desejo físico
Para começar, é preciso entender que a sexualidade não se limita ao desejo físico e ao ato em si. Conforme destacado pela psicóloga Simone Domingues, uma das apresentadoras do programa, a sexualidade envolve intimidade, parceria, entrega e afeto. Essa dimensão profunda e abrangente da sexualidade se torna ainda mais evidente com o passar dos anos, quando a conexão emocional pode se sobrepor ao desejo físico.
Além disso, a pesquisa de Tania revela que muitos idosos sentem alívio ao não ter mais a “obrigação” de desejar constantemente, e conseguem abraçar a intimidade sem o foco exclusivo no ato sexual. Esta é uma revelação esclarecedora para os mais jovens, mostrando que a sexualidade se transforma, mas não desaparece.
Por outro lado, a sociedade ainda carrega muitos preconceitos. Tania citou Simone de Beauvoir, que em 1970 observou que se os idosos demonstrassem os mesmos desejos e sentimentos que os jovens, seriam vistos com desdém ou ridicularizados. Esta percepção parece ainda ressoar em muitas sociedades contemporâneas. No entanto, a questão é: por quê? Por que a sociedade tem padrões tão diferentes para homens e mulheres à medida que envelhecem?
O preconceito é ainda maior com mulheres
Para as mulheres, o cenário é ainda mais complexo. A menopausa pode trazer consigo uma série de desafios, desde a diminuição do desejo até questões físicas, como ressecamento. Ao contrário dos homens, cujas soluções para disfunção erétil são amplamente discutidas e medicadas, as mulheres enfrentam uma lacuna no tratamento e compreensão de suas necessidades sexuais durante o envelhecimento.
Talvez o ponto mais revelador de toda a discussão seja o padrão social imposto sobre os idosos, especialmente as mulheres. No universo dos relacionamentos, enquanto homens mais velhos com parceiras mais jovens são muitas vezes vistos como aceitáveis, mulheres mais velhas que expressam atração por homens mais jovens enfrentam julgamentos mais duros.
O que fica claro na entrevista é que, assim como em qualquer fase da vida, a sexualidade na terceira idade é multifacetada. Não há uma única “maneira correta” de vivenciá-la. O que é essencial é o respeito, a comunicação e a abertura para entender e aceitar as mudanças que ocorrem ao longo do tempo. É preciso desmistificar e normalizar as conversas sobre sexualidade na velhice. Afinal, como bem destacou a jornalista Abigail Costa, “sexualidade é algo tão natural para o ser humano”, e não deveríamos ter vergonha ou medo de discutir, compreender e abraçar essa verdade em todas as fases da vida.
Dica Dez Por Cento Mais
Tania Celidônio, convidada por Abigail Costa e Simone Domingues, deixou sua Dica Dez Por Cento Mais:
“Envelhecer é difícil. Não vai ser fácil para ninguém. Eu acho que se a gente encarar com bom humor, além do realismo que vem junto fica mais fácil. Porque não é fácil segurar essa onda. A minha dica seria essa. E também apostar na diversidade, porque isso que eu falei, o grande barato para mim foi perceber que a sexualidade tem uma diversidade incrível e a gente pode aproveitar mesmo depois de velho”.
Assista à entrevista no YouTube
Um novo episódio do Dez Por Cento Mais pode ser assistido ao vivo todas as quartas-feiras, às oito da noite (horário de Brasília), no YouTube. O programa também está disponível em podcast, no Spotify. A apresentação e produção é da jornalista Abigail Costa e da psicóloga Simone Domingues.